Uma breve resposta a críticas desinformadas sobre o Construtivismo

Como resposta a uma manifestação minha sobre as afirmações dum vlogger/autor brasileiro (guru duma nova geração autoproclamada “conservadora”), um colega me enviou a ligação para um vídeo no qual o mesmo autor discorre – em sua “civilizada” maneira! – sobre aquilo que ele chama de “método sócio-construtivista”, ou o que o resto de nós chama de “construtivismo”.

Abaixo, responderei, brevemente, a algumas das perspectivas expostas no vídeo – deixando de lado, por ter mais o que fazer da vida, as recorrentes grosserias do nobre filósofo para com seu público.

1. “Método sócio-construtivista”

O construtivismo, em si, não é um método de ensino, é um conjunto de teorias epistemológicas. Sobre essas – ou uma ou algumas dessas – múltiplas teorias podem-se construir diferentes métodos de ensino; assim, não há “o método construtivista de ensino”.

2. “Para o método construtivista de ensino só existe [sic] dois elementos em jogo: um é o aluno e o outro é o mundo, que é o objeto.”

A propósito, para alguém que ataca a “incorreção” gramatical alheia como uma forma de “burrice”, é interessante como Carvalho consegue cometer um erro de concordância verbal tão simples: ele, talvez, não saiba que o verbo “existir” deve concordar em número com seu complemento, assim “só existem dois elementos”! Mas, como não partilho da visão linguística do nobre filósofo e, assim, não penso que as pessoas que violam a “gramática” normativa sejam intelectualmente deficientes – se o fizesse, tanto ele quanto eu seríamos intelectualmente deficientes –, analisemos sua afirmação:

Não, para construtivistas não há apenas “dois elementos em jogo” no processo de aprendizagem. Para compreender isso, temos de nos lembrar de onde saem as ideias construtivistas. Temos de revisar um pouco da história da filosofia.

Pensemos sobre as questões epistemológicas da modernidade – isto é, questões que lidam com a origem do conhecimento. No chamado Ocidente, temos lidado, na modernidade, com três grandes tradições que buscam oferecer uma explicação filosófica para o ser e o fazer do conhecimento, e, consequentemente, para como aprendemos: A) a tradição racionalista moderna, iniciada por René Descartes; B) a tradição empirista, iniciada por John Locke; e, C) a via media da tradição interacionista de Immanuel Kant.

Explicando cada uma dessas grandes tradições de forma muito breve – e, portanto, deficiente –, poderíamos resumi-las da seguinte forma:

a) A tradição racionalista moderna → o racionalismo moderno emergiu como uma versão atualizada do idealismo platônico. Para a tradição platônica, já trazíamos, desde antes do nascimento, as ideias das coisas, que nossas almas já conheciam desde sua vinda do mundo das ideias verdadeiras/perfeitas. Em sua versão moderna, as ideias são compreendidas de forma mais ampla, mas, ainda assim, como algo que trazemos ao mundo – ou seja, como algo inato. Diferentemente do idealismo platônico, o racionalismo moderno se baseia no raciocínio a partir da natureza desenvolvida na modernidade. Em seu cerne, encontra-se a visão de que as únicas fontes de conhecimento sejam, exatamente, a razão e o pensamento.

b) A tradição empirista → opostamente ao racionalismo, o empirismo compreende o conhecimento como algo que se obtém a partir do mundo externo, por meio dos sentidos, da experiência. Assim, para os empiristas, nasceríamos com uma mente sem conteúdos – uma tábula rasa. O conhecimento seria obtido apenas através da experiência com o meio e com os estímulos externos – ou seja, o conhecimento viria do objeto, de forma passiva, para o indivíduo; o objeto externo é, assim, a única fonte de conhecimento.

c) A tradição interacionista → Immanuel Kant, em sua monumental “Crítica da razão pura”, ofereceu uma solução para os reducionismos tanto do racionalismo quanto do empirismo. Para Kant, tanto o sujeito quanto o objeto externo desempenhariam um papel na formação do conhecimento. Através da intuição recebemos as impressões dos objetos externos; e, através do entendimento, articulamos essas impressões, aplicando os conceitos que dão forma a esses objetos. Em outras palavras, o conhecimento seria formado através da interação entre o pensamento humano e a experiência sensorial. [Obviamente, a teoria do conhecimento desenvolvida por Kant é muito mais complexa do que essa simplificação, mas não é minha intenção aqui discuti-la – apesar de sua fundamentalidade para o construtivismo.]

Essa teoria epistemológica de Kant é a base filosófica para o construtivismo, originalmente, a chamada “epistemologia genética” de Jean Piaget. Piaget desenvolveu sua epistemologia genética influenciado pela epistemologia de Kant, mas é importante ter o cuidado de não sinonimizá-las – elas não são, necessariamente, a mesma coisa. Obviamente, o construtivismo, enquanto conjunto de teorias, recebeu contribuições importantes de outros pensadores além de Kant e Piaget, como Vygotsky, Luria e Wallon, por exemplo.

Mas, voltando à afirmação de Carvalho, na abordagem construtivista, aqueles dois elementos, tanto na formação do conhecimento quanto no processo de ensino-aprendizagem escolar, são insuficientes em si mesmos. É necessária a interação entre os dois; e, na escola, essa interação ocorre por meio da facilitação oferecida pelo professor.

3. “… e, no fim, chegará a obter toda uma concepção organizada do mundo a partir da [sic] mero experimento espontâneo. […] Agora, toda esta escola que foi adotada no Brasil, há cinquenta anos, e vê esses filhos das p***** desse Jean Piaget, Emilia Ferreiro, Vygotsky, Paulo Freire… todo esse bando de charlatão e vigarista [sic], p****!… O ensino é assim: o ensino não pode ser diretivo…”

Esse é o tipo de afirmação feito por quem não conhece as teorias que servem de base para o construtivismo. Os diferentes métodos construtivistas não são espontaneístas ou não-diretivistas, como assevera Carvalho. Piaget, por exemplo, ensinava que a aprendizagem é “provocada” pelo professor. Para Vygotsky, o professor é o “mediador” da aprendizagem. Para Wallon, é através da “intervenção” planejada e informada do professor que ocorre a aprendizagem na escola. Todos eles desmentem a afirmação do candidato a filósofo da educação acima sobre qual seria a perspectiva teórica construtivista.

4. “… é pra isto que existe a figura do mediador, do professor… sem o qual o aprendizado é impossível, impossível.”

Nesse ponto, posso concordar com o filósofo. Toda aprendizagem é sempre mediada. Para o construtivismo, na escola, essa figura de mediador é assumida pelo professor. Obviamente, o professor não é o único mediador no processo de aprendizagem duma criança, dum jovem ou dum adulto; ele o é no meio escolar.

É importante, aliás, conceituar a própria mediação, para evitarmos maiores incompreensões. O termo refere-se ao elo (leia-se “ponte”, “ligação”) entre o sujeito e seu objeto de aprendizagem – ou seja, é um processo de facilitação da construção do conhecimento por um personagem extra nessa interação entre o sujeito e o objeto. Isso é parte essencial das teorias construtivistas, e só alguém que não conheça as obras dos autores-chave dessa tradição poderia afirmar o contrário.

5. “Eu hoje mesmo tava [sic] lendo, a primeira página da Folha de São Paulo, você tem uns vinte erro [sic] de gramática na primeira página dum jornal, p****! Isso quer dizer que os profissionais de idioma não sabem mais o idioma… E as pessoas assim, elas não conseguem raciocinar…”

E isso foi, na verdade, para fechar com chave de ouro! Nem falarei sobre as perspectivas linguísticas abraçadas pelo pensador acima. Não preciso, agora, comentar mais nada dito nesse vídeo. Só me resta dizer que quando falamos, sem limites de bom senso, sobre tudo – mesmo aquilo que não conhecemos –, corremos o risco de, além de nos contradizermos, nos ridicularizarmos! Essa é uma lição que mesmo os grandes “filósofos” deveriam aprender!

Gibson Da Costa

Uma brevíssima explicação acerca da “shari’a”

 

 
Gibson da Costa
 


Fico sempre muito irritado quando ouço ou leio alguns comentários acerca da chamada “shari’a”. A maioria das pessoas, seguindo a retórica dos agentes da imprensa, refere-se à “lei islâmica” como se ela fosse uma “entidade” única e/ou como se fosse uma grande aberração.

…Eles não poderiam estar mais errados!

O Islã, como o Judaísmo e o Cristianismo, tem um código legal religioso. Enquanto o código legal judaico ortodoxo é chamado de “halakhah”, e o cristão é chamado de “direito canônico” (nas tradições católicas) ou “ordem eclesiástica / ordem da Igreja” (em muitas tradições protestantes), o código religioso da Ummah (a comunidade de fiéis muçulmanos) é chamado de “shari’a” (o Direito Islâmico). Nenhum deles, contudo, é estático ou uniforme. Como ocorre com as códigos civis, há espaço para muita diversidade interpretativa no que concerne a esses códigos.

O que importa, aqui, é que não há nada de absolutamente único ou estranho com o fato de haver um código legal religioso no Islã – com base no qual decisões são tomadas sobre a vida em comunidade, a aceitação ou exclusão de “(in)fiéis”, o status de certas pessoas, a aceitação ou não de certas crenças ou comportamentos etc. Isso pode não condizer muito com a mentalidade moderna ocidental, mas está presente em todas as comunidades de fé, em maior ou menor grau. Se você é parte de alguma comunidade de fé (igreja, centro, templo etc) que não possui um código legal explícito, se ela possui o status de Pessoa Jurídica, terá pelo menos um Estatuto Social (que mesmo sendo um documento civil, expõe expectativas que se baseiam nas perspectivas teológicas/religiosas daquela comunidade)!

Uma diferença que influencia na percepção que muitos cristãos ocidentais, especialmente não-católicos, têm da shari’a é o simples fato de o Cristianismo ocidental, de forma geral, enfatizar a “crença correta”, enquanto o Islã – assim como o Judaísmo –, de forma geral, enfatiza as “ações corretas”, o “comportamento correto” do fiel!

É importante tentar entender o próprio sentido do termo. “Shari’a”, em seu sentido não religioso, refere-se a um caminho que leva a um poço de água. Para as populações do deserto, um poço de água era/é a diferença entre a vida e a morte. Assim, aplicada à religião muçulmana, a “shari’a” seria um caminho que leva à vida – caminho esse divinamente revelado no texto sagrado (o Corão/Alcorão) e nas tradições orais atribuídas à Muhammad (que os muçulmanos acreditam ter sido Profeta). É nesse contexto que ela é a “Lei de Deus” – não muito diferente das ideias de “Lei de Deus” no Judaísmo ou no Cristianismo.

O Direito Islâmico não se baseia exclusivamente no Corão – como também ocorre com o Judaísmo/Cristianismo em relação à Bíblia. Isto é, em sentido amplo (no que concerne à teoria e à prática), há uma distinção entre a Lei de Deus (shari’a) – baseada naquilo que os muçulmanos creem ser revelações divinas – e a atividade humana de interpretar essa lei – chamada de “fiqh”. O Direito Islâmico é a combinação desses. De acordo com o fundador do Direito Islâmico, Muhammad ibn Idris al-Shafi’i (séc. VIII-IX d.C.), haveria quatro bases fundamentais para o Direito Islâmico: o Corão; a sunna de Muhammad; o consenso; e a analogia. Além dessas bases, sobre as quais concordam todas as escolas jurídicas islâmicas (madh’habs), há outras a depender da escola (madh’hab) em questão.

O termo “madh’hab” que citei acima, refere-se à cada uma das escolas jurídicas do Direito Islâmico. Essas escolas são tradições jurídicas que guiam a interpretação que um indivíduo ou grupo aceita em questões legais no Islã. Todo muçulmano adere a uma madhhab específica, independentemente do ramo islâmico do qual seja adepto.

No Islã sunita há, hoje, quatro madh’habs principais: a Hanafi; a Maliki; a Shafi’i (cujo nome vem de Muhammad ibn Idris al-Shafi’i, que citei acima); e a Hanbali (a escola que originou o ramo Salafi, que, por sua vez, influenciou a maioria dos movimentos jihadistas conhecidos – como a Irmandade Muçulmana, o Taliban, a al-Qa’ida, e o chamado Estado Islâmico). Todas elas possuem algumas subdivisões. Ademais, historicamente, possuem adeptos em regiões específicas do mundo – a depender de como o Islã se propagou por aquela região. Há muitas outras madh’habs, mas essas são seguidas por um número muito pequeno de adeptos que se encontram em regiões geográficas muito limitadas.

No Islã xiita, por sua vez, há um número ainda maior de madh’habs, mas as duas principais delas – ou seja, aquelas seguidas por um maior número de adeptos – são a Jaf’ari e a Batiniyyah, ambas com suas subdivisões.

Ou seja, se formos intelectualmente íntegros, nos recusaremos a comprar a retórica ignorante, islamofóbica, e nem um pouco inocente dos que atrelam a noção de “shari’a” ou “lei islâmica” ao terrorismo ou assassínio de “jihadistas radicais” – o próprio termo “jihadista” deve ser utilizado com cuidado, já que “jihad” não significa necessariamente “guerra física”; e ser um “jihadi” nem sempre se refere a fazer guerra física (o termo pode ser usado como uma metáfora duma “batalha espiritual” – noção muito comum a alguns cristãos hoje em dia, especialmente nas tradições pentecostais ou carismáticas). É bom lembrar, ademais, que no Islã não existe a expressão “guerra santa” – essa expressão é uma invenção “cristã”!

+Gibson

Uma breve nota sobre a questão da posse e porte de armas


Gibson Da Costa

Nunca tive muita paciência para com os “mentecaptos voluntários” – isto é, aqueles indivíduos que, mesmo podendo se informar, escolhem não o fazer, sejam quais forem suas razões. Quando se trata da discussão de temas “políticos” – como também de temas religiosos –, não faltarão “mentecaptos voluntários” advogando anátemas contra aqueles de quem discordam. Isso se evidencia ainda mais hoje, especialmente no pseudo-”conservadorismo” da moda que tomou as redes sociais digitais. [Os mentecaptos voluntários que se autoidentificam como “conservadores” parecem se ver como sinônimo da sofisticação intelectual – semelhantemente aos “esquerdistas” que tanto criticam, e que descrevem quase que como uma entidade única e abstrata… mas prefiro deixar meus comentários sarcásticos sobre isso para outra hora!]

Um desses “mentecaptos voluntários” brasileiros publicou comentários infelizes sobre o recente assassinato de dois profissionais da imprensa por seu antigo colega, e os tiroteios desta semana, ambos nos E.U.A., fazendo uma ligação entre a cobertura do caso e a discussão sobre o controle de armas para uso civil naquele país, e sinonimizando aquele contexto ao do Brasil. Seus leitores que também sejam voluntariamente mentecaptos devem ter concordado com sua teoria conspiratória… É uma pena! A retórica antidesarmamentista desses incoerentes pseudolibertários é uma piada de mau gosto, e um verdadeiro espetáculo de ignorância histórica! [Mas, calma! Ainda não estou advogando anátemas contra eles, só um pouco de sarcasmo!]

Filosófica, teológica e politicamente, sou contrário à ideia de qualquer poder externo ditar regras para minha vida pessoal. Não concordo com leis que controlem ou punam alguém por simplesmente externar um pensamento – por mais ofensivo que seja. Não concordo com leis que ditem regras para o comportamento privado dos cidadãos civilmente capazes, incluindo aquelas que ditam como pais devam criar ou educar seus filhos. Sou contrário ao uso e comércio de certos narcóticos e ao aborto, mas, ao menos parcialmente, penso que o que as pessoas fazem com seus corpos é problema seu – desde que eu, enquanto cidadão e pagador de impostos, não seja forçado a cobrir os custos por suas escolhas (na verdade, a discussão desses temas é muito mais complexa e não envolve apenas a questão do que as pessoas fazem a si mesmas, mas também deixarei esse tema para depois!). Apesar disso, acredito que a segurança do cidadão deva ser uma prerrogativa do Estado. Em meu ideário político, a propósito, a função básica do Estado – e “básica”, aqui, implica que ele pode ter mais funções – é justamente proteger e garantir a vida, a liberdade e o patrimônio do cidadão. [Esses três elementos são o que John Locke chamou de “propriedade”, que constituía um conceito muito mais amplo do que a “propriedade privada” proclamada por esses pseudolibertários brasileiros!]

Em se tratando do porte de armas no Brasil, o Estatuto do Desarmamento não “retirou um direito básico do cidadão” brasileiro. Portar armas nunca foi um direito básico do cidadão brasileiro. Desde 1603, pelo menos, havia leis que controlavam o porte de armas por “civis” aplicáveis à América portuguesa (as terras hoje integrantes da República Federativa do Brasil). As ordenações filipinas – conjunto onde se encontravam aquelas leis – estipulavam os detalhes sobre que tipos de armas podiam ser utilizadas por quem, quando, como, e onde. A legislação, obviamente, foi sendo alterada à medida da mudança de contextos.

Aqueles mentecaptos mais informados sobre a história do Direito nacional fazem, por sua vez, um tremendo esforço para justificar sua apologia ao porte de armas por civis através do apelo, na melhor das hipóteses equivocado, a tradições filosóficas e jurídicas estranhas ao contexto brasileiro. Sua base sempre será a tradição libertária americana, que defende uma noção de defesa congelada no contexto da América do Norte Britânica do século XVIII. Talvez eles devessem estudar mais as histórias da Inglaterra e dos Estados Unidos da América antes de publicarem e falarem as besteiras que espalham por aí!

Mas acho que, como um professor de História dos E.U.A. posso ajudá-los, um pouco, a se situarem. Vejamos…

A segunda Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América – que os “filósofos políticos” “pró-armas” brasileiros, consciente ou inconscientemente, tomam como base para sua argumentação (já que seus argumentos são apenas uma caricatura daqueles dos “conservadores” americanos) –, de 1789, assevera o seguinte, num texto hoje estilisticamente confuso:

Uma milícia bem regulada, sendo necessária à segurança dum Estado livre, o direito do povo de manter e portar armas, não será infringido.

Desde o próprio século XVIII, essa Emenda tem sido interpretada de duas formas pelos tribunais, cidadãos e políticos americanos: alguns defendem que ela garanta ao cidadão comum o direito inalienável de portar armas (a interpretação que os “pró-armas” brasileiros abraçam); outros defendem que ela apenas garante a cada Estado o direito de manter sua própria “milícia”.

Obviamente, não vale a pena focar as nuanças políticas da discussão nos E.U.A., já que os “pró-armas” do Brasil não a compreenderiam de qualquer forma – não porque não tenham a capacidade intelectual para tal, mas porque sua disposição não é de construir uma compreensão da questão, mas sim a de opor-se ao que pensam ser uma “bandeira esquerdista” (o controle da posse e porte de armas).

Eles não compreendem que, historicamente, aquela minúscula Emenda carrega uma tradição milenar britânica – testificada já pelas coleções jurídicas de William Blackstone – de os cidadãos (homens) terem a obrigação de ser parte de “milícias” para a defesa do “Direito”. Sua obrigação incluía o dever de fornecerem armas. Isso, obviamente, numa época na qual não existiam forças de segurança (polícia, forças armadas etc) profissionais.

No caso específico dos Estados Unidos, após a Revolução, havia a necessidade de todos os homens participarem duma “milícia bem regulada”, e como essas milícias ainda não eram forças profissionais, e como os Estados membros da União não tinham os recursos necessários para a manutenção de tais forças, o direito de manter e portar armas foi garantido. Mas esse era um direito atrelado a uma obrigação: “a segurança dum Estado livre”.

Percebeu?!

Se analisássemos as razões apontadas pelos autores liberais clássicos ingleses e americanos para a existência do Estado – o que não farei aqui –, veríamos que sua existência é justificada pela necessidade da proteção daqueles três elementos da “propriedade” do cidadão apontados por John Locke (a vida, a liberdade e o patrimônio). [Lembre-se que quando Locke escrevia sobre “propriedade” não era exclusivamente a bens (patrimônio) que ele se referia, era a esses três elementos.] Pare eles, a proteção desses era uma prerrogativa do Estado. É dessa perspectiva que emerge o direito de manter e portar armas na Constituição dos Estados Unidos.

Por que esse direito não é abolido na Constituição americana? Por inúmeras razões. Uma delas sendo porque a tradição constitucional americana geralmente não abole direitos – e como o direito à manutenção e porte de armas é parte integrante da Carta de Direitos, sua abolição é mais complexa e complicada.

No caso do Brasil atual, entretanto, há instituições de Direito que têm a função de proteger a “propriedade” (no sentido lockeano) do cidadão. O fato de haver corrupção e ilegalidades nessas instituições não pode ser justificativa aceitável para que retiremos delas a função de proteção e a passemos a cidadãos miliciados. Ademais, a posse e porte de armas nunca foi um direito constitucional básico dos cidadãos brasileiros!

Então, caros brasileiros “pró-armas”, mudem seus argumentos!

+Gibson

O que significa chamar o professor de “facilitador”?

Gibson da Costa


Nossas escolhas metodológicas são, em minha opinião, uma escolha política. Assim, a forma como ensinamos, e a forma como nos relacionamos com os estudantes em sala (e fora dela), é uma expressão da forma como compreendemos tanto o ser humano quanto a sociedade – um reflexo de nosso imaginário antropológico e político. Isso faz com que eu sempre me preocupe quando vejo uma sala de aula organizada em fileiras direcionadas ao professor, com ele ocupando uma posição magistral diante de seus alunos: o que essa organização diria sobre o imaginário antropológico e político da escola e do professor?

Nossa sociedade, no século XXI, precisa de jovens que possam resolver problemas, tomar decisões, pensar criativamente, comunicar ideias de forma eficaz, e trabalhar eficientemente independentemente e em grupo. O tipo de professor que funciona como “transmissor” de conhecimento por meio de aulas exclusivamente expositivas, falando duma posição de autoridade exclusiva em sala de aula é insuficiente para preparar o tipo de jovens que nossa sociedade precisa.

No mundo cada vez mais complexo e fluido no qual vivemos, os jovens precisam de oportunidades para desenvolverem capacidades e habilidades pessoais, associadas aos conhecimentos e compreensões previstos nos programas curriculares, como parte de sua educação escolar. Para tal, o professor precisa desenvolver a habilidade de engajar seus alunos ativamente no processo de ensino-aprendizagem, tornando-o uma experiência mais relevante, apreciável e motivadora. Pessoalmente, essa é uma escolha metodológica que espelha minhas próprias compreensões sobre o ser humano e sobre a vida em comunidade – meu imaginário antropológico e político.

Esse processo de ensino-aprendizagem no qual os alunos participam mais ativamente tem implicações diretas para o papel desempenhado pelo professor em sala de aula. Há, aí, uma mudança daquele conhecido modelo centrado no professor para uma abordagem centrada no aluno. Há, também, uma mudança do ensino-aprendizagem centrado no produto para um ensino-aprendizagem centrado no processo.

Colocar o aluno na posição central no processo de ensino-aprendizagem não significa, diferentemente do que se poderia pensar, diminuir a importância do professor nesse processo. Como afirma Libâneo,

O professor é aqui um parceiro mais experiente na conquista do conhecimento, interagindo com a experiência do aluno. O papel do ensino – e, portanto, do professor – é mediar a relação de conhecimento que o aluno trava com os objetos de conhecimento e consigo mesmo, para a construção de sua aprendizagem. O papel do ensino é possibilitar que o aluno desenvolva suas próprias capacidades para que ele mesmo realize as tarefas de aprendizagem e chegue a um resultado.1


Poderíamos ilustrar essa mudança de abordagens por meio do uso de uma tabela. Do lado esquerdo, veremos aquilo que poderíamos chamar de abordagem magistral (porque centrada na autoridade exclusiva do professor) do processo de ensino-aprendizagem, e, do lado direito, aquilo que nomearemos abordagem democrática (porque centrada na participação comunitária de todos os envolvidos) do processo de ensino-aprendizagem – como a mudança de papel do professor implica, também, uma mudança de papel do aluno, dividirei a lista em duas partes:

PAPEL DO PROFESSOR

De uma “abordagem magistral”

Para uma “abordagem democrática”

Centrada no professor

Centrada no aluno

Centrada no produto

Centrada no processo

Professor é “transmissor do conhecimento”

Professor é “organizador do conhecimento”

Professor é o que faz, o que tem as respostas

Professor facilita a aprendizagem

Foco na matéria/componente curricular específico

Foco numa aprendizagem holística

PAPEL DO ALUNO

De uma “abordagem magistral”

Para uma “abordagem democrática”

Recipiente passivo do conhecimento

Aprendiz ativo e participativo

Centrada na resposta a perguntas

Centrada no questionamento

Receptor da “transmissão” do professor

Assume responsabilidade por sua própria aprendizagem

Compete com outros alunos

Colabora com outros para sua aprendizagem

Quer dominar a discussão, sempre tendo razão

Ativa e participativamente, ouve às opiniões dos outros

Aprendiz de matéria/componentes individuais

Conecta e inter-relaciona sua aprendizagem


Mas o que significa, afinal de contas, chamar o professor de
facilitador?

Num ambiente escolar onde se opta por uma abordagem democrática do processo de ensino-aprendizagem – isto é, uma abordagem que enfatiza uma participação ativa dos estudantes nesse processo –, o professor apoia seus alunos em seus esforços para aprenderem e desenvolverem habilidades tais como avaliar evidências, negociar, tomar decisões informadas, resolver problemas, trabalhar independentemente ou em grupo, etc. Para isso, a participação dos alunos em seu próprio aprendizado é essencial.

Algumas vezes, o professor-facilitador terá de assumir um papel ou uma função específica para melhorar a aprendizagem na sala de aula, ou para desafiar seus alunos para que pensem de forma diferente. Alguns desses papéis poderiam incluir:

  • facilitador (aparentemente) “neutro”: leva o grupo a explorar diferentes pontos de vista sem explicitar sua própria opinião (tendo-se em mente, obviamente, que absolutamente ninguém encontra-se numa posição de “neutralidade”);

  • advogado do diabo: o professor deliberadamente adota uma posição oposta para confrontar os alunos, independentemente de sua própria visão;

  • posições explícitas: o professor declara sua própria posição, para que o grupo, assim, conheça suas opiniões;

  • aliado: o professor apoia a visão de um subgrupo ou indivíduo (geralmente uma minoria);

  • posição oficial: o professor informa à turma a posição oficial sobre certos temas, por exemplo, a Constituição Federal, as leis, certas organizações etc – um exemplo: “nesta classe não aceitaremos insultos racistas, sexistas, homofóbicos, porque além de serem descorteses, violam a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Constituição Federal e as leis brasileiras”;

  • desafiador: o professor, através de questionamentos, desafia as opiniões sendo expressas pelos alunos e encoraja-os a justificarem suas posições;

  • provocador: o professor apresenta um argumento, ponto de vista ou informação que ele sabe provocará a turma, e nos quais ele não necessariamente acredita, mas por serem crenças autênticas de outros indivíduos ou grupos, ele os apresenta convincentemente;

  • ator: o professor torna-se uma pessoa ou personagem particular (por exemplo, um político, comunicador, ou líder religioso), apresentando à classe seus argumentos ou opiniões.


Os papeis listados acima apresentam suas vantagens e suas desvantagens, e é deveras importante considerá-las quando do planejamento de nossas aulas. Algumas perguntas sobre as quais poderíamos pensar incluem:

  • Como me sentirei se assumir este papel?

  • Posso pensar em áreas de minha prática atual nas quais alguns desses papeis poderiam ser desempenhados?

  • Já assumo alguns desses papeis inconscientemente?

  • Há alguma necessidade específica em minha turma que deva ser considerada?

  • Que estratégias posso usar para lidar com problemas difíceis e desafiadores que possam surgir?

  • Já decidi exatamente quais são os objetivos da aula?

  • Etc, etc, etc…


É importante lembrar-se, contudo, que para que nos tornemos facilitadores em sala de aula, devemos nos engajar num cuidadoso trabalho de planejamento. Em minha própria experiência, assumindo diferentes papeis em sala – de acordo com meus objetivos –, isso é ainda mais importante. É só por meio dum cuidadoso planejamento que podemos saber o que poderia ou não funcionar com nossas turmas, nossos objetivos, o tema que trataremos em sala etc; ajudando, assim, nossos alunos a assumirem eles mesmos um papel mais ativo em sua aprendizagem.

 

Referências

1LIBÂNEO, José Carlos. Didática: velhos e novos temas. [S/l]: Edição do Autor, 2002., p.5.