O que é História e qual sua relação com o passado?

Gibson da Costa

Conceituar “história” pode ser difícil por causa do próprio fato de a palavra possuir, pelo menos, dois sentidos básicos:

I) o termo se refere ao próprio passado, ou seja, à matéria sobre a qual os historiadores escrevem;

II) pode se referir ao estudo daquele passado, às práticas e escritos dos historiadores.

Poderíamos conceituar a História, brevemente, como aquilo que a variada comunidade especializada dos historiadores pratica (REIS, 2006, p.101). O que esses profissionais fazem é produzir conhecimento sobre o passado ou, individualmente, produzir contribuições ao conhecimento sobre o passado. Assim, um conceito mais elaborado do que seja a história poderia ser:

A História é o corpo de conhecimentos sobre a experiência humana no Tempo e no Espaço produzido pelos historiadores, juntamente com tudo o que está envolvido no processo de produção, comunicação e ensino sobre esse conhecimento.

Por que falar em “Tempo” e “Espaço” em vez de “passado”?

A relação entre “Tempo” e “Espaço” é inegável na experiência humana. Ambos são reciprocamente condicionados. Ou seja, nossas noções de “Tempo” são espacialmente (e materialmente) condicionadas e, semelhantemente, nossas noções de “Espaço” são temporalmente (e materialmente) condicionadas. Por isso, conceituar a História como o conhecimento sobre o “passado” humano seria limitado e insuficiente; assim, prefiro falar, aqui, na “experiência humana no Tempo e no Espaço”.

Se falássemos em “passado“, enfrentaríamos alguns obstáculos, como o de conceituar o que seria o “passado”, e, dependendo de como o conceituássemos, poderíamos nos perguntar ainda: será que os historiadores se dedicam a estudar apenas o “passado”?

Se você pesquisar na seção de História de qualquer grande livraria ou se pesquisar as publicações acadêmicas da área, perceberá que nós historiadores não pesquisamos e escrevemos apenas sobre aquilo que comumente chamamos de “passado” (um tempo relativamente distante que ficou para trás). Nós historiadores também tratamos de assuntos do nosso próprio tempo. Isso fica claro quando percebemos que uma das subáreas da História é chamada de “História do Tempo Presente”. Assim, temos de ter o cuidado com a noção de “passado” que utilizamos quando estudamos História.

Pessoalmente, compreendo o passado historiográfico como aquele que abrange o presente vivido/percebido pelo sujeito. A fronteira temporal entre os fenômenos da experiência humana e sua percepção pela mente podem ser tão tênues que não nos damos conta de que ocorreram no passado. Exatamente como o tempo despendido entre o momento no qual comecei a digitar este texto e aquele no qual o arquivo foi originalmente salvo. Assim, quando concluído, já era produto do passado.

Referência

REIS, José Carlos. História & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

Perguntas problematizantes e o seminário socrático na pedagogia inquisitiva

Gibson da Costa

Enquanto professores, podemos nos engajar tanto com a tarefa de fazer perguntas que não investimos muito tempo em analisar por quê e como o fazemos. Mas, se analisássemos as perguntas que fazemos durante uma aula, poderíamos nos surpreender com os resultados encontrados. Provavelmente, descobriríamos que a maioria de nossas perguntas são feitas unicamente para sabermos se um aluno sabe ou não um certo item daquilo que lhe foi “ensinado”. Descobriríamos, assim, que elas carregam uma expectativa de apenas testar a memória de nossos alunos. E esse tipo de perguntas, infelizmente, não se restringe apenas àquelas que lhes são feitas oralmente em aulas, mas incluem, principalmente, aquelas presentes nos tradicionais modelos de provas escritas que muitas vezes aplicamos nas escolas. A boa notícia é que nossas perguntas podem e devem fazer muito mais do que apenas testar a memória dos alunos.

Fazer perguntas é um instrumento essencial tanto para a construção do pensamento quanto das relações humanas. E, na educação, perguntas são indispensáveis. Dentre tantas outras razões, enquanto professores, perguntamos para testar a memória dos alunos, para obter informações, para expressar e estimular interesse e curiosidade, para incentivar a participação, para detectar dificuldades, para encorajar comentários, para desafiar certezas, para questionar asserções, para desempenhar o papel do “advogado do diabo” etc. Fazer perguntas, ao menos no que tange ao professor na pedagogia inquisitiva, é uma habilidade que se baseia em saber decidir sobre o quê e quando perguntar.

Neste texto – uma continuação do tema abordado anteriormente sobre o ensino-aprendizagem inquisitivo –, abordarei o papel desempenhado por um tipo específico de perguntas na pedagogia inquisitiva. O mesmo destina-se àqueles professores da Educação Básica que queiram adotar uma prática de articulação aberta de diferentes pontos de vista por parte dos alunos, especialmente através da utilização de seminários socráticos, especificamente na área das Ciências Humanas e Suas Tecnologias (Filosofia, Geografia, História e Sociologia).

Tipos de perguntas

Na pedagogia inquisitiva, perguntar exige mais do que construir perguntas que possam ser respondidas com uma única palavra, ou simplesmente com “sim” ou “não”. Assim, a ação de perguntar torna-se um processo de questionar, de problematizar. Há diferentes sistemas para a classificação de perguntas, com muitos deles baseando-se nas tradicionais categorias listadas na Taxonomia de Objetivos Educacionais (1956), de Benjamin S. Bloom. Nas ciências humanas, por exemplo, um desses sistemas as categoriza em perguntas que apelam à memória, compreensão, aplicação, análise, síntese e avaliação (classificação de Clegg, Farley, e Curran); outra, as categoriza como sendo de apelo à memória, tradução – i.e., transformação da informação em diferentes formas ou linguagens simbólicas –, interpretação, aplicação, análise, síntese e avaliação (classificação de Norris Sanders).

Aqui, não intenciono lidar com tamanha complexidade tipológica; assim, utilizarei uma classificação didática exageradamente simplificada que categoriza as perguntas em problematizantes e não-problematizantes. Desde já, reconheço a limitação desta tipologia. Utilizo essa classificação simples com meus alunos da educação básica e superior, para ajudar-lhes a avaliar os tipos de perguntas que utilizamos em nossas discussões em sala, e acredito que a mesma possa ajudar-nos, enquanto professores, a começar a refletir sobre o tipo de perguntas que fazemos a nossos alunos em sala. Se, posteriormente, você quiser aprofundar-se no tema, descobrirá que há excelentes pesquisas acadêmicas sobre o papel desempenhado pelas perguntas na educação escolar.

Na tipologia que utilizo especificamente neste texto, os seguintes são os sentidos que atribuo aos termos perguntas problematizantes e perguntas não-problematizantes:

Perguntas problematizantes são aquelas que ajudam a identificar, interpretar e avaliar perspectivas e relações; analisam eventos, tendências e problemas significativos; e reconhecem, interpretam e julgam forças que causam mudanças e contribuem com a continuidade. Com elas, não esperamos respostas específicas, já que as mesmas servem como convite à discussão e ao compartilhamento de múltiplas ideias. Esse tipo de questionamento, ou melhor, de problematização, é possível e necessário em todos os níveis da educação escolar (seja na educação básica ou na superior), e em todos os componentes curriculares. No caso específico das chamadas ciências humanas (Filosofia, Geografia, História e Sociologia – e também Religião), assim como das linguagens e códigos (Língua Portuguesa, Literatura, Arte, e níveis mais avançados de Línguas Estrangeiras), esse tipo de questionamento é indispensável.

Perguntas não-problematizantes são aquelas que buscam dados e informações específicas sobre um determinado tema, podendo ou devendo ser respondidas com “sim/não” ou com detalhes apropriados à expectativa da pessoa que a elaborou. Com este tipo de perguntas, geralmente não abrimos espaço à discussão de ideias ou argumentações discordantes. Apesar de elas não serem úteis a atividades que envolvam discussão de argumentos e ideias, são úteis se o que quisermos for testar se os alunos lembram-se de informações ou dados específicos.

A razão primordial para a ênfase em perguntas problematizantes na pedagogia inquisitiva é porque fazer e responder esse tipo de perguntas oferece um foco para a pesquisa e a investigação, e ajuda a pensar criticamente. Esse tipo de questionamento promove a curiosidade, encoraja a criatividade e leva a mais perguntas. Por serem respondidas de forma “aberta”, isto é, por não possuírem respostas “certas”, encorajam compreensões mais profundas e exigem decisões e julgamentos que possam se apoiar em evidências ou critérios específicos.

Como criar perguntas problematizantes?

Mas, reconhecendo seu valor e importância para a pedagogia inquisitiva, como podemos criar tais perguntas? Há modelos que podem ser seguidos, por aqueles que não estão acostumados a utilizar tais tipos de perguntas em sala, para iniciar a utilização de perguntas problematizantes com seus alunos?

Para refletirmos sobre a tipologia proposta aqui das perguntas em problematizantes e não-problematizantes, permita-me exemplificar com uma experiência real. Numa unidade sobre imigração e identidade nacional, em História dos Estados Unidos, numa de nossas aulas, meus alunos se engajaram num seminário socrático no qual discutiram alguns textos extraídos da imprensa, das leis e de pronunciamentos políticos acerca do papel desempenhado pelo inglês e pelo espanhol naquele país – na verdade, haviam levado seleções de textos escritos selecionados por mim para ler em casa, pesquisaram sozinhos outros textos e, em sala, vimos alguns trechos em vídeo de pronunciamentos políticos. Como costumeiro, nos focamos em debater alguns dos aspectos que eles consideravam importantes nos argumentos utilizados por grupos políticos e movimentos sociais que buscam a oficialização da língua inglesa no âmbito federal.

Aqui, não poderia incluir aqueles textos utilizados como base para nossas discussões, já que esse não é o objetivo deste texto. Mas, importa informar que, por exemplo, a Constituição dos Estados Unidos, diferentemente da brasileira, não estabelece uma língua oficial para o país. Assim, ao menos constitucionalmente, o governo federal dos EUA não pode se negar a oferecer seus serviços em outras línguas aos seus cidadãos que não falem inglês. Lembre-se que há muitas regiões nos EUA onde um grande número de cidadãos não falam inglês – por exemplo, o sul da Flórida, regiões metropolitanas como as de Nova York, Boston, Chicago, Los Angeles; áreas do Novo México, Arizona, Texas, etc. Assim, em diferentes momentos da história do país, tem havido um grande investimento no oferecimento de serviços federais em outras línguas (especialmente espanhol). Entretanto, inúmeros estados têm tornado o inglês sua língua oficial em suas constituições, em resposta ao fluxo migratório especialmente de hispanofalantes; e, especialmente nos últimos anos, muitos grupos têm defendido o mesmo para o governo federal. Todo o conflito em torno do papel do inglês e de outras línguas minoritárias no país tem existido desde a independência das colônias britânicas que formariam os Estados Unidos, ou seja, trata-se dum problema de longa data. Foi sobre isso que tratamos em nossas discussões em sala.

Agora, como exercício, imagine-se naquela turma. Imagine haver levado os textos para casa, lido-os, selecionado algumas reportagens da imprensa e ter assistido aos breves vídeos em sala, preparando-se para a discussão que seguiria. Imagine que tivesse de propor uma pergunta para o início de nosso seminário socrático em sala. Agora, das perguntas que sugiro abaixo, quais, em sua opinião, poderiam ser classificadas como problematizantes (i.e., facilitadoras duma discussão à qual a multiplicidade de ideias fossem bem-vindas) e por quê?

  1. Qual é a língua oficial dos Estados Unidos?

  2. Por que, em sua opinião, não há menção a uma língua oficial na Constituição dos EUA?

  3. O inglês é definido em alguma outra lei como língua oficial dos Estados Unidos?

  4. A Constituição dos EUA deveria declarar o inglês como língua oficial? Por que sim, ou por que não?

  5. Em sua opinião, qual a maior vantagem e/ou desvantagem em a língua inglesa não ser declarada como oficial na Constituição dos EUA?

  6. Quantos cidadãos dos Estados Unidos não falam inglês? Que evidências você pode apresentar para confirmar os números que apresenta?

  7. Até que ponto não declarar uma língua como oficial põe em risco as tradições nacionais de um Estado? Você pode apresentar alguma evidência para sua posição?

  8. Todos os cidadãos norte-americanos falam inglês como língua materna?

Você consegue imaginar a pergunta nº 1 servindo como base para o início bem-sucedido duma discussão crítica numa aula de História ou Sociologia, por exemplo? E o que dizer sobre a questão proposta antes da enumeração das perguntas (…das perguntas que sugiro abaixo, quais, em sua opinião, poderiam ser classificadas como problematizantes […] e por quê?)?

Perceba que o tamanho do enunciado não necessariamente indica que a pergunta levará o aluno a uma reflexão sobre o tema proposto, muito menos a uma discussão de ideias. A pergunta de nº 3, e a dupla pergunta de nº 6, por exemplo, são comparativamente extensas, mas apelam apenas à memória do aluno, exigindo como resposta um dado ou informação presente em algum texto ao qual supostamente tenha tido acesso (texto que poderia ser escrito ou audiovisual, no caso do material que utilizamos de base para aquela discussão).

Note, também, a incidência de por que associado a outras expressões, como em “por que sim ou não?”, e de em sua opinião, ou de expressões semelhantes (como em “até que ponto…?”), nas perguntas que levam o aluno a formular uma opinião própria. Nem sempre, contudo, um “por que?” indica uma pergunta problematizante, já que o mesmo poderia apenas estar fazendo referência a uma resposta que não exija a formulação de opiniões e argumentos próprios. Por exemplo, poderíamos perguntar “Por que nem todos os cidadãos americanos falam inglês?”, e, quase certamente, poderíamos esperar respostas como “porque nem todos nasceram nos Estados Unidos”, ou “porque há muitos imigrantes e filhos de imigrantes no país”, ou ainda, “porque muitas pessoas têm deficiência auditiva e, por isso, não falam inglês”. Nenhuma dessas respostas, contudo, evidencia um esforço crítico por parte do aluno, nem facilita o início duma discussão de ideias.

Lembre-se que, na tipologia simplificada que utilizei aqui, perguntas problematizantes são aquelas que, necessariamente, levam a discussões e ao compartilhamento de múltiplas perspectivas. Assim, os enunciados das perguntas levantadas devem deixar claro que o que se espera dos alunos é que expressem suas ideias, suas perspectivas, com base, por exemplo, nos textos (escritos, pictóricos, audiovisuais etc) que serviram de base para a discussão.

Outras considerações

Algo que devemos sempre ter em mente quando nos engajamos com a pedagogia inquisitiva – especialmente se fazemos uso, por exemplo, de seminários socráticos – é o fato de que o que importa não é o número de perguntas feitas, mas sua qualidade para os objetivos que estabelecemos. Quando fazemos perguntas problematizantes – perguntas que estimulam o pensamento e, consequentemente, levam os alunos a produzir respostas mais longas –, a velocidade das aulas diminui. Isso significa que menos “matéria” é coberta em aulas como essas, apesar de, provavelmente, o que for tratado o ser de forma mais ampla. Ademais, os alunos possivelmente discutirão ideias não previstas pelo professor, o que exige não apenas uma preparação cuidadosa, como também um senso de humildade para reconhecer que não sabemos tudo.

Num seminário socrático com turmas da Educação Básica, por exemplo, alguns cuidados devem ser tomados. Se por um lado, o planejamento é indispensável, por outro não pode servir de “camisa de força” para as discussões em sala. Ao mesmo tempo em que devemos ter questões formuladas previamente para guiar a discussão, também não devemos servir de empecilho aos questionamentos levantados pelos alunos – desde que pertinentes ao tema tratado –, já que é justamente para que desenvolvam essa habilidade questionadora que utilizamos seminários socráticos.

Outro ponto importante a considerar é o da compreensão que o próprio professor tem de sua identidade profissional e do componente curricular que ensina. Se o professor se vê como uma autoridade inquestionável em sala, que exerce a função de “transmissor” de conhecimentos e descreve seu trabalho como sendo “dar aulas”, então, provavelmente, nada do que escrevi até agora fará sentido ou funcionará. Ademais, especialmente no caso das ciências humanas, se também enxerga o componente curricular que ensina de forma dogmática, compreendendo suas próprias perspectivas (digamos, uma escola filosófica, uma perspectiva política, uma tradição sociológica específica etc) como sendo inquestionáveis, facilitar a discussão livre de ideias contradirá sua visão de mundo e, possivelmente, será uma experiência não muito fácil.

O tema do papel desempenhado pelas perguntas no ensino-aprendizagem em geral e, especialmente na pedagogia inquisitiva, tem sido muito pesquisado no campo da Educação nos últimos cinquenta anos. Aqui, quis apenas ajudar meus leitores e leitoras a refletirem um pouco sobre o tema de forma simplificada. Ainda voltarei a este tema no futuro.

Perguntas problematizantes e o ensino-aprendizagem inquisitivo

Gibson da Costa

Conte-me, e esquecerei; mostre-me, e lembrar-me-ei; envolva-me, e entenderei.

(Antigo ditado anglófono)

Lembro-me duma conversa que tive com uma jovem professora de literatura há alguns meses. Eu facilitara um minicurso sobre ensino como facilitação e, ao fim de nosso primeiro encontro (o minicurso durou 5 dias), ela me disse que era muito fácil falar em trazer os alunos para o centro do processo de ensino-aprendizagem, mas que fazer isso era mais difícil do que eu imaginava! Como resposta, disse-lhe que ela se esquecera de considerar três fatos: 1) como ela, eu também ensinava a adolescentes e jovens, então partilhávamos de desafios comuns, e eu já testara os princípios que discutíramos; 2) aquele era o primeiro encontro, e ainda não havíamos discutido as práticas listadas em nosso programa; e, 3) ela talvez não percebera o tipo de atividades que realizáramos naquele primeiro encontro, já que algumas daquelas práticas listadas em nosso programa estavam sendo utilizadas, apesar de ainda não as havermos discutido. Posteriormente, fiquei extremamente feliz quando ela me escreveu, descrevendo sua experiência com algumas daquelas práticas em sala e a transformação que trouxera ao seu trabalho!

Aqui, gostaria de começar a tratar, brevemente, daqueles métodos, estratégias, abordagens etc que, em minha experiência, ajudam-me a tornar os estudantes o eixo central no processo de ensino-aprendizagem, e ajudam-me a transformar-me em facilitador nesse processo. Incluirei alguns dos temas abordados naquele minicurso ao qual fiz referência e que, de acordo com aquela jovem professora, ajudaram-na a transformar positivamente sua atuação e a de seus alunos em sala.

Antes de tudo, um aviso: Por mais que isso implique numa aparente contradição ante o fato de eu sugerir esta ou aquela abordagem didático-pedagógica, não tenho nenhum receio em afirmar que bons e experientes professores conhecem mais suas turmas e suas circunstâncias do que qualquer autor, pesquisador ou observador externo. Eles sabem como suas turmas respondem às suas abordagens pedagógicas, conhecem os contextos nos quais exercem suas atividades profissionais e, por isso mesmo, podem planejar, adaptar e utilizar estratégias que melhor funcionem para suas circunstâncias particulares. Assim, quaisquer sugestões ou interpretações que eu faça dizem respeito às minhas próprias experiências em sala de aula. Elas têm funcionado para mim, sendo adaptadas quando necessário, em meus contextos até hoje. Mas exigem preparação, objetivos claros, planejamento, atenção, paciência, visão de longo prazo etc.

Discutirei, hoje, sobre um conjunto de abordagens ao processo de ensino-aprendizagem que traduzo, em português, como ensino-aprendizagem inquisitivo. O mesmo tem sido, há muito, objeto de discussão e uso na Educação Básica nos países anglófonos, especialmente nos Estados Unidos, e é parte integrante de minha herança escolar – tanto como estudante quanto como professor. E, provavelmente, não será completamente estranho à grande parte daqueles que estudaram em universidades brasileiras. Mas, do que se trata?

O ensino-aprendizagem inquisitivo é um conjunto de abordagens didático-pedagógicas que se focam em torno de questões geradas ou propostas coletivamente. Ao longo do processo, são dadas oportunidades para que os alunos ofereçam respostas a essas questões por meio da busca e organização de evidências, dados e informações advindas de diferentes fontes. Eles analisam essas evidências, dados e informações, levando em consideração as diferentes interpretações e perspectivas às quais foram expostos – apresentadas por outros alunos, por outro texto etc. A partir disso, formam opiniões, fazem julgamentos e chegam às suas próprias conclusões com base naquelas evidências, dados e informações. E, ao final, comunicam aos seus colegas suas conclusões etc.

Parece extremamente simples, mas não se engane. Esse tipo de ensino-aprendizagem exige um real deslocamento do foco em sala: do professor para os alunos. Aqui, não é o professor que domina as aulas, com alunos ouvindo suas explicações passivamente. Não! O professor fala menos e ouve mais; e, quando fala, explica menos e questiona/provoca mais. Sua voz não domina os ares da sala. A dos alunos, sim. Isso exige uma mudança tanto por parte do professor, quanto da dos alunos. O professor atua como um facilitador. Os alunos falam mais, mas sua fala deve ser informada e articulada – isto é, suas questões ou afirmações são baseadas nas evidências, dados e informações aos quais tiveram acesso. Trata-se duma verdadeira mudança da cultura escolar. Mas é possível – especialmente nos componentes curriculares da área de Ciências Humanas e Suas Tecnologias (nas quais é possível haver um nível maior de subjetividade nas discussões), mas não apenas nela.

Não há, entretanto, um único molde desse tipo de ensino-aprendizagem. Como escrevi um pouco acima, trata-se de “um conjunto de abordagens”, ou seja, uma variedade de formas para se levar a cabo um molde inquisitivo de ensino-aprendizagem. Spronken-Smith, Walker, Batchelor, O’Steen e Angelo (2012), pesquisadores da área, apresentam diferentes formas para categorizar esse tipo de ensino-aprendizagem. Em uma delas, por exemplo, categorizam-na com base na distinção entre três modos de inquisição (o sentido do termo “inquisição” aqui é averiguação metódica e rigorosa; inquirição; investigação; pesquisa – não o confunda com o termo como usado em “a Santa Inquisição”; há uma razão estética para eu escolher o termo como tradução do inglês “inquiry”):

  • inquisição estruturada → na qual o professor oferece a questão, além de instruções sobre como se deve explorá-la;

  • inquisição guiada → na qual o professor estimula a investigação com questões, mas são os estudantes que decidem como explorá-las;

  • inquisição aberta → na qual os alunos formulam as questões, identificam o que precisa ser conhecido, coletam e analisam as evidências, dados e informações, comunicam suas conclusões e avaliam a pesquisa.

Nesse tipo de classificação, fica claro que poderíamos utilizar atividades apropriadas ao tipo de turma e à experiência do professor. Pessoalmente, tenho utilizado a aqui chamada inquisição aberta com mais frequência, em grande parte porque meus alunos já conhecem a abordagem e estão familiarizados com ela, e a mesma já ser parte de meu imaginário didático-pedagógico e de meu repertório profissional (fazendo com que me sinta mais confortável com a autonomia dos alunos e o desafio que isso pode representar). Para quem tentará pela primeira vez, ou aqueles que não estão tão familiarizados com uma grande autonomia por parte dos alunos, talvez não devessem começar com uma abordagem de inquisição aberta, optando por dar mais experiência a seus alunos (e a si mesmos) antes de dar-lhes tamanha responsabilidade – alunos acostumados ao ensino expositivo tradicional tendem a sentir-se desconfortáveis com o ensino-aprendizagem inquisitivo por algum tempo, até que se acostumem.

Uma preocupação comum que tenho ouvido de vários professores é sobre o que fazer se alguns alunos não participam dos debates, estando sempre calados. É importante ter consciência de que nem todos os alunos participam oralmente. Eles não precisam falar para estarem participando. Muitas vezes, a audição atenta é sua forma de participação. Alguns anotam o que ouvem. Logo, nunca me preocupo simplesmente pelo fato de alguns alunos não se engajarem em discussões orais. Esforço-me para conversar com eles fora da sala de aula, para ouvir suas opiniões (o silêncio de alguns em sala pode indicar que não se sentem confortáveis com a discussão em grupo, mas, se abordados da forma certa, partilham suas opiniões conosco fora de sala). Já tive turmas nas quais alguns alunos nunca disseram nada em sala, mas em seus trabalhos escritos – ou em seu vídeo, por exemplo –, demonstravam que haviam compreendido as discussões e aprendido com as ideias de seus colegas. Da mesma forma, há sempre aqueles dois ou três alunos que dominam todas as discussões – quando esses parecem estar tomando o espaço de outros, intervenho de forma elegante, aproveitando-me de algum comentário para fazer uma pergunta a alguém específico. Respeitar diferenças inclui reconhecer as diferenças de personalidade de nossos alunos – uma preocupação exacerbada com disciplina pode nos fazer esquecer que os adolescentes não são todos iguais.

Apesar de a carga de preparação exigida de professores (e dos alunos) ser grande para este tipo de ensino-aprendizagem, há inúmeras vantagens, especialmente no que concerne às Ciências Humanas e Suas Tecnologia (Filosofia, Geografia, História e Sociologia) na Educação Básica. O processo inquisitivo promove uma diversidade de vozes na sala de aula, criando oportunidades para que os alunos expressem e compartilhem suas opiniões. Ademais, o engajamento neste processo ensina-os a encontrar, reconhecer, avaliar e utilizar evidências; além de ajudá-los na construção ou fortalecimento de sua autoconfiança.

Abaixo, listo, brevemente, algumas sugestões para a utilização da inquisição em sala de aula, resumindo aquilo que discuti com os cursistas que participaram no minicurso que facilitei e ao qual me referi no início deste texto.

Questionando:

  • faça perguntas abertas (sem “certo”/”errado”);

  • convide e seja receptivo a diferentes interpretações;

  • faça uso do questionamento para focar o debate;

  • pergunte aos alunos o que um certo texto ou fonte significa “para eles” individualmente (Ex.: O que, na sua opinião, isso significa? / O que isso significa para você?).


Como encorajar a voz dos alunos:

  • permita que os alunos dirijam a discussão;

  • use seus comentários para formular questões;

  • encoraje respostas que sejam pessoais e analíticas.


Como encorajar múltiplas respostas:

  • esteja atento(a) às diferenças de opinião;

  • repita os pontos de vista para enfatizar as discordâncias;

  • aguce a análise por meio da reformulação do debate;

  • lembre-se que não há conclusões claras, apenas argumentos claros.

Como construir uma cultura de respeito:

  • não permita ataques pessoais;

  • evite respostas como “certo!” ou “errado!”;

  • arbitre as discussões de forma justa e equitativa.


Como apoiar alunos silenciosos/tímidos:

  • lembre-se que nem todos os alunos participam através da fala;

  • mantenha diálogo com os alunos fora da sala de aula;

  • organize discussões em grupos menores para construir sua confiança.

Posteriormente, relatarei uma aula específica para apontar como tudo isso pode ser utilizado numa aula real.

REFERÊNCIAS

SPRONKEN-SMITH, R.; WALKER, R.; BATCHELOR, J.; O’STEEN, B.; ANGELO, T. Evaluating student perceptions of learning processes and intended learning outcomes under inquiry approaches. In: Assessment & Evaluation in Higher Education, 37, vol. 1, 2012, p.57-72.

Autoridade hierarquizada versus autonomia na educação formal

Poucas instituições são tão hierarquizadoras quanto as instituições de ensino oficial – sejam elas da Educação Básica ou da Educação Superior. Independentemente das perspectivas agógicas (isto é, pedagógicas, hebegógicas, adagógicas, gerentogógicas etc) adotadas pela instituição ou pelo professor, a educação formal sempre se baseia na dependência dos estudantes para com um eixo hierárquico de autoridade – autoridade esta que pode se centrar na figura do próprio professor, dos textos escolares/acadêmicos, das tradições que modelam a sociedade, etc. O fato é que, por mais que neguemos isso, a educação institucionalizada, de modo geral, faz muito pouco para ajudar os estudantes a se tornarem realmente autônomos – e isso desde a mais tenra idade.

Lembro-me de quando comecei a ensinar numa determinada escola pública nova iorquina há cerca de duas décadas atrás. Discutíamos um de meus temas favoritos em História dos EUA – o chamado “Movimento pelos Direitos Civis” (o segundo, de meados do século XX) –, e três de meus alunos fizeram uma reclamação formal a meus superiores por eu os estar “forçando” a ler outras coisas e a ouvir testemunhos de visitas que trouxe à sala, enquanto deixava de lado o livro didático de História. Seu argumento era que eu estava tirando deles a oportunidade de estudarem o “currículo oficial” e se prepararem para as provas aplicadas pelo Departamento de Educação do Estado (felizmente, meus superiores discordaram da opinião daqueles alunos!).

Aquele incidente me deixou extremamente perturbado por algum tempo. Perturbei-me porque a reclamação, aparentemente, partira dos próprios alunos, e não de seus pais. Mesmo sendo apenas três deles – os considerados mais brilhantes da turma –, aquilo mostrava a compreensão que tinham do que deveríamos fazer em sala: eles seriam apenas receptores dum conhecimento acabado, e eu não passava dum transmissor. Ficava me perguntando o que tínhamos (a escola) feito com aqueles adolescentes para que rejeitassem a oportunidade de chegarem às suas próprias conclusões por meio do conhecimento de outras opiniões que podiam diferir do que o livro didático lhes oferecia. Aqueles estudantes, no final das contas, só estavam seguindo o que a escola os adestrara a fazer: sigam as regras, repitam o que “aprenderam”, e tudo estará bem!

Aquele incidente, para mim, retrata bem o efeito que a mentalidade autoritária pode ter na percepção que estudantes têm de seu valor e capacidades – e isso ocorre igualmente na Educação Superior. Frequentemente, a escola/universidade parece treinar pessoas para que sejam excelentes repetidores do que já foi dito e feito, mas incapazes de criar algo novo a partir daquilo que supostamente aprenderam. Nas humanidades, por exemplo, professores se esforçam para ensinar o que, para eles, é certo; mas não esperam de seus estudantes a capacidade de apresentarem um alto nível de discordância – isto é, uma discordância que apresente argumentos bem fundamentados, de acordo com a capacidade e experiência do estudante.

Esse problema da autoridade na educação me faz lembrar da questão do 2+2. Como gosto de dizer, 2 + 2 nem sempre é igual a 4. Esse resultado sempre dependerá da escala de medida que utilizamos (se nominal, ordinal, intervalar, ou de razão). E apenas nas escalas intervalar e de razão o resultado será 4. O motivo pelo qual pensamos que 2+2 é sempre igual a 4 é porque, na escola, a maioria de nós apenas utilizou a escala de razão.

Se nem com a matemática podemos atingir um produto que sempre será inquestionavelmente correto, o que dizer das humanidades?… É justamente por isso que prefiro que os estudantes sejam capazes de chegar a conclusões próprias (mesmo que pessoalmente não concorde com elas), construindo seus argumentos por meio da análise das evidências, comparando seus argumentos com aqueles que a instituição escolar lhes impõe, do que ensiná-los a aceitar a “tradição” sem questioná-la. Quem sabe um dia as escolas e as universidades não se tornarão templos da autonomia, espaços onde discordar construtivamente seja mais importante que marcar a opção “correta” em provas padronizadas… Sonho com esse dia!

Gibson

Gerações de pesquisadores ampliam a narrativa da Independência

Júlia Cherem Rodrigues

Os acontecimentos determinantes da Independência ainda transcorriam quando suas primeiras interpretações começaram a ser publicadas. Nos dois séculos que se passaram desde então, assim como a maneira de ler os episódios de 1822, também o perfil de seus intérpretes se transformou gradativamente. Essa história é contada no Dicionário da Independência: História, memória e historiografia, editado pelos historiadores da Universidade de São Paulo (USP) João Paulo Pimenta e Cecilia Helena de Salles Oliveira. Entre seus 765 verbetes, o dicionário contém quatro dedicados à tradição historiográfica, além de 39 sobre autores, vivos e mortos (ver reportagem “A Independência do Brasil de A a Z”).

Entre os intérpretes da Independência constam escritores e ensaístas célebres, como Euclides da Cunha (1866-1909), Joaquim Nabuco (1849-1910) e Florestan Fernandes (1920-1995); dois homens agraciados com títulos de nobreza durante o Império; oito integrantes da Academia Brasileira de Letras, alguns dos quais fundadores da instituição. São 37 homens, nove deles estrangeiros. As duas mulheres incluídas pesquisaram e escreveram na segunda metade do século XX: as historiadoras Emília Viotti da Costa (1928-2017) e Maria Odila Dias.

Nas primeiras décadas do século XIX, escrever sobre a Independência tinha um objetivo concreto: legitimar o surgimento do novo país, segundo Rafael Fanni, autor do verbete “Historiografia da Independência na Independência”. Três nomes se destacam nesse primeiro momento. Hipólito José da Costa (1774-1823), proprietário daquele que é considerado o primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense (1808-1822), defendia a atuação dos jornais na produção de uma “história contemporânea”, diz Fanni. Para fugir da censura, Costa editou seu jornal em Londres. Morto em 1823, não chegou a receber o convite do governo brasileiro para ser cônsul do novo país na capital britânica. Hoje, é considerado o patrono da imprensa brasileira.

José da Silva Lisboa (1756-1835), considerado o primeiro grande economista brasileiro, foi também pioneiro nos escritos sobre a formação do país. Em 1818, publicou Memória dos benefícios políticos do governo de D. João VI (Impressão Régia), em que interpretava a vinda da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, como marco de avanço civilizatório na colônia. Seu principal objetivo era defender a monarquia e sua presença no país. Nessa toada, em 1825 Lisboa lançou o livro Introdução à história dos principais sucessos do Império do Brasil (Typographia Imperial e Nacional). Lisboa, que teve participação importante na abertura dos portos brasileiros após 1808, recebeu de dom Pedro I (1789-1834) o título de Visconde de Cairu (ver pesquisa FAPESP n° 313 ).

O terceiro nome a se destacar é estrangeiro. Ainda antes da Independência, entre 1810 e 1819, o inglês Robert Southey (1774-1843) publicou em Londres, em três volumes, sua History of Brazil (Longman, Hurst, Rees, Orme, and Brown), que teve grande influência sobre o modo como os brasileiros entendiam o nascimento de seu Estado nacional. Filho de comerciantes, Southey era poeta e funcionário público. Sua obra sobre o Brasil fazia parte de um projeto mais amplo, que trataria de todo o Império português, mas a empreitada jamais foi realizada. O britânico via a colonização “como empreendimento civilizador”, conforme o historiador André da Silva Ramos, da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), no verbete sobre Southey.

No século XIX, prevaleceram as análises que têm os eventos do Rio de Janeiro e de Lisboa como foco. Os autores do período eram sobretudo homens ligados à aristocracia ou ao Estado. O mais relevante foi Francisco Adolfo de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro (1816-1878), filho de um engenheiro alemão contratado para construir os altos-fornos da Real Fábrica de Ferro Ipanema, em Sorocaba (SP). Varnhagen passou a juventude em Portugal e chegou a lutar na Guerra Civil Portuguesa (1832-1834) ao lado de dom Pedro I. Sua História geral do Brasil (Laemmert) foi publicada entre 1854 e 1857, mas sua História da Independência do Brasil (RIHGB) só foi impressa postumamente, ao longo de 1916 e 1917. Como diplomata, Varnhagen consultou arquivos em Portugal, Espanha e outros países europeus. Costumava deixar uma marca pessoal nas obras que consultava: um “V”, a lápis, na margem da página.

A instituição mais importante para os estudos da formação do Brasil era o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838 (ver reportagem “Guardando a memória e escrevendo a história do Brasil”). A historiadora Lucia Maria Paschoal Guimarães, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), autora do verbete “História da Independência no século XIX”, informa que “na cerimônia de inauguração do instituto, um dos seus fundadores, o cônego Januário da Cunha Barbosa, lamentou que os estudos de história pátria estivessem entregues à pena de autores estrangeiros”. No entanto, a comissão prevista para recolher depoimentos sobre o período da Independência jamais foi instalada.

Século XX
Ao longo do último século, as leituras da Independência ganharam em diversidade e se descolaram da abordagem meramente política. A carreira de historiador se profissionalizou paulatinamente, sobretudo nas universidades. O perfil dos autores continuou predominantemente masculino e o foco de suas leituras seguiu voltado principalmente para os eventos políticos que ocorriam no Rio e em estados adjacentes, sobretudo São Paulo e Minas Gerais. Só na segunda metade do século a relevância de episódios como as guerras ao norte e ao sul ganharam destaque. Ao mesmo tempo, a separação do Brasil de Portugal passou a ser analisada por ângulos variados, com trabalhos de economistas, diplomatas e cientistas sociais.

Um momento decisivo ocorreu em torno do centenário da Independência, em 1922, cujas celebrações incluíram a reedição da História geral de Varnhagen, revisada por historiadores sob a coordenação de Capistrano de Abreu (1853-1927), além da publicação de documentos do período. Diferentemente de muitos de seus predecessores, o historiador cearense não vinha da aristocracia ou da classe alta – Abreu defendeu ideias liberais, abolicionistas e republicanas nas últimas duas décadas do Império, o que não o impediu de lecionar no Colégio Pedro II. Como funcionário da Biblioteca Nacional, publicou artigos argumentando contra a excessiva importância que a historiografia dedicava ao papel de dom Pedro I e seu pai, dom João VI (1767-1826), defendendo que as raízes da nacionalidade estavam nas bandeiras paulistas (século XVI), na guerra contra os holandeses em Pernambuco (século XVII) e na Inconfidência Mineira (1789).

A etapa seguinte da historiografia tem início na década de 1930, período de industrialização e urbanização, em que floresceram os “intérpretes do Brasil”, teóricos de formação diversa que buscaram explicar o país e sua história com visada ampla e ênfase em temas socioeconômicos. Entre eles destacam-se os sociólogos paulistas Caio Prado Junior (1907-1990) e Sergio Buarque de Holanda (1902-1982), além do jurista gaúcho Raymundo Faoro (1925-2003).

Prado Junior era militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e foi o primeiro grande intérprete da formação do Brasil a aplicar o método do materialismo histórico. Em sua obra, sobretudo no livro Evolução política do Brasil (Brasiliense, 1933), a Independência aparece como “aprendizado da revolução social, profunda, e não o de uma revolução considerada superficial, estritamente política”, escreve o historiador Paulo Henrique Martinez, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), autor do verbete sobre o sociólogo.

Conhecido pelo ensaio que deu origem ao livro Raízes do Brasil (José Olympio, 1936), Buarque de Holanda também se dedicou à Independência, como diretor da coleção História Geral da Civilização Brasileira (Difel), na década de 1960. No volume O processo de emancipação, que tratava do Brasil monárquico, o autor que foi bastante influenciado por um dos fundadores da sociologia moderna, o alemão Max Weber (1864-1920), analisa o movimento de libertação política do país.

Faoro, eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL) em 2000 e presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entre 1977 e 1979, durante a ditadura militar (1964-1985), também teve grande influência de Weber e dedica parte de Os donos do poder (Globo, 1958) à Independência. O período que vai de 1808 a 1824 é analisado pelo prisma do conflito entre a burocracia do Estado português e os produtores rurais do Brasil. A separação, porém, é vista não como revolução, mas como “transação”. Em sua concepção, em torno do imperador, proprietários de terra, comerciantes pouco vinculados a Portugal e alguns funcionários públicos teriam entrado em acordo para constituir o novo país.

No século XX, a Independência esteve, ainda, sob a lupa de pesquisadores estrangeiros. A partir da década de 1930, o americano Alan Manchester (1897-1983) escreveu uma série de obras importantes sobre o Brasil, como os artigos “The rise of the Brazilian aristocracy” (1931), “The paradoxal Pedro, first emperor of Brazil” (1932), “The recognition of Brazilian Independence” (1951) e “A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro” (1967). Seu principal livro é Preeminência inglesa no Brasil (Brasiliense, 1933), que enfatiza as relações internacionais do país nascente. Além da carreira de professor na Universidade Duke, nos Estados Unidos, Manchester foi adido cultural da embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro.

Outro importante autor estrangeiro é Richard Graham, norte-americano, filho de missionários nascido em Planaltina (GO), que começou a publicar sobre o tema na década de 1960. Para Henrik Kraay, autor do verbete a respeito de Graham, seu livro Escravidão, reforma e imperialismo (Perspectiva, 1979) “moldou a história social da escravidão que surgia nas décadas de 1970 e 1980”. Graham foi professor de diversas universidades nos Estados Unidos e se aposentou em 1999.

Na década de 1960, a historiadora Emilia Viotti da Costa (1928-2017) foi uma das primeiras autoras a se destacar nesse universo predominantemente masculino. Segundo o historiador Rafael de Bivar Marquese, da USP, autor do verbete dedicado a ela, sua principal contribuição foi integrar a história econômica e social com a história política, em ensaios como “Introdução ao estudo da emancipação política” (1966) e “A consciência liberal nos primórdios do Império” (1967). Viotti da Costa “procurou examinar as mediações entre o tempo longo das estruturas e o tempo curto dos eventos”, escreve Marquese, referindo-se aos processos econômicos e sociais, por um lado, e às plataformas políticas de grupos sociais, por outro.

A década de 1970 constitui um momento relevante para a historiografia da Independência. Em 1972, a celebração do sesquicentenário foi capitaneada pela ditadura militar e, contrastando com o caráter ufanista da comemoração oficial, nas universidades adotou-se um tom crítico, olhando para os eventos do passado com vistas a entender o presente, conforme a historiadora Wilma Peres Costa, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), autora do verbete “Historiografia da Independência no século XX”.

Esse foi o contexto da publicação da coletânea 1822: Dimensões (Perspectiva, 1972), coordenada pelo historiador Carlos Guilherme Mota, mais tarde fundador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. O livro forneceu um amplo panorama de visões sobre os eventos do período, com participação de Viotti da Costa, Fernando Novais (USP) e Ilmar Matos, então na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), e estrangeiros, como os franceses Frédéric Mauro (1921-2001) e Jacques Godechot (1907-1989) e o português Joel Serrão (1919-2008). A segunda parte da coletânea, denominada “Das Independências”, dedica cada capítulo a uma região do país, dando impulso à diversificação das perspectivas de análise, para além do tradicional olhar centrado no Sudeste do Brasil.

O capítulo “A interiorização da metrópole”, da historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias, que foi professora da USP e da PUC de São Paulo, obteve destaque particular. Nele, Dias argumenta que a historiografia da Independência dava pouca importância ao comportamento das elites brasileiras e apresenta essas elites como herdeiras de interesses da Coroa portuguesa. No início da carreira, Dias foi professora assistente na cadeira de Sergio Buarque de Holanda na USP. Mais tarde, desenvolveu influentes trabalhos de história social, como o livro Quotidiano e poder (Brasilense, 2001), em que explorou o papel de pessoas, sobretudo mulheres, que os estudos tradicionais deixavam de lado, incluindo “vendedoras de tabuleiros, lavadeiras em rios e chafarizes, aguadeiras”, escreve o historiador Elias Thomé Saliba, da USP, no verbete a ela dedicado.

Desde então, conforme escreve Peres Costa, a ideia da revolução perdeu espaço parcialmente para a de construção do país, e os estudos sobre a Independência passaram a tratar de temas variados: da condição social de mulheres, escravizados e indígenas à situação econômica das províncias. A digitalização de importantes acervos, como o da Torre do Tombo, em Portugal, e, no Brasil, o da Biblioteca Nacional, o do Arquivo Nacional e outros, tem facilitado o acesso a documentos e à pesquisa com dados, atraindo o interesse de economistas e cientistas sociais para a investigação das diferentes dimensões da dissolução do império português. Os verbetes do Dicionário da Independência, por exemplo, não foram escritos apenas por historiadores. Entre seus autores há cientistas políticos, economistas, museólogos, historiadores da arte e antropólogos.

Pimenta e Salles Oliveira, no verbete “Historiografia da Independência: temas atuais”, destacam dois grupos de estudos atuantes neste século. Um é o Centro de Estudo dos Oitocentos, fundado em 2002 pelos historiadores José Murilo de Carvalho, Gladys Ribeiro, entre outros, sediado na Universidade Federal Fluminense (UFF).  O outro é temático “Brasil: fundação do Estado e da nação”, criado em 2001 pelo historiador István Jancsó (1938-2010) e apoiado pela FAPESP entre 2004 e 2009. Segundo Peres Costa, que foi subcoordenadora do grupo, seu objetivo era reinterpretar temas como revolução, crise, Estado e nação, centrais no livro 1822: Dimensões. A principal inspiração foi a história dos conceitos, corrente de origem alemã que estuda a transformação histórica dos termos.

Nesse período, também se consolidou a tendência a uma historiografia mais diversa, que não olha apenas para os eventos políticos e econômicos na corte dos Bragança e nas elites agrárias. Os jovens pesquisadores demonstram grande interesse pelo papel de minorias, como as mulheres, os povos indígenas e a população negra, além dos episódios ocorridos nas antigas províncias de norte a sul do país.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.