Justiça da Independência teve rupturas, mas também continuidade

Em 1835, Jean Baptiste Debret pinta mulheres negras livres tirando seu sustento de atividades profissionais

Museu Imperial

Em julho de 1826, na recém-criada Câmara dos Deputados do Brasil, foi protocolada a petição de um indivíduo de nome Delfino, que afirmava ser um liberto, injustamente preso no Rio de Janeiro, enquanto se desenrolava uma disputa judicial sobre a legalidade de sua alforria. No texto, para resgatar Delfino do calabouço, seus representantes evocavam temas caros àquele período histórico: a liberdade individual, as garantias constitucionais e a presunção de inocência. Depois de uma guerra de agravos, embargos e recursos, o caso chamou a atenção dos parlamentares eleitos.

O episódio é relatado no artigo “Escravo até prove-se o contrário: Petição do liberto Delfino à Câmara dos Deputados (1826)”, das historiadoras Adriana Pereira Campos e Kátia Sausen da Motta, ambas da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Na história de Delfino, é possível ver em filigrana diversos elementos que compunham a Justiça nos primeiros anos do Brasil independente: o uso das petições, o papel do Parlamento, a difícil situação de escravizados e libertos. Era um tempo de rupturas, mas também de continuidade, que se refletiu no exercício da Justiça do país.

O começo do século XIX foi marcado por transições não só no Brasil, mas também na Europa e nos demais países da América. Na esteira das revoluções americana e francesa, surgiam os Estados constitucionais e representativos, para suplantar as monarquias do “antigo regime”. A Justiça e suas instituições foram profundamente transformadas por essa transição. Até o século anterior não havia separação dos poderes como a que conhecemos hoje. “A principal função do monarca, na lógica do “antigo regime”, era a Justiça, entendida como dar a cada um o que lhe é de direito”, afirma a historiadora Monica Duarte Dantas, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). “É uma Justiça que não se baseia simplesmente na aplicação de leis positivas – tal como se conhece hoje –, mas envolve uma série de outras produções normativas, escritas ou não. ”

As fontes do direito, ou seja, aquilo que fundamenta as decisões dos magistrados, eram múltiplas, incluindo a legislação régia (cujas complicações eram conhecidas no Império português como ordenações), mas também corpus do direito romano e do direito canônico, doutrina, normas e costumes locais, muitas vezes não escritos. “Dado que se tratava de uma sociedade corporativa, e não uma sociedade de indivíduos, administrar a justiça pressupunha considerar as particularidades e privilégios derivados do lugar social que cada um ocupava. Vários desses corpos possuíam não só normas e práticas próprias, que não estavam hierarquicamente abaixo da legislação régia, como tinham direito a tribunais ou juízes privados. Havia, por exemplo, o juízo dos moedeiros [fabricantes de moedas], que só deixou de existir em 1830. E os moedeiros, como todos os que desfrutavam de juízos próprios, podiam demandar que quaisquer casos, envolvendo até mesmo suas famílias, fossem julgados em tais foros privados”, acrescenta Dantas.

Segundo José Reinaldo de Lima Lopes, da Faculdade de Direito da USP, a Constituição brasileira de 1824 (com alguns excertos ilustrando esta reportagem) adotou o molde das cartas europeias da Restauração, período que se seguiu à queda de Napoleão Bonaparte (1769-1821) na França, em 1815. “Era monárquica, moderada, com participação limitada dos cidadãos e diversos mecanismos de filtragem do poder imediato do povo, como eleições indiretas e o voto censitário”, resume. Os arquitetos da nova ordem política e jurídica conceberam um princípio de “governo misto”, conjugando elementos populares (como as eleições), aristocráticos (como o Senado vitalício) e monárquicos (como o imperador). “Os debates da época no Brasil mostram que havia muito desejo de mudar, combinado com o temor das inclinações passionais das ‘massas’, tanto de homens livres quanto de escravizados. As convulsões e instabilidades das décadas de revolução eram bem conhecidas e assustavam muito”, afirma Lopes.

Essas características bastavam para que o ordenamento jurídico a ser criado fosse muito diferente do anterior. “Tanto que levou muito tempo para que os oficiais e servidores públicos se acostumassem. Os juízes, por exemplo, continuavam consultando o governo sobre como decidir certos casos”, observa Lopes. “Muito do que chamamos de direito privado, como o direito dos contratos, da posse e da propriedade, da família, dos negócios, continuou sendo regido por leis e doutrinas existentes anteriormente à Independência. A Igreja continuou gozando de sua jurisdição sobre assuntos de família e sobre seus próprios instrumentos de ação.”

Para a historiadora Andréa Slemian, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), embora a Constituição de 1824 não tenha, no Brasil, instalado de uma vez por todas um Estado nacional e moderno, ela é um documento de princípios cujo efeito mais relevante é projetar um novo modelo político, centrado no poder das leis, não mais do monarca. “É possível dizer que a primeira Constituição tinha menos poder normativo do que a de hoje, porque muito da prática jurídica anterior foi mantida”, observa. “Mas a Carta tinha a pretensão de normalizar uma nova sociedade, sob novos princípios. Ao projetar esses princípios, a Constituição foi um documento de referência para a construção da Justiça em todo o século XIX.”

Museu ImperialTambém de Debret, o quadro mostra a entrega de mantimentos a prisioneiros, em 1839Museu Imperial

A Constituição de 1824 previa a criação de um Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para julgar empregados privilegiados, como ministros, conselheiros de Estado, empregados diplomáticos, presidentes de província, e conceder revista nos processos julgados, em segunda instância, nos tribunais de Relação. O STJ passou a funcionar em 1828. Mas a Casa de Suplicação, criada no Brasil quando da chegada da família real, só deixou de existir em 1833. A Carta outorgada previa também a elaboração de códigos – mencionando especificamente o Civil e o Criminal. Enquanto os novos textos eram elaborados, o país manteve total ou parcialmente vigentes as leis de seu tempo de Colônia. Os dois primeiros códigos – Criminal e de Processo Criminal – foram adotados, respectivamente, em 1830 e 1832. As discussões sobre um código comercial começaram na década de 1830, mas ele só foi aprovado em 1850. Na segunda metade do século, foram debatidos projetos de um Código Civil. Ele só seria aprovado, contudo, em 1916.

Os códigos aprovados no começo da década de 1830 continham dispositivos que, enfim, revogaram a legislação penal do período anterior e, por isso, constituíram marcos na transição política do Brasil, de Colônia a país independente na era moderna. Já a legislação civil se manteve no registro anterior, com atualizações. “Quem fez essas atualizações foram os próprios doutrinadores do direito. O caso mais famoso é o das ordenações filipinas, editadas por Cândido Mendes [1818-1881] em 1870. Ele elencou o que seguia em vigor e o que não vigia mais”, diz Slemian.

A Carta de 1824 introduziu duas inovações principais no ordenamento jurídico do jovem país. Ambas refletiam uma preocupação com o modo de funcionamento da Justiça. “O Judiciário do Brasil nascente não foi pensado para uma sociedade de massas como a nossa, mas primeiramente para resolver o problema da corrupção da Justiça colonial e do arbítrio dos juízes na aplicação das penas”, comenta Lopes.

A primeira dessas inovações foi o júri, tanto em matéria criminal quanto em matéria cível. Novidade oriunda dos países anglo-saxões e adotada na Revolução Francesa para casos criminais, foi originalmente adotado no Brasil para os crimes de abuso de liberdade de imprensa, sendo expandido para todos os crimes em 1832. O júri era considerado, segundo Dantas, um bastião de defesa e garantia dos direitos dos cidadãos. Ainda que a Constituição previsse o júri no cível, ele nunca foi efetivamente adotado. Ainda que várias das lideranças do processo de independência dos países hispano americanos defendessem a instituição dos jurados, ele só seria de fato adotado décadas depois. Segundo Slemian, o júri refletia os anseios dos movimentos revolucionários latino-americanos por formas de justiça popular.

A segunda foi a eleição para o cargo de juiz de paz, autoridade que não precisava ter formação jurídica e exercia funções amplas. Previsto na Constituição para a conciliação, em 1827 tornara-se responsável também pela manutenção da ordem pública, pelos corpos de delito e por julgar pequenas causas, tanto cíveis como criminais. Em 1832, passou a responder também pela formação da culpa, correspondente ao que hoje chamamos de inquérito. Havia um juiz de paz para cada freguesia, a menor divisão administrativa do país. “Nesse sentido, o juiz de paz tinha proximidade maior com a população do que as autoridades municipais e, mais ainda, os juízes de direito, um por comarca, a maioria delas compreendendo vários municípios, ou seja, territórios muito vastos”, diz Dantas.

Diferentemente das eleições para deputado e senador, que eram indiretas, os vereadores e juízes de paz eram escolhidos pelo conjunto de todos os votantes, isto é, homens livres com mais de 25 anos e renda superior a 100 mil réis anuais, incluindo analfabetos e libertos. “Era um valor baixo, que ficou ainda menor com o passar dos anos devido à inflação”, comenta Dantas. “A população estava mais próxima dessa Justiça do que estamos hoje em dia, por exemplo.”

De acordo com o cientista político Christian Lynch, do Instituto de Estudos Políticos e Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), a adoção do sistema de jurados e a eleição de juízes de paz sem formação jurídica estão associadas a um projeto de descentralização política, característico de elites locais. No Brasil, essas elites eram compostas sobretudo por proprietários de terras, donos de escravizados e integrantes da burocracia estatal.

Pinacoteca do Estado de São PauloA chegada de desembargadores ao Palácio da Justiça, em 1839, no Rio de Janeiro, na visão de DebretPinacoteca do Estado de São Paulo

“Essa categoria queria seguir o modelo dos Estados Unidos, que elegia xerifes e usava o sistema de júri, porque odiava o ‘antigo regime’. Os juízes de fora e desembargadores, que eram bacharéis, apareciam para eles como representantes de uma antiga nobreza, do Estado central”, explica. “Por isso, simpatizavam com a ideia de juízes e jurados locais, eleitos pelo povo. Mas o Brasil não tinha povo como na Europa. Era um país escravista, então a maior parte da classe trabalhadora estava excluída, sem direitos civis. Quem era o povo? Os donos de escravizados. Em um país como esse, federalismo era quase feudalismo”, conclui.

Na década de 1840, parte dessas inovações foi revogada com a reforma da legislação. O juiz de paz perdeu suas funções judiciárias para delegados que não eram eleitos, mas indicados pelo poder central no Rio de Janeiro. O movimento fez parte do chamado “regresso conservador”, em que a tendência à descentralização política foi revertida no país.

A instituição das petições, como a que o liberto Delfino endereçou à Câmara dos Deputados, é remanescente das práticas do período anterior, observa Slemian. “Se uma pessoa escravizada tivesse comprado sua liberdade, mas o senhor ou seus herdeiros se negassem a reconhecê-la, havia dois caminhos. Podia abrir um processo ou enviar uma petição ao governador, que tinha o poder de fazer com que a questão fosse investigada e até mesmo que a alforria fosse cumprida”, resume. O parágrafo XXX do artigo 179 da Constituição de 1824, que continha uma declaração de direitos, cristalizou no novo regime a instituição das “reclamações ou petições” ao Legislativo e ao Executivo.

A historiadora pesquisou os chamados tribunais da relação, que correspondiam à segunda instância e estavam instalados em Salvador, Rio de Janeiro, Recife e São Luís. Embora fosse uma instituição essencialmente jurídica e, no caso do país independente, formalmente pertencente ao Poder Judiciário, o tribunal da relação também lidava com as petições, documento não vinculado a processos judiciais. “As petições tinham muita força no mundo jurídico antigo. Elas mostram que, apesar de todas as críticas à morosidade da Justiça e à corrupção dos juízes, existiam formas efetivas de capilaridade social da Justiça”, afirma.

Na petição de Delfino, lê-se que “o suplicante, como liberto, é um cidadão e como tal não pode ser preso, e muito menos continuar a existir em prisão”. A frase expressa uma característica da Constituição aprovada poucos anos antes, a respeito de um traço marcante do Brasil. Embora a escravidão fosse uma das instituições basilares do país no século XIX, há uma única referência a ela no texto constitucional de 1824, e velada: “No artigo 6°, parágrafo I, constam entre aqueles com direito à cidadania brasileira os nascidos no território brasileiro, ‘quer sejam ingênuos ou libertos’”.

Assim, como mostram Campos e Motta, os representantes de Delfino recorreram ao texto constitucional para afirmar que, ao receber a carta de alforria, ele não apenas deixava a categoria de escravizado como adentrava a de cidadão. Ora, a declaração de direitos do artigo 179 vedava a prisão sem culpa formada, instituía a fiança e abria a possibilidade de queixas a prisões arbitrárias.

Todavia, para infelicidade de Delfino, os parlamentares não deram abrigo aos argumentos. Em sua resposta, declararam que “o suplicante não pode dizer-se cidadão enquanto não for ultimamente decidida a questão que pende sobre a sua liberdade”. Com isso, Delfino teve de esperar no cárcere a decisão final do nascente Judiciário brasileiro. O registro dessa decisão ainda não foi encontrado.

Projetos
1. Remédios para a Justiça: Um estudo sobre os recursos judiciais nos Tribunais da Relação, entre o Império português e o do Brasil (c. 1750-c.1840) (no 17/18137-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Andréa Slemian (Unifesp); Investimento R$ 86.632,81.
2. Governantes e juízes: O problema da determinação do direito no Brasil imperial (nº 15/23689-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Pesquisador Visitante – Internacional; Pesquisador responsável José Reinaldo de Lima Lopes (USP); Pesquisador visitante Carlos Garriga Acosta; Investimento R$ 34.520,68.

Livros
LOPES, J. R. de L. História do direito e da Justiça no Brasil do século XIX. Curitiba: Juruá, 2017.
LYNCH, C. E. C. Da monarquia à oligarquia. História institucional e pensamento político brasileiro (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2014.
SLEMIAN, A. Sob o império das leis. Constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822-1834). São Paulo: Hucitec, 2009.
CAMPOS, A. P. e MOTTA, K. S. da. Escravo até prove-se o contrário: Petição do liberto Delfino à Câmara dos Deputados (1826). In: O espelho negro de uma nação. A África e sua importância na formação do Brasil. Vitória: Edufes, 2019.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

Erros e acertos dos caminhos da Independência

Trecho da Calçada do Lorena, que corta a serra do Mar

Hélio Nobre / MP-USP

Em 7 de setembro de 1822, antes de subir a serra do Mar e chegar à cidade de São Paulo, então com 10 mil habitantes, Pedro de Alcântara (1798-1834), filho do rei de Portugal, dom João VI (1767-1826), e príncipe regente do Brasil, valeu-se de um barco para ir de Santos a Cubatão. O trecho não foi feito a cavalo, como consta em alguns livros de história, porque não havia caminho por terra entre a ilha santista e o continente.

Ao subir a serra por um caminho de pedra conhecido como Calçada do Lorena e mesmo ao gritar o famoso “Independência ou morte”, o príncipe regente e seus 36 acompanhantes provavelmente estavam em mulas, não em cavalos garbosos como os do famoso quadro do pintor Pedro Américo (1843-1905). As mulas eram o meio mais seguro de subir a serra do Mar e não há relatos de que tenham trocado de animais, de acordo com estudos recentes de pesquisadores do Museu Paulista (MP).

Fonte Jorge Pimentel Cintra/MP-USP | Infográfico Alexandre Affonso

Outra conclusão das pesquisas: o lugar exato da declaração da Independência encontra-se na verdade a 200 metros (m) ao norte de onde o marco histórico, uma rocha em forma de paralelepípedo, foi colocado em 1825, a 600 m do riacho do Ipiranga, um córrego de 9 quilômetros (km) hoje parcialmente canalizado. O marco colocado em lugar errado foi perdido e só reencontrado em 1922, durante a reforma do Parque da Independência, mas não foi mais reposto.

“Estamos consertando muitos detalhes da história da Independência”, diz o engenheiro especializado em cartografia histórica Jorge Pimentel Cintra, da Escola Politécnica e do MP, ambos da Universidade de São Paulo (USP), que em 2013 refez e apresentou o mapa das Capitanias Hereditárias na revista Anais do Museu Paulista. Nos últimos três anos, ele consultou relatos e representações gráficas, subiu e desceu a serra do Mar várias vezes e conversou longamente com colegas historiadores.

José Rosael / Hélio Nobre / MP-USP / wikimedia commonsCalçada de Lorena, aquarela de 1826 de Oscar Pereira da SilvaJosé Rosael / Hélio Nobre / MP-USP / wikimedia commons

Como resultado, ele refez a cartografia dos 64 km percorridos em um dia por dom Pedro desde Santos até o Pátio do Colégio, então sede do governo paulista. Foi lá que terminou o dia de trabalho do então futuro primeiro imperador do Brasil. À noite ele foi ao teatro da Ópera, ostentando uma braçadeira de ouro confeccionada às pressas em que se lia “Independência ou morte”. Em uma das exposições do MP que deve ser aberta em 7 de setembro, um vídeo de 10 minutos mostrará, por meio de um sobrevoo, o caminho entre Santos e o Pátio do Colégio no dia da Independência.

Um dos mapas elaborados pela equipe do museu apresentará a Calçada do Lorena, a primeira estrada pavimentada entre a capital e o porto de Santos, usada para escoar a produção de açúcar do interior paulista. “Até agora, não havia nenhum mapa detalhado”, afirma Cintra, que percorreu o caminho marcando as coordenadas com um aparelho de GPS (ver quadro e mapa).

Werner Haberkorn / Fotolabor / Museu Paulista – USPA pista sul da Via Anchieta na fase final de construção, na década de 1950Werner Haberkorn / Fotolabor / Museu Paulista – USP

Do Paço Imperial ao Pátio do Colégio
A viagem que culminou com a Proclamação da Independência começou quase um mês antes. Na manhã de 14 de agosto de 1822, decidido a fazer alianças com fazendeiros, desfazer ameaças de motins e preparar o terreno para a separação política de Portugal, o príncipe, com sua comitiva, saiu do Palácio Imperial, atualmente chamado Palácio de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Atravessou cidades do Vale do Paraíba, então uma próspera região cafeeira e, depois de cavalgar cerca de 500 km, chegou a São Paulo em 25 de agosto (ver mapa).

Dez dias depois de conversas com políticos, beija-mãos e acenos para o povo, Pedro retomou o roteiro planejado e, agora de mula, seguiu para o litoral: desceu a Calçada do Lorena e chegou à então vila de Santos. Passou ali o dia 6, em visita a fortalezas e à família de seu ministro José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838). O historiador mineiro Eduardo Canabrava Barreiros (1908-1981) detalha esse trajeto no livro Itinerário da Independência (José Olympio, 1972).

Fonte Jorge Pimentel Cintra/MP-USP | Infográfico Alexandre Affonso

“Barreiros diz que dom Pedro e sua comitiva passaram por um aterro e cruzaram rios para ir de Cubatão a Santos, mas não é possível, porque esse caminho só foi construído cinco anos depois”, comenta Cintra, após examinar os relatos e os mapas do Itinerário. Sua conclusão é de que os viajantes devem ter ido de barco ou saveiro, como os retratados em Santos na época pelo pintor e naturalista britânico William Burchell (1781-1863). “O caminho por barco passa pelo largo do Caneu, em Santos, e segue pelo rio Cubatão até o porto de desembarque”, diz ele. “Essa correção proposta pelo Cintra é absolutamente necessária, porque o que estava sendo dito não existia em 1822”, reforça o historiador e curador do MP Paulo César Garcez Marins, que não participou da pesquisa.

Na madrugada do dia 7, um sábado, Pedro, com seu grupo, voltou à capital da capitania de São Paulo subindo a Calçada do Lorena, que a equipe do museu examinou atentamente. O nome é uma homenagem ao governador da capitania de São Paulo, o português Bernardo José Maria de Lorena (1756-1818), que promoveu sua construção.

Hélio Nobre / MP-USPPadrão do Lorena, monumento em homenagem ao governador da capitania de São Paulo, o português Bernardo José Maria de Lorena, que promoveu a construção da CalçadaHélio Nobre / MP-USP

Bastante íngreme, com um desnível de cerca de 700 m entre as pontas, tem um trajeto em zigue-zague, com 133 curvas e não 180, como atestou o grupo da USP, largura entre 3,2 m e 4,5 m e uma extensão de cerca de 9 km, cercada de mata densa, com chuva constante, sem cruzar nenhum curso d’água.

A Calçada foi planejada por engenheiros militares, construída por mão de obra escravizada e operou de 1790 a 1846, substituindo “caminhos que pouco mais eram do que as primitivas trilhas indígenas”, acentuou o arquiteto e professor da USP Benedito Lima de Toledo (1934-2019) em um artigo publicado em dezembro de 2000 na revista PosFAUUSP.

Léo Ramos ChavesCasa do Grito, no parque da Independência, construída em 1844Léo Ramos Chaves

“O que mais surpreendeu a população foi a técnica empregada na pavimentação: o calçamento com lajes de pedra”, relatou Toledo. Segundo ele, a nova técnica de pavimentação assegurou “o trânsito permanente de tropas de muares que, por essa época, principiavam a ser largamente empregadas no transporte de carga”. Antes, tudo o que se destinava ao porto de Santos era “transportado no ombro de indígena”.

Tomada pela mata, a Calçada foi restaurada no início da década de 1990 pela Eletropaulo, estatal do setor elétrico hoje extinta, gerenciada pela Fundação Florestal e concedida para exploração da iniciativa privada em 2020. Foi aberta para visitação no ano seguinte e recebe atualmente de 3 mil a 5 mil pessoas por mês, de acordo com o biólogo Maycon de Oliveira Morais, da empresa Parquetur. “Aprendemos muito com a equipe do museu”, diz ele.

Fonte Jorge Pimentel Cintra/MP-USP | Infográfico Alexandre Affonso

Cintra e sua equipe mapearam o primeiro trecho, de cerca de 4 km, aberto para visitação, e o segundo, com 2 km, ainda sem acesso para turistas. O trecho restante, da cota (altitude) 150 até o nível do mar, foi incorporado pela refinaria Presidente Bernardes, inaugurada em 1955. Os pesquisadores não conseguiram acesso para examinar essa parte da Calçada.

“No planalto, a Calçada passava em frente da capela de Nossa Senhora da Boa Viagem, no centro da cidade de São Bernardo do Campo”, informa o pesquisador. Ele refez o trajeto usando um mapa de 1900 da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo e outro de 1832, elaborado por ordem de Rafael Tobias de Aguiar (1794-1857), então presidente da província. O príncipe regente passou também em frente ao atual Instituto de Tecnologia Mauá e cruzou duas vezes o ribeirão dos Meninos antes de chegar ao Ipiranga, então um descampado. Hoje, não há nenhum registro físico da Calçada nessas localidades.

Museu Paulista / USPCaixa de ferro e pedra fundamental da Independência, guardados no Museu PaulistaMuseu Paulista / USP

Por volta das 16h30 de 7 de setembro, Pedro e seu séquito estavam em uma colina próxima ao riacho do Ipiranga quando dois mensageiros os encontraram para entregar ao príncipe cartas de sua esposa, Leopoldina (Leopoldina Carolina Josefa de Habsburgo-Lorena, 1797-1826), de José Bonifácio, de dom João VI e de seu amigo Henry Chamberlain (1796-1844), descrevendo os conflitos com Portugal e incitando-o à separação política da metrópole. Inversamente, as instruções das cortes de Portugal exigiam seu regresso imediato e a prisão de José Bonifácio.

Há dois relatos sobre o que se passou em seguida.

No primeiro, registrado no livro D. Pedro I e o grito da Independência (Melhoramentos, 1921), do historiador Francisco de Assis Cintra (1887-1947), o padre Belchior Pinheiro de Oliveira (1775-1856) relatou: “Dom Pedro, tremendo de raiva, arrancou de minhas mãos os papéis e, amarrotando-os, pisou-os, deixou-os na relva. Eu os apanhei e guardei. Depois, virou-se para mim e disse: ‘E agora, padre Belchior?’. E eu respondi prontamente: ‘Se Vossa Alteza não se faz rei do Brasil será prisioneiro das cortes e, talvez, deserdado por elas. Não há outro caminho senão a independência e a separação’”.

Léo Ramos ChavesEstátua de dom Pedro I no parque da IndependênciaLéo Ramos Chaves

O príncipe disse ainda, enquanto caminhava: “As cortes me perseguem, chamam-me com desprezo de rapazinho e de brasileiro. Pois verão agora quanto vale o rapazinho. De hoje em diante estão quebradas as nossas relações; nada mais quero com o governo português e proclamo o Brasil, para sempre, separado de Portugal”. E, por fim, virou-se para seu ajudante de ordens: “Diga à minha guarda que eu acabo de fazer a Independência do Brasil. Estamos separados de Portugal”. Depois, proclamou novamente a Independência, diante da guarda de honra.

Apresentado no Historia do Brasil-Reino e Brasil-Imperio (Pinheiro, 1871), do historiador Alexandre Jose de Mello (1816-1882), o segundo relato, do comandante da guarda de honra, Manuel Marcondes de Oliveira e Melo, barão de Pindamonhangaba (1780-1863), é mais teatral: “Diante da guarda, que descrevia um semicírculo, [o príncipe regente] estacou o seu animal e, de espada desembainhada, bradou: ‘Amigos! Estão, para sempre, quebrados os laços que nos ligavam ao governo português! E quanto aos torpes daquela nação, convido-os a fazer assim’. E arrancando do chapéu que ali trazia a fita azul e branca, a arrojou no chão, sendo nisso acompanhado por toda a guarda que, tirando dos braços o mesmo distintivo, lhe deu igual destino. […] ‘E viva o Brasil livre e independente!’, gritou dom Pedro. Ao que, desembainhando também nossas espadas, respondemos: ‘Viva o Brasil livre e independente! Viva dom Pedro, seu defensor perpétuo!’ […] E bradou ainda o príncipe: ‘Será nossa divisa de ora em diante: Independência ou morte!’.[…] Por nossa parte, e com o mais vivo entusiasmo, repetimos: ‘Independência ou morte!’”.

Wikimedia commonsIndependência ou morte, óleo sobre tela pintado em 1888 por Pedro AméricoWikimedia commons

Para saber onde tudo isso se passou, exatamente, Cintra examinou pinturas, fotos, relatos e mapas antigos. Encontrou incoerências, foi a campo com trena, bússola e GPS e mediu a distância entre o riacho do Ipiranga, com margens hoje concretadas, e uma ponte, hoje desfeita. “Em 1822, a ponte situava-se um pouco à direita da atual passarela metálica verde, mais próxima da rua Leais Paulistanos, e um pouco ao sul do curso d’água atual, retificado nesse trecho por ocasião da implantação do Monumento à Independência”, escreveu ele em um artigo de dezembro de 2021 na Anais do Museu Paulista.

Em 1825, como resultado de uma sessão da Câmara Municipal de São Paulo feita em campo e com a ajuda de topógrafos e de pessoas que testemunharam a proclamação, uma baliza foi colocada a 405 m da ponte. Por alguma razão desconhecida, 40 dias depois, sem considerar o local da baliza, provavelmente arrancada, implantou-se um marco – uma pedra –, colocado a 200 m do ponto determinado pela medição inicial.

Cintra concluiu que o lugar estava errado, por ser uma região relativamente plana, divergindo dos relatos segundo os quais o príncipe regente estava à meia altura de uma colina. “A pedra foi enterrada e perdida pouco tempo depois, encontrada em 1875 e novamente enterrada e perdida, mas ficando o local como sendo o correto”, comenta o pesquisador do MP.

“Senhor, ninguém mais do que sua esposa deseja sua felicidade e ela lhe diz em carta, que com esta será entregue, que Vossa Alteza deve ficar e fazer a felicidade do povo brasileiro, que o deseja como seu soberano, sem ligações e obediências às despóticas cortes portuguesas, que querem a escravidão do Brasil e a humilhação do seu adorado príncipe regente.

Fique, é o que todos pedem ao magnânimo príncipe, que é Vossa Alteza, para orgulho e felicidade do Brasil.

E, se não ficar, correrão rios de sangue, nesta grande e nobre terra, tão querida do seu real pai, que já não governa em Portugal, pela opressão das cortes; nesta terra que tanto estima Vossa Alteza e a quem tanto Vossa Alteza estima.”

Trecho da carta de José Bonifácio

Em 1902, o médico e ornitólogo alemão Hermann Von Ihering (1850-1930), primeiro diretor do MP, levou as dúvidas sobre o local exato para um debate com os colegas do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP). Como resultado, uma comissão coordenada pelo engenheiro Antonio de Toledo Piza e Almeida (1848-1905), um dos fundadores do instituto, confirmou o equívoco da medição anterior, fez outra e instalou, agora em local correto, a 405 m da antiga ponte do Ipiranga, um mastro, ao lado de outra pedra.

Removidos em 1922 durante uma reforma do parque da Independência, não foram mais repostos – o marco está hoje no acervo do museu. “Desde 1922 nada mais se fez”, comenta Cintra, “permanecendo ignorado ou pouco destacado o lugar mais preciso da Independência”.

Se ao chegar ao planalto o futuro imperador e seu séquito estavam em mulas, mais seguras e resistentes que os cavalos, mais velozes e usados em terrenos planos, por que Pedro Américo pintou cavalos no famoso quadro Independência ou morte, conhecido também como Grito do Ipiranga, até hoje mantido como a peça mais importante do Museu Paulista?

“Por causa das convenções da pintura histórica europeia, que determinava que as montarias em cenas heroicas ou de batalhas teriam de ser cavalos”, argumenta Marins. “Essa era a maneira adequada de representar o passado. Pintar mulas seria falta de decoro.”

Américo fez o quadro por encomenda do governo imperial, inspirado no francês Ernest Meissonier (1815-1891), que pintou a Batalha de Friedland (1875). Ele expôs a obra pela primeira vez em Florença, na Itália, em 1888, em uma cerimônia à qual compareceram o imperador do Brasil dom Pedro II (1825-1891) e a rainha britânica Vitória (1819-1901). Com 4,15 m por 7,60 m, a obra foi exposta na inauguração do Museu Paulista, em 7 de setembro de 1895, permanecendo em seu salão nobre desde então.

Américo não foi o único. Além do príncipe e sua guarda em cavalos, o pintor francês François-René Moreaux (1807-1860) incluiu crianças, homens e mulheres se abraçando em seu quadro A proclamação da Independência, de 1844. Feita a pedido do Senado, a obra, com 2,44 m por 3,83 m, encontra-se no Museu Imperial de Petrópolis, no Rio de Janeiro. “Pinturas históricas não são a realidade, mas versões do passado”, ressalta Marins.

Artigos científicos
CINTRA, J. P. Reconstruindo o mapa das Capitanias Hereditárias. Anais do Museu Paulista. v. 21, n. 3, p. 11-45. 1° dez. 2013.
TOLEDO, B. L. de. Do litoral ao planalto – A conquista da serra do Mar. PosFAUUSP. v. 8, p. 150-67. 19 dez. 2000.
CINTRA, J. P e CINTRA, A. P. O sítio da Independência no Ipiranga: As vicissitudes de um local histórico. Anais do Museu Paulista. v. 29, p. 1-48. 10 dez. 2021.

Livros
BARREIROS, E. C. Itinerário da Independência. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.
CINTRA, A. D. Pedro I e o grito da Independência; transcrição de documentos. São Paulo: Melhoramentos, 1921.
MORAES, A. J. de M. Historia do Brasil-Reino e Brasil-Imperio. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro, 1871.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

Diálogos sobre a democracia

A sessão de instalação da Assembleia Constituinte levou uma multidão ao Congresso Nacional, no início de 1987

Agência Senado

Refletir sobre a democracia brasileira a partir da Constituição de 1988 é o cerne do recém-lançado Acervo Digital do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec). A plataforma, que começou a ser pensada em 2019, foi desenvolvida graças a uma parceria com o Centro de Estudos Internacionais e de Política Contemporânea (Ceipoc) e o Centro de Memória, ambos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), além do apoio da FAPESP e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Atualmente, o banco de dados abriga duas coleções principais. “A aba denominada experiências de pesquisa contém entrevistas com pesquisadores sobre a democracia constitucional brasileira. Memória da Constituinte traz depoimentos de protagonistas e pesquisadores sobre o processo de transição democrática e a Assembleia Nacional Constituinte realizada entre 1987 e 1988”, explica Andrei Koerner, coordenador do projeto e professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH-Unicamp). “Queremos gradativamente ampliar o número de coleções.”

A equipe é composta por 10 pesquisadores vinculados ao Cedec e quatro bolsistas de iniciação científica. Em 2020 o grupo começou a produzir a coleção Experiências de Pesquisa. “Além de falar sobre o processo de elaboração da Constituição, os relatos revelam a trajetória acadêmica dos entrevistados, os bastidores de suas investigações, voltadas ao cenário político brasileiro entre o final da década de 1980 e os dias de hoje, bem como de que forma a instabilidade política que se instaurou no país a partir de 2013 vem impactando seus trabalhos”, informa o historiador Ozias Paese Neves, integrante da equipe do Acervo Digital, que atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

Arquivo Público do Estado de São PauloRegistro da entrega de emenda popular sobre direitos das crianças, em agosto de 1987Arquivo Público do Estado de São Paulo

Desde então a equipe ouviu sete pesquisadores, como o economista e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Luiz Carlos Bresser Pereira, ex-ministro dos governos José Sarney (1985-1990) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2003). “A listagem da bibliografia que utilizamos para preparar as entrevistas e o conteúdo adicional disponibilizado pelos próprios entrevistados ficarão acessíveis para consulta no banco de dados”, diz outra integrante do projeto, a cientista política Celly Cook Inatomi, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu), também apoiado pela FAPESP e pelo CNPq. “Esse material poderá servir de fonte não apenas para outros pesquisadores, mas também para professores do ensino fundamental e médio utilizarem em sala de aula, por exemplo.”

Dentre as entrevistas disponíveis no momento está a transcrição do depoimento da historiadora e socióloga Débora Alves Maciel, do curso de ciências sociais da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-Unifesp). Há também um vídeo com o relato do cientista político André Singer, da FFLCH-USP. “Todas as transcrições serão acompanhadas do vídeo da entrevista e vamos disponibilizar trechos desse material audiovisual para serem compartilhados nas redes sociais”, conta Koerner.

Zuleika de Souza / Agil / Biblioteca NacionalNa tribuna do Congresso, Ailton Krenak fez a defesa de emenda sobre os direitos indígenas, perante a Comissão de Sistematização Zuleika de Souza / Agil / Biblioteca Nacional

A meta para este ano é recolher outros quatro depoimentos de pesquisadores radicados no Brasil. “Aprendemos muito ao preparar e realizar as entrevistas. Elas têm trazido elementos importantes para que os integrantes do projeto reflitam sobre questões contemporâneas como a crise da democracia. A ideia é que essas reflexões se desdobrem em artigos a respeito dessas temáticas”, relata o cientista político Lucas Baptista de Oliveira, professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

Caixeiro-viajante
“A sistemática de coleta dos depoimentos é lenta e laboriosa. Além disso, alguns entrevistados faleceram antes de concluir o ciclo, sem conferir o conteúdo e autorizar sua publicação, o que inviabiliza a veiculação da entrevista”, informa o economista e cientista político Antônio Sérgio Rocha, coordenador do projeto Memória da Constituinte, a outra coleção presente no banco de dados.

A origem de Memória da Constituinte está no projeto “Constituição: Teoria e prática”, que nasceu em 2008 no Cedec sob a coordenação de Cicero Araujo, da FFLCH-USP (ver Pesquisa FAPESP n° 274). Na época, Araujo reuniu um grupo de pesquisadores, entre eles Rocha. “Após ler exaustivamente sobre as Constituições brasileiras desde o século XIX, resolvemos entrevistar pessoas que vivenciaram o processo Constituinte de 1987-1988, como o advogado e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau, autor do livro A Constituinte e a Constituição que teremos [Editora Revista dos Tribunais, 1985]”, recorda Rocha, professor da EFLCH-Unifesp, campus de Guarulhos.

Ao longo do tempo, a ideia inicial se desdobrou em outros projetos, sempre realizados pelo Cedec e, a partir de 2013, em conjunto com o curso de direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). A parceria, que aconteceu por intermédio do advogado José Francisco Siqueira Neto, professor daquela instituição de ensino, resultou no Colóquio nacional percurso constitucional brasileiro (2013) e no Simpósio internacional processos Constituintes comparados (2014), ambos sediados na UPM. Entre 2016 e 2018, a iniciativa contou com o apoio da FAPESP.

Acervo Museu da RepúblicaAdesivo com desenho do cartunista Henfil (1944-1988) foi utilizado para estimular a participação da sociedade civil nos trabalhos da ConstituinteAcervo Museu da República

Ao todo foram realizadas 152 entrevistas. Há cerca de quatro anos, 22 desses depoimentos passaram a ser disponibilizados no site do Cedec. Agora o material está sendo transferido para o Acervo Digital – 17 entrevistas já foram indexadas e encontram-se disponíveis para consulta. “Esses depoimentos mostram que a trajetória até a Constituinte de 1988 foi longa e iniciada pela sociedade civil ainda durante a ditatura militar [1964-1985]. Em 1971, por exemplo, o MDB escreveu a Carta do Recife, documento em que o partido oposicionista pretendia pressionar o regime pela reconstitucionalização do país”, aponta Rocha.

Essa pauta também mobilizava figuras públicas como o jurista Dalmo Dallari (1931-2022), professor emérito da Faculdade de Direito da USP, que em 2008 declarou ao projeto: “Precisávamos de uma Constituinte para que no Brasil houvesse uma Constituição verdadeira, autêntica. Começaram a surgir, principalmente depois de 1979, alguns trabalhos, alguns artigos sobre o assunto. […] Isso veio pouco depois da Lei da Anistia. Já havia, embora com algum temor, a possibilidade de fazer publicações. E aí se lançou a ideia de uma Constituinte, que depois se divulgou e teve grande circulação, por vários meios. Eu próprio virei um caixeiro-viajante da Constituinte, circulava por muitos lugares do Brasil. Relembro uma dessas viagens. Eu tinha ido falar em Pirapora, norte de Minas Gerais, com alguns grupos organizados. E um fato me surpreendeu: eu estava falando de Constituinte quando me disseram: ‘Está aqui uma delegação de mulheres, do bairro Tiradentes, que quer lhe entregar um documento’. Eu as recebi. Elas tinham preparado propostas para a Constituinte” (ver Pesquisa FAPESP n° 315).

Acervo CEDI / CDO deputado Ulysses Guimarães (1916-1992), presidente da Assembléia Nacional Constituinte, exibe o primeiro exemplar da Constituição de 1988Acervo CEDI / CD

Segundo Rocha, além das entrevistas, o Acervo Digital contará com documentação extra, como a cronologia dos 613 dias do processo de elaboração do texto constitucional, as bancadas partidárias que participaram da votação do documento e vídeos. “Um deles traz o antológico discurso do ativista indígena Ailton Krenak no plenário da Assembleia Nacional Constituinte, que mudou a votação do capítulo sobre a demarcação das terras indígenas”, conta. O conteúdo de Memória da Constituinte, entretanto, não ficará circunscrito ao mundo virtual. No momento, o pesquisador organiza o material em formato de livro, que deve ser lançado em oito volumes. “A expectativa é de que três deles saiam no próximo semestre”, finaliza o professor da Unifesp.

Projetos
1. Implementação do Núcleo de Pesquisa em Ciências Sociais e Tecnologias Digitais (nº 19/06157-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Reserva Técnica para Infraestrutura Institucional de Pesquisa; Pesquisador responsável Andrei Koerner (Cedec); Investimento R$85.824,44.
2. A Constituinte recuperada. Vozes da transição, memória da redemocratização, 1983-1988 (nº 15/07080-5); Modalidade Auxílio à pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Antônio Sérgio Carvalho Rocha (Cedec); Investimento R$86.193,64.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

Uma nota sobre o Rota 2030: O “capitalismo” desejado pela indústria automobilística


Gibson Da Costa

 

Todos já se acostumaram à ladainha política contra tudo de “esquerda” no Brasil – seja lá o que “esquerda” signifique em 2018 –, aquela mesma ladainha que ajudou a eleger Jair Bolsonaro como o próximo Presidente da República. Os defensores do discurso da neodireita “nacional” tornaram-se os apóstolos da visão conservadora americana de que um “Estado mínimo” – isto é, um Estado que não se responsabilize pelo bem-estar social de seus cidadãos – seja o símbolo da “nova” civilização próspera que as elites econômicas e políticas desejam para si mesmos (e não para o todo da população). A diminuição na tributação de grandes empresas seria, para eles, o primeiro passo para o mundo novo que esperam.

As elites econômicas e políticas brasileiras têm sido bem-sucedidas em seu esforço de lobby junto ao Congresso e ao governo federal – mesmo nos governos descritos como de “esquerda”. De 2006 a 2018, através do Inovar-Auto e da redução do IPI (imposto sobre produtos industrializados), segundo a Instituição Fiscal Independente (órgão do Senado responsável pelo acompanhamento e fiscalização da política fiscal do governo federal), a indústria automobilística foi beneficiária de cerca de R$28 bilhões em subsídios do governo federal. Esse tipo de subsídios à indústria automobilística, a propósito, têm sido uma tradição brasileira desde fins da década de 1950, quando o governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira, através do GEIA (Grupo Executivo da Indústria Automobilística), promoveu a instalação e atividades de montadoras automobilísticas multinacionais, as quais receberam auxílio financeiro do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BAER, 2008).

Entre 2013 e 2017, os subsídios a essa indústria custaram mais de R$5 bilhões ao contribuinte brasileiro, até que o programa Inovar-Auto fosse condenado pela Organização Mundial do Comércio. Agora, o governo brasileiro renova o antigo programa com um novo nome, chamando-o de “Rota 2030” – tendo o Presidente Michel Temer sancionado ontem a Lei nº 13.755/2018, que estabelece o programa. O mesmo estabelece que as empresas automobilísticas tenham descontados dos variados impostos os investimentos que façam em pesquisa e tecnologia.

A pergunta que pode e deve ser feita, em tempos de discursos pró-mercado, é se o financiamento de pesquisa e tecnologia por empresas que dependem dessas para seu lucro deve ser realmente pago pelos contribuintes que têm sofrido com o corte de investimentos públicos em “serviços” básicos. Além disso, que vantagens esses mesmos contribuintes têm como consequência desses subsídios, considerando que entre 2014 e 2016, só nas montadoras, houve um corte de mais de 30 mil vagas? Para não citar aquelas perdidas nas áreas correlatas como indústria de autopeças e concessionárias, que, junto com as montadoras, somaram uma perda de mais de 200 mil vagas (SILVA, 2016).

Por que os contribuintes brasileiros deveriam arcar com os custos que deveriam ser daqueles que desejam lucrar com o investimento (as montadoras multinacionais), se não terão garantia dum retorno significativo no custo do produto final ou da criação/manutenção de postos de trabalho?… Não é interessante esse capitalismo da indústria automobilística e das elites brasileiras?


Referências:

 

BAER, Werner. The Brazilian economy: growth and development. Boulder: Lynne Rienner Publishers, 2008.

SILVA, Cleide. Em dois anos, setor automotivo tem 200 mil cortes. Exame, 12 set. 2016. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/economia/em-dois-anos-setor-automotivo-tem-200-mil-cortes/>. Acesso em: 12 dez. 2018.

 
 

A filosofia política liberal e o segundo turno das eleições presidenciais brasileiras

Um amigo me perguntou se eu votaria no candidato à Presidência que se identifica como “liberal” (Jair Bolsonaro). A lógica por trás de sua pergunta era a de que já que eu me identifico como um “liberal democrata” (de persuasão “social”), provavelmente votaria num candidato filiado a um partido com “social liberal” no nome e que diz defender uma política econômica “liberal”. Esse é um equívoco nominalista que gostaria de desfazer.

Liberalismo” é um termo complexo. Refere-se a diferentes conceitos, a depender dos contextos nos quais é utilizado. Há “liberalismos políticos” e “liberalismos econômicos” – a variedade teórica é tão grande que não se pode tratar desses como se fossem uma única forma de abordar a política ou a economia (exatamente como ocorre com conceitos como “socialismo” ou “marxismo”).

Politicamente, o liberalismo possui pelo menos duas faces:

A) Como tradição intelectual – enquanto filosofia moral e política –, o liberalismo representa um conjunto de ideias que têm se desenvolvido ao longo da modernidade. Encontra sua fundamentação inicial no pensamento de Locke e Montesquieu, mas se solidifica como uma filosofia específica apenas após a Revolução Francesa. Apresenta três princípios consensuais básicos, criticados por perspectivas mais à direita e/ou à esquerda do espectro político:

I. Ética individualista – isto é, o indivíduo como personagem central dos valores e direitos (por exemplo, a liberdade não é apenas um direito do ser humano, é um direito de cada indivíduo);

II. Respeito equitativo por todos os seres humanos, baseado na crença de que todos são igualmente capazes de se autogovernarem;

III. Liberdade de pensamento e expressão, baseada na confiança na autonomia irrestrita da razão (=capacidade racional do indivíduo) como única e suficiente fonte de verdade objetiva.

Esses princípios, obviamente, são criticados dentro da própria tradição liberal, mas têm servido de guia filosófico para o liberalismo enquanto filosofia moral e política.

B) Como ordenamento político-jurídico, o liberalismo têm se desenvolvido – para o bem ou para o mal – ao redor de três princípios gerais:

I. Liberdade equitativa para todos os cidadãos, o que inclui a liberdade de o indivíduo agir como escolher, desde que se sujeite às leis que protegem os direitos iguais dos outros;

II. A proteção da liberdade de pensamento e expressão desse pensamento;

III. A organização desses princípios num sistema jurídico que garanta a igualdade de cada cidadão perante a lei.

Perceberam que não incluí a noção de “democracia” nos princípios acima? E não o fiz porque a participação democrática do cidadão não esteve sempre presente na filosofia política liberal. É por isso que quando identifiquei meu ideário político o chamei de “liberal democrata” – para afirmar que a minha forma de liberalismo é democrática. Essa junção de “democracia” ao “liberalismo” é mais recente, tendo se desenvolvido apenas no século XX. Os antigos teóricos liberais temiam, muitas vezes, que a democracia irrestrita pudesse sabotar tanto os princípios filosóficos liberais quanto o ordenamento jurídico proposto por eles. [Essa preocupação fica mais clara se examinarem a chamada “psicologia das massas” e a “teoria das elites”.]

Há uma questão importante, entretanto, no que concerne aos princípios filosóficos que listei em [A] III – a razão como única e suficiente fonte de verdade objetiva. Filosoficamente, muitos liberais discordarão das implicações epistemológicas dessa afirmação – especialmente aqueles que, como eu, foram/são influenciados por uma perspectiva dita “pós-moderna”. Esses aceitam o princípio da liberdade de pensamento e expressão, mas podem rejeitar a epistemologia objetivista presente naquele princípio.

O que interessa aqui, entretanto, é refletir até que ponto o candidato do partido chamado “Social Liberal” se encaixaria nos princípios filosóficos que listei acima para o liberalismo [A]:

I. Até que ponto alguém que abertamente ataca indivíduos e/ou grupos sociais dos quais discorda – por exemplo, os identificados como LGBT+ ou como “esquerdistas” –, e cujo discurso cria todo um ambiente de ameaça e amedrontamento, exibe respeito pelo princípio de ética individualista (cada indivíduo tem valor e dignidade como ela/ele é ou está)?

II. Consequentemente, até que ponto esse mesmo candidato se ajusta ao princípio de que cada indivíduo, independentemente de quem seja, deva ser respeitado da mesma forma que os demais. Como exemplo: as(os) cidadã(o)s gays, feministas, comunistas, petistas, etc, não devem ser respeitados e honrados da mesma forma como os tradicionalistas, direitistas, cristãos, etc, o são?

III. Até que ponto alguém que apoia a aprovação de leis que restringem, por exemplo, a liberdade de cátedra, a liberdade de expressão de professores, representaria um ideário político liberal?

Eu poderia tratar aqui a respeito de, por exemplo, “ética distributiva” para discutir a questão da Previdência Social ou do programa Bolsa Família. Entretanto, não existe um consenso sobre ela no liberalismo como um todo – existe esse consenso, entretanto, na tradição chamada de “liberalismo social” (que ao menos nomeadamente declara ser a tradição do partido do candidato, e é minha tradição política de origem). Por isso, não importa discuti-la aqui, até porque o candidato se apresenta como economicamente liberal – o que, em outras palavras, significa que ele seria um adepto daquilo que é comumente chamado de “neoliberalismo”: ou seja, uma ideologia político-econômica rígida que enfatiza o livre mercado, um estado pequeno e forte, a iniciativa privada e a responsabilidade individual.

Em outras palavras, enquanto adepto da filosofia política liberal, não posso encontrar razões para votar num candidato como Jair Bolsonaro. Vejo, neste Segundo Turno, uma proximidade muito maior com o candidato do PT – apesar das muitas discordâncias no que concerne ao seu partido e ao seu Plano de Governo original.

Respondendo àquele amigo, digo que meu ideário filosófico liberal democrata e minhas perspectivas religiosas me motivam, de todos os lados, a votar e torcer pela derrota dum candidato que, filosoficamente, representa o contrário duma utopia liberal. Mas, obviamente, isso não significa que espero que os meus leitores aceitem minha posição. Só espero, francamente, que se acreditam naqueles valores que representam a filosofia política liberal, possam refletir antes do voto, e se escolherem o candidato do PSL, exijam seu compromisso com o respeito daqueles valores.

+Gibson

“A violência… você combate com violência”, afirma Bolsonaro

Resolvi encontrar online a entrevista de Danilo Gentili com Jair Bolsonaro, e me forcei a assisti-la. Queria dar uma oportunidade ao mal-afamado deputado brasileiro para desfazer quaisquer preconceitos que tinha contra ele. E, confesso, não me surpreendi com absolutamente nada – a não ser com o fato de ele ser pago para representar seus eleitores, ou, antes, com o fato de haver eleitores que comprem tal tipo de discurso em pleno século XXI.

Quando Jair Bolsonaro dá voz à sua estreita visão de mundo (e, enquanto Deputado, à sua visão inconstitucional), ancorada no saudosismo da Guerra Fria, só prova que não possui uma compreensão do Estado Democrático de Direito que sua função de Deputado Federal deveria representar. Ele, talvez, não tenha lido ou compreendido os artigos iniciais da Constituição à qual deveria se submeter, tanto como cidadão quanto (principalmente) como Deputado:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, […] constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[…]

III – a dignidade da pessoa humana;

[…]

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

[…]

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

[…]

II – prevalência dos direitos humanos;

[…]

VI – defesa da paz;

VII – solução pacífica dos conflitos;

[…]

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

[…]

XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

[…]

XLVII – não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b) de caráter perpétuo;

c) de trabalhos forçados;

d) de banimento;

e) cruéis;

[…]

XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

[…]

LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; […]

Os artigos não são reflexo duma “política de direitos humanos” que, para o entrevistado, significaria um obstáculo ao que chama de segurança pública. Antes, as políticas que lidam com questões referentes aos direitos humanos é que têm sua origem na Constituição Federal. Assim, defender os direitos de qualquer pessoa que tenha sido flagrada em delito ou condenada como criminosa não é “defender marginal”; é, antes, defender a Constituição!

O artigo 5º assevera a inviolabilidade do direito à vida de todos os cidadãos brasileiros ou estrangeiros residentes no país; desta forma, as propostas do deputado é que desrespeitam a Constituição brasileira. Como agente do Estado, ele deve saber que suas ações e palavras devem estar apoiadas nos princípios e normas constitucionais. Afirmar que “A violência… você combate com violência” é violar esses princípios e normas. De acordo com a Constituição Federal, a violência se combate com a lei!… E isso, a propósito, não é ser “politicamente correto”, é se submeter à Constituição – a base do Estado Democrático de Direito brasileiro!

A ignorância do suposto pré-candidato à Presidência acerca da Lei chega a ser assustadora e patética; especialmente quando se põe a “trumpizar” seu discurso, tratando sobre questões como a imigração. O deputado, provavelmente, não sabe que o Brasil é parte duma comunidade chamada “Mercosul”, e não sabe que há obrigações ligadas à membresia nessa comunidade para com os demais membros!

Por fim, para não dizer que não apreciei nada que tenha dito, concordo com suas seguintes palavras: “Não tem solução fácil para o Brasil e não existe salvador da pátria para o nosso país.” Essa é uma confissão que deveria ressoar nos ouvidos de seus admiradores. Realmente não existe salvador da pátria algum: Bolsonaro não é a salvação do Brasil!

Uma breve nota sobre a questão da posse e porte de armas


Gibson Da Costa

Nunca tive muita paciência para com os “mentecaptos voluntários” – isto é, aqueles indivíduos que, mesmo podendo se informar, escolhem não o fazer, sejam quais forem suas razões. Quando se trata da discussão de temas “políticos” – como também de temas religiosos –, não faltarão “mentecaptos voluntários” advogando anátemas contra aqueles de quem discordam. Isso se evidencia ainda mais hoje, especialmente no pseudo-”conservadorismo” da moda que tomou as redes sociais digitais. [Os mentecaptos voluntários que se autoidentificam como “conservadores” parecem se ver como sinônimo da sofisticação intelectual – semelhantemente aos “esquerdistas” que tanto criticam, e que descrevem quase que como uma entidade única e abstrata… mas prefiro deixar meus comentários sarcásticos sobre isso para outra hora!]

Um desses “mentecaptos voluntários” brasileiros publicou comentários infelizes sobre o recente assassinato de dois profissionais da imprensa por seu antigo colega, e os tiroteios desta semana, ambos nos E.U.A., fazendo uma ligação entre a cobertura do caso e a discussão sobre o controle de armas para uso civil naquele país, e sinonimizando aquele contexto ao do Brasil. Seus leitores que também sejam voluntariamente mentecaptos devem ter concordado com sua teoria conspiratória… É uma pena! A retórica antidesarmamentista desses incoerentes pseudolibertários é uma piada de mau gosto, e um verdadeiro espetáculo de ignorância histórica! [Mas, calma! Ainda não estou advogando anátemas contra eles, só um pouco de sarcasmo!]

Filosófica, teológica e politicamente, sou contrário à ideia de qualquer poder externo ditar regras para minha vida pessoal. Não concordo com leis que controlem ou punam alguém por simplesmente externar um pensamento – por mais ofensivo que seja. Não concordo com leis que ditem regras para o comportamento privado dos cidadãos civilmente capazes, incluindo aquelas que ditam como pais devam criar ou educar seus filhos. Sou contrário ao uso e comércio de certos narcóticos e ao aborto, mas, ao menos parcialmente, penso que o que as pessoas fazem com seus corpos é problema seu – desde que eu, enquanto cidadão e pagador de impostos, não seja forçado a cobrir os custos por suas escolhas (na verdade, a discussão desses temas é muito mais complexa e não envolve apenas a questão do que as pessoas fazem a si mesmas, mas também deixarei esse tema para depois!). Apesar disso, acredito que a segurança do cidadão deva ser uma prerrogativa do Estado. Em meu ideário político, a propósito, a função básica do Estado – e “básica”, aqui, implica que ele pode ter mais funções – é justamente proteger e garantir a vida, a liberdade e o patrimônio do cidadão. [Esses três elementos são o que John Locke chamou de “propriedade”, que constituía um conceito muito mais amplo do que a “propriedade privada” proclamada por esses pseudolibertários brasileiros!]

Em se tratando do porte de armas no Brasil, o Estatuto do Desarmamento não “retirou um direito básico do cidadão” brasileiro. Portar armas nunca foi um direito básico do cidadão brasileiro. Desde 1603, pelo menos, havia leis que controlavam o porte de armas por “civis” aplicáveis à América portuguesa (as terras hoje integrantes da República Federativa do Brasil). As ordenações filipinas – conjunto onde se encontravam aquelas leis – estipulavam os detalhes sobre que tipos de armas podiam ser utilizadas por quem, quando, como, e onde. A legislação, obviamente, foi sendo alterada à medida da mudança de contextos.

Aqueles mentecaptos mais informados sobre a história do Direito nacional fazem, por sua vez, um tremendo esforço para justificar sua apologia ao porte de armas por civis através do apelo, na melhor das hipóteses equivocado, a tradições filosóficas e jurídicas estranhas ao contexto brasileiro. Sua base sempre será a tradição libertária americana, que defende uma noção de defesa congelada no contexto da América do Norte Britânica do século XVIII. Talvez eles devessem estudar mais as histórias da Inglaterra e dos Estados Unidos da América antes de publicarem e falarem as besteiras que espalham por aí!

Mas acho que, como um professor de História dos E.U.A. posso ajudá-los, um pouco, a se situarem. Vejamos…

A segunda Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América – que os “filósofos políticos” “pró-armas” brasileiros, consciente ou inconscientemente, tomam como base para sua argumentação (já que seus argumentos são apenas uma caricatura daqueles dos “conservadores” americanos) –, de 1789, assevera o seguinte, num texto hoje estilisticamente confuso:

Uma milícia bem regulada, sendo necessária à segurança dum Estado livre, o direito do povo de manter e portar armas, não será infringido.

Desde o próprio século XVIII, essa Emenda tem sido interpretada de duas formas pelos tribunais, cidadãos e políticos americanos: alguns defendem que ela garanta ao cidadão comum o direito inalienável de portar armas (a interpretação que os “pró-armas” brasileiros abraçam); outros defendem que ela apenas garante a cada Estado o direito de manter sua própria “milícia”.

Obviamente, não vale a pena focar as nuanças políticas da discussão nos E.U.A., já que os “pró-armas” do Brasil não a compreenderiam de qualquer forma – não porque não tenham a capacidade intelectual para tal, mas porque sua disposição não é de construir uma compreensão da questão, mas sim a de opor-se ao que pensam ser uma “bandeira esquerdista” (o controle da posse e porte de armas).

Eles não compreendem que, historicamente, aquela minúscula Emenda carrega uma tradição milenar britânica – testificada já pelas coleções jurídicas de William Blackstone – de os cidadãos (homens) terem a obrigação de ser parte de “milícias” para a defesa do “Direito”. Sua obrigação incluía o dever de fornecerem armas. Isso, obviamente, numa época na qual não existiam forças de segurança (polícia, forças armadas etc) profissionais.

No caso específico dos Estados Unidos, após a Revolução, havia a necessidade de todos os homens participarem duma “milícia bem regulada”, e como essas milícias ainda não eram forças profissionais, e como os Estados membros da União não tinham os recursos necessários para a manutenção de tais forças, o direito de manter e portar armas foi garantido. Mas esse era um direito atrelado a uma obrigação: “a segurança dum Estado livre”.

Percebeu?!

Se analisássemos as razões apontadas pelos autores liberais clássicos ingleses e americanos para a existência do Estado – o que não farei aqui –, veríamos que sua existência é justificada pela necessidade da proteção daqueles três elementos da “propriedade” do cidadão apontados por John Locke (a vida, a liberdade e o patrimônio). [Lembre-se que quando Locke escrevia sobre “propriedade” não era exclusivamente a bens (patrimônio) que ele se referia, era a esses três elementos.] Pare eles, a proteção desses era uma prerrogativa do Estado. É dessa perspectiva que emerge o direito de manter e portar armas na Constituição dos Estados Unidos.

Por que esse direito não é abolido na Constituição americana? Por inúmeras razões. Uma delas sendo porque a tradição constitucional americana geralmente não abole direitos – e como o direito à manutenção e porte de armas é parte integrante da Carta de Direitos, sua abolição é mais complexa e complicada.

No caso do Brasil atual, entretanto, há instituições de Direito que têm a função de proteger a “propriedade” (no sentido lockeano) do cidadão. O fato de haver corrupção e ilegalidades nessas instituições não pode ser justificativa aceitável para que retiremos delas a função de proteção e a passemos a cidadãos miliciados. Ademais, a posse e porte de armas nunca foi um direito constitucional básico dos cidadãos brasileiros!

Então, caros brasileiros “pró-armas”, mudem seus argumentos!

+Gibson