“A violência… você combate com violência”, afirma Bolsonaro

Resolvi encontrar online a entrevista de Danilo Gentili com Jair Bolsonaro, e me forcei a assisti-la. Queria dar uma oportunidade ao mal-afamado deputado brasileiro para desfazer quaisquer preconceitos que tinha contra ele. E, confesso, não me surpreendi com absolutamente nada – a não ser com o fato de ele ser pago para representar seus eleitores, ou, antes, com o fato de haver eleitores que comprem tal tipo de discurso em pleno século XXI.

Quando Jair Bolsonaro dá voz à sua estreita visão de mundo (e, enquanto Deputado, à sua visão inconstitucional), ancorada no saudosismo da Guerra Fria, só prova que não possui uma compreensão do Estado Democrático de Direito que sua função de Deputado Federal deveria representar. Ele, talvez, não tenha lido ou compreendido os artigos iniciais da Constituição à qual deveria se submeter, tanto como cidadão quanto (principalmente) como Deputado:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, […] constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[…]

III – a dignidade da pessoa humana;

[…]

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

[…]

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

[…]

II – prevalência dos direitos humanos;

[…]

VI – defesa da paz;

VII – solução pacífica dos conflitos;

[…]

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

[…]

XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

[…]

XLVII – não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b) de caráter perpétuo;

c) de trabalhos forçados;

d) de banimento;

e) cruéis;

[…]

XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

[…]

LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; […]

Os artigos não são reflexo duma “política de direitos humanos” que, para o entrevistado, significaria um obstáculo ao que chama de segurança pública. Antes, as políticas que lidam com questões referentes aos direitos humanos é que têm sua origem na Constituição Federal. Assim, defender os direitos de qualquer pessoa que tenha sido flagrada em delito ou condenada como criminosa não é “defender marginal”; é, antes, defender a Constituição!

O artigo 5º assevera a inviolabilidade do direito à vida de todos os cidadãos brasileiros ou estrangeiros residentes no país; desta forma, as propostas do deputado é que desrespeitam a Constituição brasileira. Como agente do Estado, ele deve saber que suas ações e palavras devem estar apoiadas nos princípios e normas constitucionais. Afirmar que “A violência… você combate com violência” é violar esses princípios e normas. De acordo com a Constituição Federal, a violência se combate com a lei!… E isso, a propósito, não é ser “politicamente correto”, é se submeter à Constituição – a base do Estado Democrático de Direito brasileiro!

A ignorância do suposto pré-candidato à Presidência acerca da Lei chega a ser assustadora e patética; especialmente quando se põe a “trumpizar” seu discurso, tratando sobre questões como a imigração. O deputado, provavelmente, não sabe que o Brasil é parte duma comunidade chamada “Mercosul”, e não sabe que há obrigações ligadas à membresia nessa comunidade para com os demais membros!

Por fim, para não dizer que não apreciei nada que tenha dito, concordo com suas seguintes palavras: “Não tem solução fácil para o Brasil e não existe salvador da pátria para o nosso país.” Essa é uma confissão que deveria ressoar nos ouvidos de seus admiradores. Realmente não existe salvador da pátria algum: Bolsonaro não é a salvação do Brasil!

Uma breve nota sobre a questão da posse e porte de armas


Gibson Da Costa

Nunca tive muita paciência para com os “mentecaptos voluntários” – isto é, aqueles indivíduos que, mesmo podendo se informar, escolhem não o fazer, sejam quais forem suas razões. Quando se trata da discussão de temas “políticos” – como também de temas religiosos –, não faltarão “mentecaptos voluntários” advogando anátemas contra aqueles de quem discordam. Isso se evidencia ainda mais hoje, especialmente no pseudo-”conservadorismo” da moda que tomou as redes sociais digitais. [Os mentecaptos voluntários que se autoidentificam como “conservadores” parecem se ver como sinônimo da sofisticação intelectual – semelhantemente aos “esquerdistas” que tanto criticam, e que descrevem quase que como uma entidade única e abstrata… mas prefiro deixar meus comentários sarcásticos sobre isso para outra hora!]

Um desses “mentecaptos voluntários” brasileiros publicou comentários infelizes sobre o recente assassinato de dois profissionais da imprensa por seu antigo colega, e os tiroteios desta semana, ambos nos E.U.A., fazendo uma ligação entre a cobertura do caso e a discussão sobre o controle de armas para uso civil naquele país, e sinonimizando aquele contexto ao do Brasil. Seus leitores que também sejam voluntariamente mentecaptos devem ter concordado com sua teoria conspiratória… É uma pena! A retórica antidesarmamentista desses incoerentes pseudolibertários é uma piada de mau gosto, e um verdadeiro espetáculo de ignorância histórica! [Mas, calma! Ainda não estou advogando anátemas contra eles, só um pouco de sarcasmo!]

Filosófica, teológica e politicamente, sou contrário à ideia de qualquer poder externo ditar regras para minha vida pessoal. Não concordo com leis que controlem ou punam alguém por simplesmente externar um pensamento – por mais ofensivo que seja. Não concordo com leis que ditem regras para o comportamento privado dos cidadãos civilmente capazes, incluindo aquelas que ditam como pais devam criar ou educar seus filhos. Sou contrário ao uso e comércio de certos narcóticos e ao aborto, mas, ao menos parcialmente, penso que o que as pessoas fazem com seus corpos é problema seu – desde que eu, enquanto cidadão e pagador de impostos, não seja forçado a cobrir os custos por suas escolhas (na verdade, a discussão desses temas é muito mais complexa e não envolve apenas a questão do que as pessoas fazem a si mesmas, mas também deixarei esse tema para depois!). Apesar disso, acredito que a segurança do cidadão deva ser uma prerrogativa do Estado. Em meu ideário político, a propósito, a função básica do Estado – e “básica”, aqui, implica que ele pode ter mais funções – é justamente proteger e garantir a vida, a liberdade e o patrimônio do cidadão. [Esses três elementos são o que John Locke chamou de “propriedade”, que constituía um conceito muito mais amplo do que a “propriedade privada” proclamada por esses pseudolibertários brasileiros!]

Em se tratando do porte de armas no Brasil, o Estatuto do Desarmamento não “retirou um direito básico do cidadão” brasileiro. Portar armas nunca foi um direito básico do cidadão brasileiro. Desde 1603, pelo menos, havia leis que controlavam o porte de armas por “civis” aplicáveis à América portuguesa (as terras hoje integrantes da República Federativa do Brasil). As ordenações filipinas – conjunto onde se encontravam aquelas leis – estipulavam os detalhes sobre que tipos de armas podiam ser utilizadas por quem, quando, como, e onde. A legislação, obviamente, foi sendo alterada à medida da mudança de contextos.

Aqueles mentecaptos mais informados sobre a história do Direito nacional fazem, por sua vez, um tremendo esforço para justificar sua apologia ao porte de armas por civis através do apelo, na melhor das hipóteses equivocado, a tradições filosóficas e jurídicas estranhas ao contexto brasileiro. Sua base sempre será a tradição libertária americana, que defende uma noção de defesa congelada no contexto da América do Norte Britânica do século XVIII. Talvez eles devessem estudar mais as histórias da Inglaterra e dos Estados Unidos da América antes de publicarem e falarem as besteiras que espalham por aí!

Mas acho que, como um professor de História dos E.U.A. posso ajudá-los, um pouco, a se situarem. Vejamos…

A segunda Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América – que os “filósofos políticos” “pró-armas” brasileiros, consciente ou inconscientemente, tomam como base para sua argumentação (já que seus argumentos são apenas uma caricatura daqueles dos “conservadores” americanos) –, de 1789, assevera o seguinte, num texto hoje estilisticamente confuso:

Uma milícia bem regulada, sendo necessária à segurança dum Estado livre, o direito do povo de manter e portar armas, não será infringido.

Desde o próprio século XVIII, essa Emenda tem sido interpretada de duas formas pelos tribunais, cidadãos e políticos americanos: alguns defendem que ela garanta ao cidadão comum o direito inalienável de portar armas (a interpretação que os “pró-armas” brasileiros abraçam); outros defendem que ela apenas garante a cada Estado o direito de manter sua própria “milícia”.

Obviamente, não vale a pena focar as nuanças políticas da discussão nos E.U.A., já que os “pró-armas” do Brasil não a compreenderiam de qualquer forma – não porque não tenham a capacidade intelectual para tal, mas porque sua disposição não é de construir uma compreensão da questão, mas sim a de opor-se ao que pensam ser uma “bandeira esquerdista” (o controle da posse e porte de armas).

Eles não compreendem que, historicamente, aquela minúscula Emenda carrega uma tradição milenar britânica – testificada já pelas coleções jurídicas de William Blackstone – de os cidadãos (homens) terem a obrigação de ser parte de “milícias” para a defesa do “Direito”. Sua obrigação incluía o dever de fornecerem armas. Isso, obviamente, numa época na qual não existiam forças de segurança (polícia, forças armadas etc) profissionais.

No caso específico dos Estados Unidos, após a Revolução, havia a necessidade de todos os homens participarem duma “milícia bem regulada”, e como essas milícias ainda não eram forças profissionais, e como os Estados membros da União não tinham os recursos necessários para a manutenção de tais forças, o direito de manter e portar armas foi garantido. Mas esse era um direito atrelado a uma obrigação: “a segurança dum Estado livre”.

Percebeu?!

Se analisássemos as razões apontadas pelos autores liberais clássicos ingleses e americanos para a existência do Estado – o que não farei aqui –, veríamos que sua existência é justificada pela necessidade da proteção daqueles três elementos da “propriedade” do cidadão apontados por John Locke (a vida, a liberdade e o patrimônio). [Lembre-se que quando Locke escrevia sobre “propriedade” não era exclusivamente a bens (patrimônio) que ele se referia, era a esses três elementos.] Pare eles, a proteção desses era uma prerrogativa do Estado. É dessa perspectiva que emerge o direito de manter e portar armas na Constituição dos Estados Unidos.

Por que esse direito não é abolido na Constituição americana? Por inúmeras razões. Uma delas sendo porque a tradição constitucional americana geralmente não abole direitos – e como o direito à manutenção e porte de armas é parte integrante da Carta de Direitos, sua abolição é mais complexa e complicada.

No caso do Brasil atual, entretanto, há instituições de Direito que têm a função de proteger a “propriedade” (no sentido lockeano) do cidadão. O fato de haver corrupção e ilegalidades nessas instituições não pode ser justificativa aceitável para que retiremos delas a função de proteção e a passemos a cidadãos miliciados. Ademais, a posse e porte de armas nunca foi um direito constitucional básico dos cidadãos brasileiros!

Então, caros brasileiros “pró-armas”, mudem seus argumentos!

+Gibson