Categoria: política
Gerações de pesquisadores ampliam a narrativa da Independência
Os acontecimentos determinantes da Independência ainda transcorriam quando suas primeiras interpretações começaram a ser publicadas. Nos dois séculos que se passaram desde então, assim como a maneira de ler os episódios de 1822, também o perfil de seus intérpretes se transformou gradativamente. Essa história é contada no Dicionário da Independência: História, memória e historiografia, editado pelos historiadores da Universidade de São Paulo (USP) João Paulo Pimenta e Cecilia Helena de Salles Oliveira. Entre seus 765 verbetes, o dicionário contém quatro dedicados à tradição historiográfica, além de 39 sobre autores, vivos e mortos (ver reportagem “A Independência do Brasil de A a Z”).
Entre os intérpretes da Independência constam escritores e ensaístas célebres, como Euclides da Cunha (1866-1909), Joaquim Nabuco (1849-1910) e Florestan Fernandes (1920-1995); dois homens agraciados com títulos de nobreza durante o Império; oito integrantes da Academia Brasileira de Letras, alguns dos quais fundadores da instituição. São 37 homens, nove deles estrangeiros. As duas mulheres incluídas pesquisaram e escreveram na segunda metade do século XX: as historiadoras Emília Viotti da Costa (1928-2017) e Maria Odila Dias.
Nas primeiras décadas do século XIX, escrever sobre a Independência tinha um objetivo concreto: legitimar o surgimento do novo país, segundo Rafael Fanni, autor do verbete “Historiografia da Independência na Independência”. Três nomes se destacam nesse primeiro momento. Hipólito José da Costa (1774-1823), proprietário daquele que é considerado o primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense (1808-1822), defendia a atuação dos jornais na produção de uma “história contemporânea”, diz Fanni. Para fugir da censura, Costa editou seu jornal em Londres. Morto em 1823, não chegou a receber o convite do governo brasileiro para ser cônsul do novo país na capital britânica. Hoje, é considerado o patrono da imprensa brasileira.
José da Silva Lisboa (1756-1835), considerado o primeiro grande economista brasileiro, foi também pioneiro nos escritos sobre a formação do país. Em 1818, publicou Memória dos benefícios políticos do governo de D. João VI (Impressão Régia), em que interpretava a vinda da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, como marco de avanço civilizatório na colônia. Seu principal objetivo era defender a monarquia e sua presença no país. Nessa toada, em 1825 Lisboa lançou o livro Introdução à história dos principais sucessos do Império do Brasil (Typographia Imperial e Nacional). Lisboa, que teve participação importante na abertura dos portos brasileiros após 1808, recebeu de dom Pedro I (1789-1834) o título de Visconde de Cairu (ver pesquisa FAPESP n° 313 ).
O terceiro nome a se destacar é estrangeiro. Ainda antes da Independência, entre 1810 e 1819, o inglês Robert Southey (1774-1843) publicou em Londres, em três volumes, sua History of Brazil (Longman, Hurst, Rees, Orme, and Brown), que teve grande influência sobre o modo como os brasileiros entendiam o nascimento de seu Estado nacional. Filho de comerciantes, Southey era poeta e funcionário público. Sua obra sobre o Brasil fazia parte de um projeto mais amplo, que trataria de todo o Império português, mas a empreitada jamais foi realizada. O britânico via a colonização “como empreendimento civilizador”, conforme o historiador André da Silva Ramos, da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), no verbete sobre Southey.
No século XIX, prevaleceram as análises que têm os eventos do Rio de Janeiro e de Lisboa como foco. Os autores do período eram sobretudo homens ligados à aristocracia ou ao Estado. O mais relevante foi Francisco Adolfo de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro (1816-1878), filho de um engenheiro alemão contratado para construir os altos-fornos da Real Fábrica de Ferro Ipanema, em Sorocaba (SP). Varnhagen passou a juventude em Portugal e chegou a lutar na Guerra Civil Portuguesa (1832-1834) ao lado de dom Pedro I. Sua História geral do Brasil (Laemmert) foi publicada entre 1854 e 1857, mas sua História da Independência do Brasil (RIHGB) só foi impressa postumamente, ao longo de 1916 e 1917. Como diplomata, Varnhagen consultou arquivos em Portugal, Espanha e outros países europeus. Costumava deixar uma marca pessoal nas obras que consultava: um “V”, a lápis, na margem da página.
A instituição mais importante para os estudos da formação do Brasil era o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838 (ver reportagem “Guardando a memória e escrevendo a história do Brasil”). A historiadora Lucia Maria Paschoal Guimarães, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), autora do verbete “História da Independência no século XIX”, informa que “na cerimônia de inauguração do instituto, um dos seus fundadores, o cônego Januário da Cunha Barbosa, lamentou que os estudos de história pátria estivessem entregues à pena de autores estrangeiros”. No entanto, a comissão prevista para recolher depoimentos sobre o período da Independência jamais foi instalada.
Século XX
Ao longo do último século, as leituras da Independência ganharam em diversidade e se descolaram da abordagem meramente política. A carreira de historiador se profissionalizou paulatinamente, sobretudo nas universidades. O perfil dos autores continuou predominantemente masculino e o foco de suas leituras seguiu voltado principalmente para os eventos políticos que ocorriam no Rio e em estados adjacentes, sobretudo São Paulo e Minas Gerais. Só na segunda metade do século a relevância de episódios como as guerras ao norte e ao sul ganharam destaque. Ao mesmo tempo, a separação do Brasil de Portugal passou a ser analisada por ângulos variados, com trabalhos de economistas, diplomatas e cientistas sociais.
Um momento decisivo ocorreu em torno do centenário da Independência, em 1922, cujas celebrações incluíram a reedição da História geral de Varnhagen, revisada por historiadores sob a coordenação de Capistrano de Abreu (1853-1927), além da publicação de documentos do período. Diferentemente de muitos de seus predecessores, o historiador cearense não vinha da aristocracia ou da classe alta – Abreu defendeu ideias liberais, abolicionistas e republicanas nas últimas duas décadas do Império, o que não o impediu de lecionar no Colégio Pedro II. Como funcionário da Biblioteca Nacional, publicou artigos argumentando contra a excessiva importância que a historiografia dedicava ao papel de dom Pedro I e seu pai, dom João VI (1767-1826), defendendo que as raízes da nacionalidade estavam nas bandeiras paulistas (século XVI), na guerra contra os holandeses em Pernambuco (século XVII) e na Inconfidência Mineira (1789).
A etapa seguinte da historiografia tem início na década de 1930, período de industrialização e urbanização, em que floresceram os “intérpretes do Brasil”, teóricos de formação diversa que buscaram explicar o país e sua história com visada ampla e ênfase em temas socioeconômicos. Entre eles destacam-se os sociólogos paulistas Caio Prado Junior (1907-1990) e Sergio Buarque de Holanda (1902-1982), além do jurista gaúcho Raymundo Faoro (1925-2003).
Prado Junior era militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e foi o primeiro grande intérprete da formação do Brasil a aplicar o método do materialismo histórico. Em sua obra, sobretudo no livro Evolução política do Brasil (Brasiliense, 1933), a Independência aparece como “aprendizado da revolução social, profunda, e não o de uma revolução considerada superficial, estritamente política”, escreve o historiador Paulo Henrique Martinez, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), autor do verbete sobre o sociólogo.
Conhecido pelo ensaio que deu origem ao livro Raízes do Brasil (José Olympio, 1936), Buarque de Holanda também se dedicou à Independência, como diretor da coleção História Geral da Civilização Brasileira (Difel), na década de 1960. No volume O processo de emancipação, que tratava do Brasil monárquico, o autor que foi bastante influenciado por um dos fundadores da sociologia moderna, o alemão Max Weber (1864-1920), analisa o movimento de libertação política do país.
Faoro, eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL) em 2000 e presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entre 1977 e 1979, durante a ditadura militar (1964-1985), também teve grande influência de Weber e dedica parte de Os donos do poder (Globo, 1958) à Independência. O período que vai de 1808 a 1824 é analisado pelo prisma do conflito entre a burocracia do Estado português e os produtores rurais do Brasil. A separação, porém, é vista não como revolução, mas como “transação”. Em sua concepção, em torno do imperador, proprietários de terra, comerciantes pouco vinculados a Portugal e alguns funcionários públicos teriam entrado em acordo para constituir o novo país.
No século XX, a Independência esteve, ainda, sob a lupa de pesquisadores estrangeiros. A partir da década de 1930, o americano Alan Manchester (1897-1983) escreveu uma série de obras importantes sobre o Brasil, como os artigos “The rise of the Brazilian aristocracy” (1931), “The paradoxal Pedro, first emperor of Brazil” (1932), “The recognition of Brazilian Independence” (1951) e “A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro” (1967). Seu principal livro é Preeminência inglesa no Brasil (Brasiliense, 1933), que enfatiza as relações internacionais do país nascente. Além da carreira de professor na Universidade Duke, nos Estados Unidos, Manchester foi adido cultural da embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro.
Outro importante autor estrangeiro é Richard Graham, norte-americano, filho de missionários nascido em Planaltina (GO), que começou a publicar sobre o tema na década de 1960. Para Henrik Kraay, autor do verbete a respeito de Graham, seu livro Escravidão, reforma e imperialismo (Perspectiva, 1979) “moldou a história social da escravidão que surgia nas décadas de 1970 e 1980”. Graham foi professor de diversas universidades nos Estados Unidos e se aposentou em 1999.
Na década de 1960, a historiadora Emilia Viotti da Costa (1928-2017) foi uma das primeiras autoras a se destacar nesse universo predominantemente masculino. Segundo o historiador Rafael de Bivar Marquese, da USP, autor do verbete dedicado a ela, sua principal contribuição foi integrar a história econômica e social com a história política, em ensaios como “Introdução ao estudo da emancipação política” (1966) e “A consciência liberal nos primórdios do Império” (1967). Viotti da Costa “procurou examinar as mediações entre o tempo longo das estruturas e o tempo curto dos eventos”, escreve Marquese, referindo-se aos processos econômicos e sociais, por um lado, e às plataformas políticas de grupos sociais, por outro.
A década de 1970 constitui um momento relevante para a historiografia da Independência. Em 1972, a celebração do sesquicentenário foi capitaneada pela ditadura militar e, contrastando com o caráter ufanista da comemoração oficial, nas universidades adotou-se um tom crítico, olhando para os eventos do passado com vistas a entender o presente, conforme a historiadora Wilma Peres Costa, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), autora do verbete “Historiografia da Independência no século XX”.
Esse foi o contexto da publicação da coletânea 1822: Dimensões (Perspectiva, 1972), coordenada pelo historiador Carlos Guilherme Mota, mais tarde fundador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. O livro forneceu um amplo panorama de visões sobre os eventos do período, com participação de Viotti da Costa, Fernando Novais (USP) e Ilmar Matos, então na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), e estrangeiros, como os franceses Frédéric Mauro (1921-2001) e Jacques Godechot (1907-1989) e o português Joel Serrão (1919-2008). A segunda parte da coletânea, denominada “Das Independências”, dedica cada capítulo a uma região do país, dando impulso à diversificação das perspectivas de análise, para além do tradicional olhar centrado no Sudeste do Brasil.
O capítulo “A interiorização da metrópole”, da historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias, que foi professora da USP e da PUC de São Paulo, obteve destaque particular. Nele, Dias argumenta que a historiografia da Independência dava pouca importância ao comportamento das elites brasileiras e apresenta essas elites como herdeiras de interesses da Coroa portuguesa. No início da carreira, Dias foi professora assistente na cadeira de Sergio Buarque de Holanda na USP. Mais tarde, desenvolveu influentes trabalhos de história social, como o livro Quotidiano e poder (Brasilense, 2001), em que explorou o papel de pessoas, sobretudo mulheres, que os estudos tradicionais deixavam de lado, incluindo “vendedoras de tabuleiros, lavadeiras em rios e chafarizes, aguadeiras”, escreve o historiador Elias Thomé Saliba, da USP, no verbete a ela dedicado.
Desde então, conforme escreve Peres Costa, a ideia da revolução perdeu espaço parcialmente para a de construção do país, e os estudos sobre a Independência passaram a tratar de temas variados: da condição social de mulheres, escravizados e indígenas à situação econômica das províncias. A digitalização de importantes acervos, como o da Torre do Tombo, em Portugal, e, no Brasil, o da Biblioteca Nacional, o do Arquivo Nacional e outros, tem facilitado o acesso a documentos e à pesquisa com dados, atraindo o interesse de economistas e cientistas sociais para a investigação das diferentes dimensões da dissolução do império português. Os verbetes do Dicionário da Independência, por exemplo, não foram escritos apenas por historiadores. Entre seus autores há cientistas políticos, economistas, museólogos, historiadores da arte e antropólogos.
Pimenta e Salles Oliveira, no verbete “Historiografia da Independência: temas atuais”, destacam dois grupos de estudos atuantes neste século. Um é o Centro de Estudo dos Oitocentos, fundado em 2002 pelos historiadores José Murilo de Carvalho, Gladys Ribeiro, entre outros, sediado na Universidade Federal Fluminense (UFF). O outro é temático “Brasil: fundação do Estado e da nação”, criado em 2001 pelo historiador István Jancsó (1938-2010) e apoiado pela FAPESP entre 2004 e 2009. Segundo Peres Costa, que foi subcoordenadora do grupo, seu objetivo era reinterpretar temas como revolução, crise, Estado e nação, centrais no livro 1822: Dimensões. A principal inspiração foi a história dos conceitos, corrente de origem alemã que estuda a transformação histórica dos termos.
Nesse período, também se consolidou a tendência a uma historiografia mais diversa, que não olha apenas para os eventos políticos e econômicos na corte dos Bragança e nas elites agrárias. Os jovens pesquisadores demonstram grande interesse pelo papel de minorias, como as mulheres, os povos indígenas e a população negra, além dos episódios ocorridos nas antigas províncias de norte a sul do país.
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Os alicerces de uma nação
Tema de debates acadêmicos desde o século XIX, a coesão do território brasileiro depois da Independência foi, durante décadas, analisada em contraposição aos processos da América hispânica, que derivaram na formação de 18 países. Nessa ampla trajetória de pesquisas, a escravização de africanos, os sistemas administrativos coloniais, o processo de formação das respectivas identidades nacionais e a definição dos territórios serviram de base para evidenciar as diferenças entre os destinos das colônias. Tal enfoque começou a mudar em meados do século XX. A tônica dos estudos atuais tem sido matizar essas comparações, evidenciando as divergências que marcaram a constituição do Brasil e as tentativas de ruptura com o governo de dom Pedro I (1798-1834).
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“No início do século XIX, a região que atualmente chamamos de Brasil era composta por várias partes mais ou menos conectadas e a administração colonial não controlava todas elas. Até pelo menos 1825, o território nacional não estava assegurado, por causa dos movimentos contrários à emancipação de Portugal”, argumenta a historiadora Andréa Slemian, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Segundo ela, a historiografia tem se dedicado a demonstrar que a imagem da existência de um território coeso foi uma narrativa construída no período imperial, atravessou a República e chegou até os dias atuais. “Políticos, historiadores e literatos valorizaram a perspectiva da grandeza e união do território nacional e opunham essa característica à fragmentação da América espanhola”, comenta a historiadora Maria Ligia Coelho Prado, da Universidade de São Paulo (USP).
Na mesma toada, o historiador Marcelo Cheche Galves, da Universidade Estadual do Maranhão (Uema), observa que, especialmente no século XIX, a narrativa histórica valorizava a unidade territorial do país. Como exemplo dessa tendência, ele aponta os textos do historiador, militar e diplomata brasileiro Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), enfatizando a visão do Brasil como “herdeiro de Portugal” e a Independência como resultante de uma “cisão no seio da família portuguesa”. O diplomata, historiador e bibliófilo Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) chegou a utilizar a expressão “desquite amigável” ao se referir à Independência. “Essas ideias formaram a base de nossa historiografia, causando reflexos no desenvolvimento desse campo do conhecimento”, sustenta Galves.
Na década de 1970, por intermédio de estudos como os do historiador Carlos Guilherme Mota, da USP, essa perspectiva começou a mudar. Mota passou a analisar a Independência a partir de elementos como as apropriações do ideário iluminista em projetos emancipacionistas de colonos locais, afirmando que o Brasil, ainda na década de 1970, era dependente de metrópoles europeias. A reflexão aprofundou-se a partir das pesquisas dos historiadores Maria Odila da Silva Leite, nos anos 1970, e István Jancsó (1938-2010), também da USP, no início do século XXI. Ambos defenderam que é preciso pensar “as independências” do Brasil, no plural. “Em 1972, ano em que foram celebrados os 150 anos da emancipação, o governo militar [1964-1985] se apropriou da efeméride para afirmar que dom Pedro I tinha dado a Independência política para o Brasil, e os militares a econômica”, pontua Galves.
O historiador do Maranhão é um dos pesquisadores que têm olhado para a pluralidade do processo de Independência. De acordo com ele, o projeto de autonomia desenhado por dom Pedro I atendia aos interesses de províncias como Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, deixando em segundo plano as demandas das outras províncias. Por causa disso, guerras regionais estouraram, fazendo oposição ao projeto do então governo imperial, entre elas a Revolução Farroupilha (1835-1845), na província de São Pedro do Rio Grande do Sul; a Cabanagem (1835-1840), no Grão-Pará; e a Sabinada (1837-1838), na Bahia. “No Maranhão, a população se identificava mais com Portugal do que com a Corte do Rio de Janeiro”, detalha. “Apesar de o projeto da Corte ter sido vencedor, ele não foi o único.”
O geógrafo Manoel Fernandes de Sousa Neto, da USP, recorda que o Grão-Pará e o Maranhão existiram como um estado apartado do Brasil até o início da década de 1820, quando cada região assinou tratado para integrar o projeto desenhado pelo governo de dom Pedro I. Já o Acre, região que pertencia à Bolívia e ao Peru, vivenciou conflitos armados durante anos e foi anexado ao país somente em 1903, depois da assinatura do Tratado de Petrópolis. “Até princípios do século XX, o Brasil conquistou territórios, enquanto a América hispânica foi marcada por um processo de desagregação territorial dos antigos domínios espanhóis”, compara Galves.
Partindo de reflexões desenvolvidas pelo geógrafo e cientista social Antonio Carlos Robert de Moraes (1954-2015), Sousa Neto sustenta que, desde a Independência, o país tem investido na formação das chamadas “poupanças territoriais”. “Os governantes lutaram para incorporar regiões ao Norte como forma de dispor de fundos territoriais que pudessem ser economicamente explorados, conforme a nação se formava e demandava recursos naturais para se modernizar”, argumenta, defendendo que a lógica está na base dos desafios atuais envolvendo a devastação da floresta amazônica para atividades de garimpo ilegal e plantio de soja.
Considerando as pluralidades de interesses e os conflitos entre províncias durante o processo de Independência, outra pergunta central tem mobilizado a investigação científica sobre o tema: afinal, por que o Brasil não se fragmentou? Não há consenso nas respostas, resultantes da análise de diferentes objetos de estudos, sendo um deles a escravidão.
Com contextos históricos e motivações específicas, algumas rebeliões registradas em território nacional durante o processo de Independência abrangiam demandas comuns, entre elas a busca por autonomia por parte das províncias para o pagamento de impostos, a insatisfação com problemas econômicos e com a presença de portugueses em cargos administrativos. Além disso, a maioria delas não trazia programas antiescravistas e, portanto, não incorporou os escravizados, inviabilizando qualquer possibilidade de radicalização. “Com isso, depois da derrota dos movimentos insurgentes, elites dirigentes de províncias como São Pedro do Rio Grande do Sul e Bahia, por exemplo, repactuaram as relações com o governo imperial para que suas demandas fossem parcialmente atendidas sem afetar a ordem escravista, naquele momento central para as atividades econômicas do país”, propõe o historiador Rafael Marquese, da USP. Marquese construiu o argumento a partir de reflexões dos cientistas políticos e historiadores José Murilo de Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Luiz Felipe de Alencastro, da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eesp-FGV). Ele explica que, no século XVIII, a América portuguesa contava com 18 capitanias, com seus mercados integrados a partir de atividades de mineração. “A escravidão existia em todas as regiões com domínio branco e colonial e estruturava as relações da sociedade. Mesmo sendo um mundo cravejado de tensões, o regime escravocrata criou a solda para formar o Estado brasileiro, porque uniformizava a paisagem social e unia as elites em torno do mesmo interesse, que era a manutenção da escravidão”, sustenta.
Já na América hispânica havia várias situações diferentes, esclarece Prado. Eram menos numerosos os africanos escravizados que viviam no México, Argentina e Uruguai, enquanto na Colômbia, Venezuela, Haiti e Cuba a população de subjugados era maior. “No caso excepcional das colônias francesas de Saint Domingue, futuro Haiti, depois da abolição da escravidão pela Revolução Francesa [1789- 1799], os escravizados foram os líderes e agentes da conquista da Independência, expulsando, inclusive, os brancos de seu território”, detalha a historiadora. “Cuba, por sua vez, permaneceu como colônia espanhola por mais tempo, tornando-se independente apenas em 1898, porque as elites temiam uma rebelião como a ocorrida no Haiti, unindo esforços com o poder colonial para garantir a manutenção da ordem escravocrata”, afirma.
Em que pese a busca por nuançar o antagonismo em análises sobre os processos de autonomia de nações latino-americanas e do Brasil, depois da invasão das tropas do imperador francês Napoleão Bonaparte (1769-1821) na península Ibérica, em 1807, os reinados da Espanha e de Portugal tomaram caminhos diferentes. O rei dom João VI (1767-1826) decidiu deixar Portugal e se instalar no Brasil; Fernando VII (1784-1833), rei da Espanha, foi feito prisioneiro na França e viu o irmão do imperador francês, José I (1768-1844), ser colocado no trono. “Com a prisão do rei espanhol, houve resistência interna contra o monarca francês. Na América espanhola, iniciou-se uma forte agitação política que questionava a lealdade ao novo governo metropolitano”, informa Prado.
No caso brasileiro, a historiadora considera que a transferência da Corte para o Rio de Janeiro colaborou com a manutenção da ideia de coesão territorial. “Essa tônica foi reforçada quando, mais tarde, o próprio filho de dom João liderou o processo de Independência”, reforça. Em pesquisa realizada em atas das câmaras municipais e em jornais de diferentes províncias como parte de estudo financiado pela FAPESP, o historiador Jean Marcel Carvalho França, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Franca, constatou que dom Pedro I era reconhecido como líder, recebendo apoio popular inclusive em pequenas comunidades interioranas. Um dos resultados do estudo, concluído em 2021, foi a criação de um banco de dados aberto a pesquisadores. “Apesar dos movimentos rebeldes, de maneira geral havia um clima de euforia com a figura do príncipe, que colaborou com o processo de consolidação do território nacional”, considera França, ao mencionar, por exemplo, textos publicados no jornal O Espelho, que circulou no Rio de Janeiro entre 1821 e 1823.
Conforme Prado, da USP, outro aspecto que define o destino da América hispânica diz respeito ao fato de a Espanha contar, durante a colonização, com um sistema administrativo diferente do modelo português. A região estava organizada em quatro vice-reinados: o do Peru, cuja sede era em Lima; Nova Espanha, na Cidade do México; Nova Granada, em Bogotá; e Rio da Prata, em Buenos Aires. Além disso, existiam quatro capitanias gerais: da Venezuela, Chile, Cuba e Guatemala. “Esses elementos da divisão administrativa reportavam a um poder maior, a Coroa espanhola”, afirma.
Por sua vez, a historiadora Gabriela Pellegrino Soares, da USP, esclarece que inicialmente os vice-reinos eram leais ao rei da Espanha, que estava preso, mas aos poucos essa postura cedeu lugar a projetos de autonomia e ruptura com o poder colonial. “Assim, as regiões começaram a organizar Exércitos revolucionários para romper com a Espanha. Em 1814, Napoleão sofria derrotas e o rei Fernando VII foi restaurado como monarca do Império. Então, a Espanha enviou um grande Exército para conter os movimentos dissidentes em curso”, detalha a historiadora. Como os grupos rebeldes eram numerosos e o Exército do país dispunha de um contingente limitado de soldados, a Espanha mobilizou primeiro suas tropas para combater os movimentos de insurreição no vice-reino de Nova Granada, onde o grupo insurgente era comandado pelo general e líder revolucionário Simon Bolívar (1783-1830). “A América hispânica foi marcada por conflitos armados que varreram o continente entre 1810 e 1825”, reforça Prado.
A historiadora destaca que o último bastião da Coroa espanhola foi o vice-reino do Peru, que corresponde ao atual território de Peru e Bolívia, onde o vice-rei conseguiu resistir ao assédio dos revolucionários até a chegada do general José de San Martín (1778-1850) e sua tropa. San Martín participou do processo de independência da Argentina, consolidado em 1816, e atravessou os Andes com 5 mil soldados até alcançar a região. O Peru se tornou independente em 1821; a Bolívia, em 1825. “Enquanto Bolívar é reconhecido como herói da independência na Venezuela, Colômbia e Equador e Bolívia, San Martín desempenha o mesmo papel na Argentina e no Peru, tendo apoiado a libertação do Chile”, pontua.
As populações indígenas, segundo Soares, reagiram de formas distintas às campanhas por independência. Na região dos Andes, da Colômbia até o Chile, os indígenas eram camponeses cristianizados e mantinham relações estreitas com o poder colonial. “No começo do século XIX, os Mapuche que viviam na região que hoje é o centro-sul do Chile foram contrários aos projetos de emancipação, porque assinaram tratados de paz com a Espanha que poderiam ser ameaçados com a mudança de governo”, relata. Por outro lado, quando a Argentina se emancipou, o novo governo traduziu e anunciou a novidade em diferentes línguas indígenas. “Foi comunicado oficialmente a essas populações que havia um novo regime”, comenta, lembrando que integrantes de exércitos revolucionários conheciam os idiomas dos povos originários e utilizavam esses idiomas como forma de engajá-los nas lutas por emancipação.
No México, coube a um representante da Igreja Católica, o pároco Miguel Hidalgo y Costilla (1753-1811) liderar, a partir de 1810, o primeiro movimento revolucionário defendendo o fim das relações coloniais e conclamando os indígenas a se levantarem contra os espanhóis. “O padre carregava estandartes com imagens da virgem de Guadalupe, de feições indígenas”, detalha Soares. O movimento de insurreição sofreu uma repressão violenta e Hidalgo, mesmo com o apoio de um grande exército popular, não escapou do fuzilamento. “Os movimentos rebeldes prosseguiram no país até 1821, quando o general Agustín de Iturbide [1783-1824], que antes tinha combatido os levantes pela Independência, mobilizou um acordo entre as elites para que o México se tornasse independente da Coroa espanhola”, diz Prado.
Já no caso do Brasil, Sousa Neto, da USP, avalia que a garantia do Estado de que as elites podiam se apropriar de terras, ter latifúndios e contar com trabalho de escravizados viabilizou a coesão do país. “Hoje, formamos um estado territorial, mas será que formamos uma nação?”, indaga o geógrafo. Sousa Neto reforça que o Brasil não apenas foi inventado simbolicamente, mas também materialmente, por intermédio de processos militares, políticos e econômicos. “O Estado brasileiro, construído durante os oitocentos, valeu-se do mito geográfico da intocabilidade territorial para manter, em torno da figura do imperador, uma forte centralização política, expressa de modo exemplar nas ações militares que debelaram as revoltas regionais ocorridas durante o século XIX”, afirma o geógrafo. De acordo com sua interpretação, somos uma sociedade que tem a coesão do território como elemento central da identidade, narrativa que foi construída em oposição à América espanhola, vista como lugar de caudilhos, guerras civis, regressão econômica e anarquia, enquanto o Brasil seria o país da unidade, ordem e civilização. “A bandeira brasileira, inclusive, traz o azul como símbolo da nobreza, e o amarelo representando o ouro, enquanto o verde remete à família real de Bragança, em uma iconografia distinta da do conjunto de bandeiras de países hispânicos, que aludem a movimentos de libertação e processos revolucionários”, compara o geógrafo.
Prado recorda que, na Venezuela, por exemplo, a identidade nacional se formou em torno da figura de Bolívar. De acordo com ela, na Colômbia, apesar de a sociedade reconhecer o papel importante desempenhado por Bolívar em sua história, o jurista, militar e político Francisco José de Paula Santander (1792-1840) tornou-se figura de referência para futuros políticos liberais. “A denominação América Latina foi inventada no século XIX e, a partir do final do século, foi-se construindo uma identidade latino-americana, em oposição aos anglo-americanos dos Estados Unidos”, finaliza a pesquisadora.
Projeto
Escritos sobre os novos mundos: Uma história da construção de valores morais em língua portuguesa (nº 13/14786-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Jean Marcel Carvalho França (Unesp); Investimento R$ 958.320,68.
Livros
Vários autores. Coleção memória atlântica. Grupo de pesquisa escritos sobre os novos mundos. São Paulo: FAPESP, Fundação Editora da Unesp e Academia Portuguesa da História.
NETO, M. F. S. Um geógrafo do poder no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.
Capítulo de livro
PRADO, M. L. C. Identidades latinoamericanas (1870-1930). In: MORA, E. A. e CARBÓ, E. P. (orgs.). Historia general de América Latina: Los proyectos nacionales latinoamericanos: Sus instrumentos y articulación, 1870-1930. Ied. Paris: Ediciones Unesco / Editorial Trotta, 2009.
Artigos científicos
NETO, M. F. S. A ciência geográfica e a construção do Brasil. Terra Livre. n. 15. p. 9-20. 2000.
MARQUESE, R. The other side of the antislavery republics: The empire of Brazil and the making of the second slavery. 7th Annual International Conference Antislavery Republics: The Politics of Abolition in the Spanish Atlantic. Gilder Lehrman Center for the Study of Slavery, Resistance, and Abolition. Yale University. 2015.
Dossiê
As independências latino-americanas. Revista USP. v. 1, n. 130. 2021.
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Intérpretes do debate político
Em 1814, um grupo de indígenas de diferentes etnias que viviam na Vila Viçosa, no sertão do Ceará, viajou a pé até o Rio de Janeiro para solicitar a dom João VI (1767-1826), monarca do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, que extinguisse o trabalho compulsório indígena na província cearense. Em um sistema no qual as pessoas recebiam privilégios em troca dos serviços prestados à Coroa, na bagagem eles carregavam cartas-patente emitidas décadas antes para comprovar vínculo e fidelidade ao rei português. A partir de 1829, representantes de etnias como a dos Guarani, Kaiowá e Munduruku visitavam propriedades em São Paulo e na Amazônia para presentear os colonizadores. Sem serem notados, e com o objetivo de fomentar uma relação mais amistosa, deixavam mantas, mel e carnes de caça na porta de casas e em dependências de seringais.
O relato das ações das etnias acima é uma das descobertas resultantes de uma abordagem consolidada nos últimos 10 anos, quando pesquisadores passaram a utilizar novos enfoques para explorar arquivos que reúnem a documentação de aldeamentos e ofícios encaminhados por governos provinciais, com o objetivo de compreender como os indígenas viam o contexto da nova ordem política. Os estudos têm demonstrado que os povos originários não eram alheios ao debate político, interpretado a seu próprio modo e utilizado para reivindicar direitos, e ao atendimento de demandas de melhores condições de vida.
Até os anos 1980, a historiografia tradicional sobre a Independência prestou pouca atenção à questão indígena, avalia a historiadora Vania Maria Losada Moreira, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E, apesar de ela ser central à antropologia e etnografia, até os anos 1980 as análises dessas áreas do conhecimento consideravam cada povo em seu contexto cultural específico. O cenário começou a mudar a partir dos debates da Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, com o envolvimento do movimento indígena e de intelectuais como a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, hoje professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP) e emérita da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, propiciando o desenvolvimento do que hoje se conhece como “nova história indígena”. “Carneiro da Cunha analisou a documentação histórica e identificou duas tendências de longa duração na relação do Estado e dos colonos com os indígenas: força bruta e brandura. São tendências que operam entre a oposição e a complementaridade, sendo a brandura mais associada aos jesuítas e a força bruta aos militares”, relata o antropólogo Leandro Mahalem de Lima, do Centro de Microeconomia Aplicada da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eesp-FGV).
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Na década de 1980, para além de análises sobre cada povo em sua especificidade, os pesquisadores passaram a se preocupar em entender o papel dos indígenas em processos históricos relacionados com a colonização e a Independência. Estudiosa das grandes missões de catequização no Espírito Santo no século XVI, Moreira, da UFRRJ, explica que parte delas foi elevada à condição de vila no período em que Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), o marquês de Pombal, foi secretário de Estado de Portugal, entre 1756 e 1777. “Às vésperas da Independência, parte da população indígena vivia há séculos nesses povoados. Essas pessoas participavam de lutas sociais e eram disputadas pelas elites locais. Ainda temos uma história a ser escrita sobre elas”, diz Moreira.
“No Brasil, a associação entre a Independência e a participação indígena ainda é muito rara, quando não categoricamente negada”, observa o historiador André Machado, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Em artigo no prelo para uma coletânea editada pelo Sesc (Serviço Social do Comércio), Machado menciona uma crítica que o historiador Alexandre José de Mello Moraes (1816-1882) escreveu na década de 1860, sobre a estátua equestre de dom Pedro I instalada na praça Tiradentes, no Rio de Janeiro. O monumento representa o monarca no ato da Independência, rodeado por jacarés e indígenas. No texto, elaborado no auge do indianismo – período em que a literatura nacional retratava os indígenas de forma idealizada –, Mello Moraes questiona: “Que parte tiveram esses índios e aqueles jacarés na Independência do Brasil?”. Machado retoma essa passagem em seu artigo para argumentar que a visão sobre a suposta pouca relevância da participação indígena no processo de ruptura com Portugal perdurou até recentemente, posicionamento compartilhado por Daniel Munduruku, escritor da mesma etnia que carrega no nome, autor de mais de 50 livros. “A participação das populações indígenas foi omitida da produção historiográfica e, mesmo no século XIX, o olhar romântico sobre elas colaborou com sua invisibilização”, pondera Munduruku.
Na mesma toada, a historiadora Camila Loureiro Dias, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), cita o historiador John Manuel Monteiro (1956-2013), observando que estudos anteriores à década de 1980 que olharam para a história dos povos indígenas funcionaram como “crônicas de sua extinção”, ao sublinhar que eles seriam exterminados ou assimilados à população em geral. Por outro lado, a Constituição de 1988 passou a assegurar a esses povos o direito à terra e o de manter suas tradições e culturas. “Foi a primeira vez que o Estado brasileiro se reconheceu como multiétnico, aceitando o direito das populações originárias à diferença”, diz, lembrando que a mudança contribuiu para a ampliação do escopo de pesquisas historiográficas.
Apesar do avanço, Dias observa que os atuais estudos sobre a questão indígena precisam estreitar o diálogo com outras historiografias. “Em eventos históricos, cada pesquisador procura enxergar o protagonismo de seu próprio objeto de estudo. No caso da Independência, isso inclui os indígenas, os africanos e os afrodescendentes, além de diferentes governantes e colonizadores. No entanto, é preciso melhorar a articulação entre essas historiografias, aprofundando o entendimento sobre como esses grupos interagiam.”
A compreensão dos motivos que geraram a oposição de certos povos à Independência, mesmo considerando o contexto de violência e trabalho forçado a que historicamente foram submetidos, é uma das perguntas que conduzem pesquisas recentes, como a desenvolvida por Machado, da Unifesp. “Não teria sido mais provável todos os grupos se alinharem a movimentos independentistas, pela possibilidade de ruptura que eles ofereciam com o regime anterior?”, indaga o historiador. Outra perspectiva de suas análises inclui o entendimento de como o “cenário de convulsões” experimentado em processos de independência nas Américas impactou as perspectivas indígenas.
Algumas respostas a essas indagações foram obtidas durante pesquisa realizada com apoio da FAPESP e concluída em 2020. Ao observar a exploração do trabalho indígena durante os períodos colonial e imperial, Machado recorda das guerras justas, política instituída no século XVI que previa o extermínio de indígenas que se recusassem a ceder suas terras e trabalhar para os colonizadores. Em 1808, quando dom João VI chegou ao Brasil, estabeleceu guerras justas contra os indígenas Kaingang que viviam no Campo de Guarapuava, no Paraná, e os Botocudo, do vale do Rio Doce, em Minas Gerais.
O pesquisador da Unifesp recorda que nos territórios das Américas portuguesa e hispânica existiam leis que proibiam a escravização indígena, mas o dever do trabalho compulsório, com suas jornadas extenuantes e atrasos frequentes no pagamento, foi perene. Diferentemente da escravidão na qual se considerava que os sujeitos escravizados não detinham a posse de si mesmos e, portanto, trabalhavam sem remuneração, no trabalho compulsório os indivíduos recebiam remuneração pelas atividades que eram obrigados a desempenhar. “Isso não mudou com a Independência. Pelo contrário, os Estados nacionais nas Américas recriaram formas compulsórias de trabalho dos indígenas, inclusive onde os parlamentos tinham extinguido”, sustenta Machado, ao citar que metade dos ganhos do Estado boliviano no século XIX, por exemplo, envolvia a venda de mercadorias que eram produzidas a partir de mão de obra indígena. A historiadora Fernanda Sposito, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), recorda que a mão de obra indígena era estratégica para abrir caminhos de navegação, defender fronteiras e possibilitar contatos com outros povos. O conhecimento que populações originárias tinham dos oceanos, acrescenta ela, em outro exemplo, foi o que propiciou a exploração de pérolas no Caribe no início da colonização da América. “As pérolas mais valiosas eram encontradas nas regiões mais profundas e os indígenas eram obrigados a mergulhar durante horas, mesmo exaustos. Muitos morriam afogados”, informa Sposito.
Para resistir ao trabalho compulsório nessas condições, no caso do Brasil, os indígenas costumavam habitar territórios mais isolados, no interior das matas. Perseguidos, quando localizados eram amarrados em troncos ou presos, até que o recrutador capturasse a quantidade de indivíduos necessária para a formação de um grupo de trabalhadores. Segundo Machado, no Pará, boa parte da economia dependia do trabalho indígena, fundamental para a extração de bens da floresta e para o transporte fluvial de produtos. Muitas dessas mercadorias, inclusive, eram destinadas ao mercado externo, conforme o pesquisador verificou em acervos como o Arquivo Nacional, em Washington, e a biblioteca John Carter Brown, ambos nos Estados Unidos. Ao analisar outros documentos do século XIX, Machado encontrou requerimentos redigidos em português por lideranças indígenas questionando as condições de trabalho a que estavam submetidas. Dirigiam-se à Coroa e faziam diferentes tipos de solicitação. Em um deles, elaborado em 1822, os indígenas reivindicavam a deposição do intendente do Arsenal da Marinha, um dos lugares onde o trabalho compulsório era mais pesado. “Nessa solicitação, as lideranças indígenas utilizaram o discurso liberal corrente nas Cortes de Lisboa para legitimar a demanda, afirmando que o intendente era um ‘déspota’ e tinha chegado ao cargo por meio de ‘vícios do Antigo Regime’”, diz Machado.
Cortes de Lisboa era a designação do parlamento que passou a governar o Império português a partir de janeiro de 1821, como desdobramento da Revolução Liberal do Porto, movimento militar conhecido como vintismo, desencadeado em 1820 para exigir o fim do absolutismo e o estabelecimento de uma monarquia constitucional em Portugal. Além disso, o grupo também reivindicava o retorno de dom João VI, que estava no Rio de Janeiro desde 1808. “No documento, a liberdade dos trabalhadores indígenas era diretamente relacionada à ideia de liberdade promovida pelo movimento liberal do Porto, segundo a qual a sociedade deveria acabar com o poder absolutista da monarquia”, relata Machado. Ao tomar conhecimento de que as Cortes de Lisboa proibiram o recrutamento de cidadãos do Império português para o trabalho compulsório, os indígenas se aproximaram da causa dos liberais, incorporando e ressignificando a interpretação desses direitos para argumentar que não podiam mais ser convocados para essas atividades.
De acordo com Machado, as ideias da Revolução Liberal do Porto começaram a circular no Pará a partir da criação do jornal O Paraense, em 1820, que também noticiou o veto das Cortes à prisão de cidadãos sem culpa formada. Uma correspondência de 1823, identificada pelo pesquisador, mostra que um juiz de Vila Nova Del Rey, no Pará, acolheu os argumentos dos indígenas, de que não podiam ser capturados e presos para atuar no trabalho forçado, uma vez que não tinham culpa demonstrada, alinhando seu discurso à causa dos vintistas. “Povos indígenas interpretaram as novidades políticas nos seus próprios termos e fizeram cálculos de quais ações resultariam em ganhos ou perdas para as suas comunidades. As motivações, na maior parte das vezes, iam além de um simples alinhamento com os que queriam manter os laços com Portugal ou aqueles que pretendiam a ruptura”, analisa Machado.
Em pesquisa financiada pela FAPESP e premiada pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da Universidade de São Paulo (BBM-USP), o historiador João Paulo Peixoto Costa, do Instituto Federal do Piauí (IFPI), campus de Uruçuí, investigou as políticas indígenas e indigenistas no Ceará, a partir da análise de documentos do Arquivo Público do estado e do Arquivo da Câmara dos Deputados. No estudo, ele encontrou textos em português produzidos por indígenas evidenciando que habitantes de vilas e povoados percebiam o rei como máxima entidade protetora contra proprietários desejosos de dominar suas terras e abusar de sua força de trabalho. “O constitucionalismo português era visto como uma mudança desvantajosa para certos grupos, porque representava o fortalecimento do poder político de elites provinciais, que eram seus grandes inimigos. Por isso, os indígenas do Ceará tenderam a apoiar o príncipe regente quando as Cortes de Lisboa impuseram o retorno de dom João VI a Portugal”, esclarece o pesquisador.
Costa lembra que a Constituição de 1824 não cita diretamente os indígenas, mas estabelece que todos os cidadãos nascidos no Brasil eram livres e iguais. A partir daí, os governos provinciais passaram a considerar desnecessárias leis para proteger os direitos indígenas, abolindo, por exemplo, o Diretório dos Índios, que determinava que as câmaras de vilas de indígenas deviam ser compostas, também, por representantes dos povos originários. Em pesquisa em andamento sobre a presença indígena em câmaras municipais de vilas do Ceará, Costa identificou que eles passaram a ser citados como ingênuos e incapazes depois da Lei das Câmaras de 1828, que impôs um limite censitário aos cargos de vereador. “Em menos de 10 anos depois da Independência, os indígenas perderam prerrogativas do período colonial”, comenta, mencionando que o Ceará aboliu o Diretório em 1831.
Mahalem de Lima, da Eesp-FGV, diz que o fato de a Constituição de 1824 sequer utilizar o termo “índio” deu margem a um vazio legislativo. É no marco desse vácuo legal, explica a historiadora Íris Kantor, da USP, que em 1935 foram instaladas assembleias provinciais, e a gestão dos aldeamentos indígenas e o controle da mão de obra passaram para a esfera de competência das elites. De acordo com ela, essas mesmas elites escravistas disputaram entre si os chamados fundos territoriais, expressão cunhada pelo geógrafo Antonio Carlos Robert Moraes (1954-2015) para designar áreas de terras não apropriadas ou colonizadas, que as elites latifundiárias reservavam para seus próprios interesses expansionistas e extrativistas, impedindo a demarcação oficial.
No Grão-Pará, barcos com canhões bombardeavam aldeias ribeirinhas para ocupar seus territórios, prender seus moradores e submetê-los a trabalhos forçados. Além disso, movimentos rebeldes queriam tornar a província independente do governo de dom Pedro I, que contratou o lorde inglês Thomas Cochrane (1775-1860) para liderar as esquadras para impor ordem e reprimir movimentos de oposição. “Em 1823, para obrigar o Grão-Pará a aderir à Independência, o cônego Batista Campos [1782-1834], líder da oposição na província e que era contra o trabalho compulsório, foi torturado em praça pública, enquanto 256 aliados foram asfixiados no porão de um navio, sob as ordens de um mercenário inglês, John Grenfell [1800-1869]”, relata Mahalem de Lima. Anos depois da Independência, essas tensões culminaram na eclosão da Cabanagem, revolta que aconteceu entre 1835 e 1840 e contou com intensa participação indígena. Com pesquisas sobre populações ribeirinhas, indígenas e não indígenas, na região de Santarém, no Pará, especialmente na confluência entre os rios Tapajós, Arapiuns e Amazonas, o antropólogo mapeou uma rede de parentesco que envolve mais de 2 mil pessoas e que permite recuar no tempo até a época da Cabanagem. “Mapeamentos de redes, auxiliados por ferramentas computacionais, abrem novas possibilidades de diálogo com fontes documentais escritas”, considera. Ele complementa que um dos achados desse trabalho é que, na tradição oral, o termo “cabano” é comumente associado aos brancos que, segundo os ribeirinhos, chegavam em barcos “acabano com tudo”.
Baseado em documentação histórica sobre os indígenas presentes na região do rio Madeira, que atravessa os estados de Rondônia e do Amazonas, Davi Avelino Leal, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), constatou que no século XIX o avanço da fronteira extrativista da borracha na região ocupada pelos Munduruku e os Parintintin mobilizou diferentes respostas por parte de cada grupo étnico. Enquanto os Parintintin travaram guerras, os Munduruku, com um século de intercâmbio comercial com os portugueses, passaram a trabalhar nos seringais. “Fontes históricas de vilas e povoados armazenadas em arquivos públicos revelam que alguns povos indígenas deixavam presentes, como frutas e caça, nas comunidades dos seringais. Assim, o processo de pacificação das relações, muitas vezes, partia dos próprios indígenas, e não do Estado”, relata.
Já em pesquisa com manuscritos do século XIX, redigidos por autoridades de vilas de diferentes regiões do estado e dirigidos a governantes de províncias, e localizados no Arquivo Público do Estado de São Paulo, Sposito, da UFPR, identificou a existência de dois momentos nas relações entre os colonizadores e a população indígena. De acordo com ela, até a década de 1830, os brasileiros adotavam um discurso beligerante contra os indígenas, reagindo de forma violenta à sua presença nas bordas de seus territórios. Depois dessa década, documentos evidenciam que povos como os Kaiowá e os Guarani, por exemplo, buscaram estratégias para tentar mudar essa relação, adotando uma postura mais amistosa e deixando mantas e mel como presentes nessas propriedades. “Foram justamente as iniciativas indígenas no sertão paulista que pautaram esse segundo momento de relações menos conflituosas e pressionaram políticos de São Paulo a extinguir as guerras justas”, finaliza, recordando que as guerras justas foram revogadas em 1831, sob a justificativa de que um Estado civilizado não poderia promover o extermínio indígena.
Projetos
1. Entre a herança e a reinvenção: Os conflitos em torno da mão de obra indígena na província do Pará no contexto americano – 1832-35 (nº 18/20661-5); Modalidade Bolsa no exterior; Pesquisador responsável André Roberto de Arruda Machado (Unifesp); Investimento R$ 196.083,66.
2. Das políticas ameríndias às políticas coloniais: A construção da colonização da América entre os séculos XVI e XVII (nº 16/06245-3); Modalidade Bolsa de pós-doutorado; Pesquisador responsável Jaime Rodrigues (Unifesp); Bolsista Fernanda Sposito; Investimento R$ 572.024,75.
3. O capítulo “Dos índios”: Direitos, história e historiografia – 1988-2018 (nº 18/12386-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Camila Loureiro Dias (Unicamp); Investimento R$ 45.856,76.
4. Sobre a rede noite e dia? Políticas indígenas e política indigenista no Ceará – 1798-1845 (nº 13/12700-7); Modalidade Bolsa de doutorado; Pesquisadora responsável Silvia Hunold Lara (Unicamp); Bolsista João Paulo Peixoto Costa; Investimento R$ 80.600,57.
Artigos científicos
MACHADO, A. R. A. Interpretações e alinhamentos dos povos indígenas na era das revoluções atlânticas. No prelo.
SPOSITO, F. Ameridian leaders in the construction of indigenous policies in Portugal and Spanish (16-18th centuries). Revista Etnográfica. No prelo.
Dossiê
AMORORO, M. et al. (orgs.). História dos índios no Brasil. History of Anthropology Review. dez. 2018.
Livros
SPOSITO, F. Os povos indígenas na Independência. PIMENTA, J. P. (org.). In: E deixou de ser colônia. Uma história da independência do Brasil. São Paulo: Almedina, 2022.
SPOSITO, F. Nem cidadãos, nem brasileiros. Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012.
LIMA, L. M. Kinship networks, endogamous circuits and sociocultural identities among emergent ethnic groups and traditional riverine peasants in the Amazon river adjacencies (Brazil). In: POPOV, V. (ed.). Kinship Algebra – Алгебра родства. Выпуск. São Petesburgo: Institute of Oriental Manuscripts of the Russian Academy of Sciences.
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Pink Floyd: “Another Brick In The Wall”
Uma nota sobre o Rota 2030: O “capitalismo” desejado pela indústria automobilística
Gibson Da Costa
Todos já se acostumaram à ladainha política contra tudo de “esquerda” no Brasil – seja lá o que “esquerda” signifique em 2018 –, aquela mesma ladainha que ajudou a eleger Jair Bolsonaro como o próximo Presidente da República. Os defensores do discurso da neodireita “nacional” tornaram-se os apóstolos da visão conservadora americana de que um “Estado mínimo” – isto é, um Estado que não se responsabilize pelo bem-estar social de seus cidadãos – seja o símbolo da “nova” civilização próspera que as elites econômicas e políticas desejam para si mesmos (e não para o todo da população). A diminuição na tributação de grandes empresas seria, para eles, o primeiro passo para o mundo novo que esperam.
As elites econômicas e políticas brasileiras têm sido bem-sucedidas em seu esforço de lobby junto ao Congresso e ao governo federal – mesmo nos governos descritos como de “esquerda”. De 2006 a 2018, através do Inovar-Auto e da redução do IPI (imposto sobre produtos industrializados), segundo a Instituição Fiscal Independente (órgão do Senado responsável pelo acompanhamento e fiscalização da política fiscal do governo federal), a indústria automobilística foi beneficiária de cerca de R$28 bilhões em subsídios do governo federal. Esse tipo de subsídios à indústria automobilística, a propósito, têm sido uma tradição brasileira desde fins da década de 1950, quando o governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira, através do GEIA (Grupo Executivo da Indústria Automobilística), promoveu a instalação e atividades de montadoras automobilísticas multinacionais, as quais receberam auxílio financeiro do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BAER, 2008).
Entre 2013 e 2017, os subsídios a essa indústria custaram mais de R$5 bilhões ao contribuinte brasileiro, até que o programa Inovar-Auto fosse condenado pela Organização Mundial do Comércio. Agora, o governo brasileiro renova o antigo programa com um novo nome, chamando-o de “Rota 2030” – tendo o Presidente Michel Temer sancionado ontem a Lei nº 13.755/2018, que estabelece o programa. O mesmo estabelece que as empresas automobilísticas tenham descontados dos variados impostos os investimentos que façam em pesquisa e tecnologia.
A pergunta que pode e deve ser feita, em tempos de discursos pró-mercado, é se o financiamento de pesquisa e tecnologia por empresas que dependem dessas para seu lucro deve ser realmente pago pelos contribuintes que têm sofrido com o corte de investimentos públicos em “serviços” básicos. Além disso, que vantagens esses mesmos contribuintes têm como consequência desses subsídios, considerando que entre 2014 e 2016, só nas montadoras, houve um corte de mais de 30 mil vagas? Para não citar aquelas perdidas nas áreas correlatas como indústria de autopeças e concessionárias, que, junto com as montadoras, somaram uma perda de mais de 200 mil vagas (SILVA, 2016).
Por que os contribuintes brasileiros deveriam arcar com os custos que deveriam ser daqueles que desejam lucrar com o investimento (as montadoras multinacionais), se não terão garantia dum retorno significativo no custo do produto final ou da criação/manutenção de postos de trabalho?… Não é interessante esse capitalismo da indústria automobilística e das elites brasileiras?
Referências:
BAER, Werner. The Brazilian economy: growth and development. Boulder: Lynne Rienner Publishers, 2008.
SILVA, Cleide. Em dois anos, setor automotivo tem 200 mil cortes. Exame, 12 set. 2016. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/economia/em-dois-anos-setor-automotivo-tem-200-mil-cortes/>. Acesso em: 12 dez. 2018.
“Lei Rua Neles”
A filosofia política liberal e o segundo turno das eleições presidenciais brasileiras
Um amigo me perguntou se eu votaria no candidato à Presidência que se identifica como “liberal” (Jair Bolsonaro). A lógica por trás de sua pergunta era a de que já que eu me identifico como um “liberal democrata” (de persuasão “social”), provavelmente votaria num candidato filiado a um partido com “social liberal” no nome e que diz defender uma política econômica “liberal”. Esse é um equívoco nominalista que gostaria de desfazer.
“Liberalismo” é um termo complexo. Refere-se a diferentes conceitos, a depender dos contextos nos quais é utilizado. Há “liberalismos políticos” e “liberalismos econômicos” – a variedade teórica é tão grande que não se pode tratar desses como se fossem uma única forma de abordar a política ou a economia (exatamente como ocorre com conceitos como “socialismo” ou “marxismo”).
Politicamente, o liberalismo possui pelo menos duas faces:
A) Como tradição intelectual – enquanto filosofia moral e política –, o liberalismo representa um conjunto de ideias que têm se desenvolvido ao longo da modernidade. Encontra sua fundamentação inicial no pensamento de Locke e Montesquieu, mas se solidifica como uma filosofia específica apenas após a Revolução Francesa. Apresenta três princípios consensuais básicos, criticados por perspectivas mais à direita e/ou à esquerda do espectro político:
I. Ética individualista – isto é, o indivíduo como personagem central dos valores e direitos (por exemplo, a liberdade não é apenas um direito do ser humano, é um direito de cada indivíduo);
II. Respeito equitativo por todos os seres humanos, baseado na crença de que todos são igualmente capazes de se autogovernarem;
III. Liberdade de pensamento e expressão, baseada na confiança na autonomia irrestrita da razão (=capacidade racional do indivíduo) como única e suficiente fonte de verdade objetiva.
Esses princípios, obviamente, são criticados dentro da própria tradição liberal, mas têm servido de guia filosófico para o liberalismo enquanto filosofia moral e política.
B) Como ordenamento político-jurídico, o liberalismo têm se desenvolvido – para o bem ou para o mal – ao redor de três princípios gerais:
I. Liberdade equitativa para todos os cidadãos, o que inclui a liberdade de o indivíduo agir como escolher, desde que se sujeite às leis que protegem os direitos iguais dos outros;
II. A proteção da liberdade de pensamento e expressão desse pensamento;
III. A organização desses princípios num sistema jurídico que garanta a igualdade de cada cidadão perante a lei.
Perceberam que não incluí a noção de “democracia” nos princípios acima? E não o fiz porque a participação democrática do cidadão não esteve sempre presente na filosofia política liberal. É por isso que quando identifiquei meu ideário político o chamei de “liberal democrata” – para afirmar que a minha forma de liberalismo é democrática. Essa junção de “democracia” ao “liberalismo” é mais recente, tendo se desenvolvido apenas no século XX. Os antigos teóricos liberais temiam, muitas vezes, que a democracia irrestrita pudesse sabotar tanto os princípios filosóficos liberais quanto o ordenamento jurídico proposto por eles. [Essa preocupação fica mais clara se examinarem a chamada “psicologia das massas” e a “teoria das elites”.]
Há uma questão importante, entretanto, no que concerne aos princípios filosóficos que listei em [A] III – a razão como única e suficiente fonte de verdade objetiva. Filosoficamente, muitos liberais discordarão das implicações epistemológicas dessa afirmação – especialmente aqueles que, como eu, foram/são influenciados por uma perspectiva dita “pós-moderna”. Esses aceitam o princípio da liberdade de pensamento e expressão, mas podem rejeitar a epistemologia objetivista presente naquele princípio.
O que interessa aqui, entretanto, é refletir até que ponto o candidato do partido chamado “Social Liberal” se encaixaria nos princípios filosóficos que listei acima para o liberalismo [A]:
I. Até que ponto alguém que abertamente ataca indivíduos e/ou grupos sociais dos quais discorda – por exemplo, os identificados como LGBT+ ou como “esquerdistas” –, e cujo discurso cria todo um ambiente de ameaça e amedrontamento, exibe respeito pelo princípio de ética individualista (cada indivíduo tem valor e dignidade como ela/ele é ou está)?
II. Consequentemente, até que ponto esse mesmo candidato se ajusta ao princípio de que cada indivíduo, independentemente de quem seja, deva ser respeitado da mesma forma que os demais. Como exemplo: as(os) cidadã(o)s gays, feministas, comunistas, petistas, etc, não devem ser respeitados e honrados da mesma forma como os tradicionalistas, direitistas, cristãos, etc, o são?
III. Até que ponto alguém que apoia a aprovação de leis que restringem, por exemplo, a liberdade de cátedra, a liberdade de expressão de professores, representaria um ideário político liberal?
Eu poderia tratar aqui a respeito de, por exemplo, “ética distributiva” para discutir a questão da Previdência Social ou do programa Bolsa Família. Entretanto, não existe um consenso sobre ela no liberalismo como um todo – existe esse consenso, entretanto, na tradição chamada de “liberalismo social” (que ao menos nomeadamente declara ser a tradição do partido do candidato, e é minha tradição política de origem). Por isso, não importa discuti-la aqui, até porque o candidato se apresenta como economicamente liberal – o que, em outras palavras, significa que ele seria um adepto daquilo que é comumente chamado de “neoliberalismo”: ou seja, uma ideologia político-econômica rígida que enfatiza o livre mercado, um estado pequeno e forte, a iniciativa privada e a responsabilidade individual.
Em outras palavras, enquanto adepto da filosofia política liberal, não posso encontrar razões para votar num candidato como Jair Bolsonaro. Vejo, neste Segundo Turno, uma proximidade muito maior com o candidato do PT – apesar das muitas discordâncias no que concerne ao seu partido e ao seu Plano de Governo original.
Respondendo àquele amigo, digo que meu ideário filosófico liberal democrata e minhas perspectivas religiosas me motivam, de todos os lados, a votar e torcer pela derrota dum candidato que, filosoficamente, representa o contrário duma utopia liberal. Mas, obviamente, isso não significa que espero que os meus leitores aceitem minha posição. Só espero, francamente, que se acreditam naqueles valores que representam a filosofia política liberal, possam refletir antes do voto, e se escolherem o candidato do PSL, exijam seu compromisso com o respeito daqueles valores.
+Gibson
Os nazistas eram socialistas?: uma brevíssima resposta
Gibson da Costa
O contexto dessa atual “discussão” (ou seria acusação?!) nas redes sociais é o conflito por legitimação política de grupos que se identificam como “direita” no Brasil. Se vocês prestarem muita atenção aos textos que são divulgados online sobre o assunto – e estou pensando em sites como os do Instituto Mises e do Ilisp –, e analisarem quem os escreveram, onde, quando e suas razões, verão que suas conclusões atendem aos seus próprios interesses partidários.
Mas, permitam-me fazer algumas observações:
Apesar de o nome do partido nazista ter sido “Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães”, dizer que o mesmo era um partido “socialista” simplesmente por causa do nome é como dizer que “Little Brazil”, em Manhattan, seja uma parte da República Federativa do Brasil simplesmente por causa de como é chamado!
O nome do partido foi uma estratégia política para lidar com as oposições socialista e comunista, arrastando os “trabalhadores” alemães para as fileiras nazistas. No Brasil houve estratégias semelhantes, no que se refere a nomes de partidos: Getúlio Vargas fundou o Partido Trabalhista Brasileiro, ao fim de sua ditadura marcada pelo anticomunismo – ele era socialista simplesmente porque utilizou o termo “trabalhista” no nome do partido que fundou? Claro que não! O nome que deu ao partido foi simplesmente uma tática de propaganda para enfraquecer as oposições comunista e socialista; atualmente, o PFL, depois de uma história de rejeição por conta de seu passado, se refundou em 2007 como “Democratas” – percebem que o nome pode fazer com que pessoas menos informadas criem uma conexão entre o DEM e o Partido Democrata americano?; o PSDB é o Partido da Social Democracia Brasileira – e vocês poderiam se perguntar: “social democracia”? Sério?!
Então, supor que os nazistas formassem um partido “socialista” simplesmente porque os termos “socialista” e “trabalhadores” aparecem em seu nome é fechar os olhos para as táticas políticas utilizadas para conquistar apoio eleitoral ou miliciano. Na verdade, o nazifascismo como um todo e o nazismo em particular são temas que merecem muito mais cuidado do que essa simplificação de “direita” versus “esquerda”. Eugen Weber, por exemplo, chamava essas classificações do fascismo como “direita” ou “esquerda” de estereótipos anacrônicos – e eu não poderia pensar em melhor qualificativo! O nazismo encontra suas origens ideológicas em variadas tradições, tanto em termos de ligações diretas quanto em conexões aleatórias. Como afirmam Peter Davies e Derek Lynch, os nazistas souberam “identificar, cooptar e perverter ideias e conceitos para seu próprio uso e para fins de credibilidade” (2002: 90).
A tolice dos comentários expostos em sites como os do Instituto Mises ou do Ilisp é que se tratam de observações presas a perspectivas econômicas anacrônicas – ou seja, além de limitarem um tema tão amplo a questões econômicas, projetam sobre o passado circunstâncias e questões do presente, desconsiderando os contextos dos atores históricos daquela época. A retórica utilizada – seguindo a mesma lógica dos livros didáticos de história da década de 1980, por exemplo – tenta criar uma oposição entre “socialismo” e “capitalismo” no que tange a aspectos econômicos. Entretanto, o nazifascismo não possui uma relação de origem direta com a economia em si, mas sim com o nacionalismo de Estado e tudo o que ele significava (ao menos de acordo com um grande número de autores, como Weber, Mann, Mommsen, Siegelbaum, Lüdtke, Hoffmann, Geyer, Lynch, Thorpe, Paxton, Griffin etc).
Ademais, os próprios autores desses textos divulgados nos sites da neodireita brasileira não demonstram uma compreensão histórica do termo “capitalismo”. Ser contrário ao “capitalismo”, no contexto do entreguerras, não significava ser “socialista”. “Capitalismo” se referia a um sistema regido pelas corporações, o discurso desses líderes políticos nacionalistas europeus enfatizava a lealdade à “nação”; ou seja, criavam uma oposição entre “nação” e “corporações” – atualmente, o mesmo conceito se encontra, por exemplo, na retórica de Donald Trump. Independentemente do nome que se dê às posições políticas de certos atores (direita, esquerda, liberal, socialista, anarquista, comunista etc), se se opunham ao domínio de corporações, eles se declaravam anticapitalistas!… Mussolini e Hitler são exemplos claros disso nos movimentos ultradireitistas.
Por que, então, o nazifascismo é identificado como sendo de direita, mesmo possuindo certos traços aparentemente socialistas?
Retomo a adjetivação utilizada por Eugen Weber para se referir a essas classificações dos movimentos fascistas como sendo de “direita” ou “esquerda”: tratam-se de estereótipos anacrônicos!… A obsessão com seu uso, como bem demonstram os sites de propaganda da neodireita brasileira, parece ter mais a ver com legitimação política do que com historiografia.
Entretanto, há várias razões para identificar os movimentos fascistas como “[ultra]direitistas”. Uma delas é o simples fato de tanto os grupos que lideravam esses movimentos quanto o cerne das ideias que defendiam ter tido suas origens naquilo que se chamava de “direita”. O vocabulário que buscava falsear os conceitos utilizados por socialistas – “socialismo”, “trabalhadores” etc – mascaravam o fato de ideias e conceitos socialistas terem sido pervertidos para que os partidos fascistas encontrassem legitimidade dentre o eleitorado e as organizações trabalhistas. Dentre suas bandeiras, encontravam-se: a compreensão da “nação” como uma entidade orgânica, integral e transcendente, que deveria ser defendida de seus inimigos internos e externos; a preocupação com o vigor nacional e sua defesa contra elementos que o pusessem em perigo; a noção de destino especial; a preocupação com pureza racial; o anti-intelectualismo; um comunitarismo necessário àquela compreensão de “nação” etc.
Sim, é verdade que nazifascistas e comunistas partilhavam de muitas ideias, mas quando estudamos a história política, não avaliamos os atores apenas com base no vocabulário que utilizam ou nas noções que dizem defender – avaliamos, principalmente, suas ações, quem eram, com quem se associavam, quem perseguiam etc. E é com base nisso que o nazifascismo tem sido caracterizado como de “direita” – independentemente do quão anacrônicos e inapropriados sejam os termos “direita” e “esquerda”.
Referências citadas:
DAVIES, Peter; LYNCH, Derek. The Routledge Companion to Fascism and the Far Right. Nova York: Routledge, 2002.
WEBER, Eugen. Revolution? Counterrevolution? What Revolution?. In: Journal of Contemporary History, Vol. 9, No. 2 (Apr., 1974), p.3-47.
“A violência… você combate com violência”, afirma Bolsonaro
Resolvi encontrar online a entrevista de Danilo Gentili com Jair Bolsonaro, e me forcei a assisti-la. Queria dar uma oportunidade ao mal-afamado deputado brasileiro para desfazer quaisquer preconceitos que tinha contra ele. E, confesso, não me surpreendi com absolutamente nada – a não ser com o fato de ele ser pago para representar seus eleitores, ou, antes, com o fato de haver eleitores que comprem tal tipo de discurso em pleno século XXI.
Quando Jair Bolsonaro dá voz à sua estreita visão de mundo (e, enquanto Deputado, à sua visão inconstitucional), ancorada no saudosismo da Guerra Fria, só prova que não possui uma compreensão do Estado Democrático de Direito que sua função de Deputado Federal deveria representar. Ele, talvez, não tenha lido ou compreendido os artigos iniciais da Constituição à qual deveria se submeter, tanto como cidadão quanto (principalmente) como Deputado:
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, […] constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[…]
III – a dignidade da pessoa humana;
[…]
Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
[…]
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
[…]
II – prevalência dos direitos humanos;
[…]
VI – defesa da paz;
VII – solução pacífica dos conflitos;
[…]
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…]
III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
[…]
XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;
[…]
XLVII – não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados;
d) de banimento;
e) cruéis;
[…]
XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
[…]
LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; […]
Os artigos não são reflexo duma “política de direitos humanos” que, para o entrevistado, significaria um obstáculo ao que chama de segurança pública. Antes, as políticas que lidam com questões referentes aos direitos humanos é que têm sua origem na Constituição Federal. Assim, defender os direitos de qualquer pessoa que tenha sido flagrada em delito ou condenada como criminosa não é “defender marginal”; é, antes, defender a Constituição!
O artigo 5º assevera a inviolabilidade do direito à vida de todos os cidadãos brasileiros ou estrangeiros residentes no país; desta forma, as propostas do deputado é que desrespeitam a Constituição brasileira. Como agente do Estado, ele deve saber que suas ações e palavras devem estar apoiadas nos princípios e normas constitucionais. Afirmar que “A violência… você combate com violência” é violar esses princípios e normas. De acordo com a Constituição Federal, a violência se combate com a lei!… E isso, a propósito, não é ser “politicamente correto”, é se submeter à Constituição – a base do Estado Democrático de Direito brasileiro!
A ignorância do suposto pré-candidato à Presidência acerca da Lei chega a ser assustadora e patética; especialmente quando se põe a “trumpizar” seu discurso, tratando sobre questões como a imigração. O deputado, provavelmente, não sabe que o Brasil é parte duma comunidade chamada “Mercosul”, e não sabe que há obrigações ligadas à membresia nessa comunidade para com os demais membros!
Por fim, para não dizer que não apreciei nada que tenha dito, concordo com suas seguintes palavras: “Não tem solução fácil para o Brasil e não existe salvador da pátria para o nosso país.” Essa é uma confissão que deveria ressoar nos ouvidos de seus admiradores. Realmente não existe salvador da pátria algum: Bolsonaro não é a salvação do Brasil!