Sem medo de lutar: as mulheres no processo de Independência do Brasil

Pintura de 1817 de Jean-Baptiste Debret (1768-1848) mostra Maria Leopoldina sendo recebida por dom Pedro I, a família real e a corte no Rio de Janeiro

Wikimedia Commons

Em 13 de maio de 1822 um grupo de 186 mulheres enviou a Maria Leopoldina (1797-1826) a Carta das senhoras baianas a Sua Alteza Real dona Leopoldina, felicitando-a pela parte por ela tomada nas patrióticas resoluções do seu esposo o príncipe regente dom Pedro. O documento reconhecia a contribuição da então princesa e futura imperatriz à permanência do marido no Brasil, fator importante no entender das signatárias para que a Independência em relação a Portugal se concretizasse. “Muito mais do que uma carta, trata-se de um manifesto político”, observa a historiadora Maria de Lourdes Viana Lyra, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora de livros como A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: Bastidores da política, 1798-1822 (editora Sette Letras, 1994). “No Brasil da época, à mulher era delegado um papel subalterno, restrito ao ambiente privado e vinculado à família. A presença feminina era invisibilizada, mas as mulheres nunca deixaram de se mobilizar politicamente em relação à Independência, onde atuaram de diversas formas”, informa.

Em um artigo sobre o tema, Lyra chama a atenção para o fato de que, além de ações isoladas, encabeçadas por figuras notórias como a própria Leopoldina, somam-se outras “bem mais expressivas” e ainda pouco conhecidas do público em geral. No caso, mobilizações coletivas de mulheres que atuaram na cena pública no período da Independência. A historiadora Andréa Slemian, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), concorda e agrega novas questões. “Ao longo desse processo, muitas mulheres se expressaram por meio de cartas, manifestos, entre outros textos. A nascente imprensa no Brasil teve papel importante nesse sentido, não apenas ao divulgar as ideias dessas mulheres a respeito da Independência na seção de cartas dos jornais, por exemplo, mas também servindo de porta-voz e suporte para questões relacionadas ao gênero feminino e aos seus direitos”, observa Slemian, que há 20 anos estuda a história da América portuguesa e do Brasil entre os séculos XVIII e XIX.

BnFIlustração de 1789 da Marcha das Mulheres a Versalhes: mulheres participaram ativamente da Revolução Francesa (1789-1799), movimentação que causou reflexos no BrasilBnF

A mobilização feminina não era novidade no Brasil, de acordo com Lyra. “Há registros de movimentos coletivos de mulheres em Pernambuco nos séculos XVII e XVIII, por exemplo. Durante a invasão holandesa, uma proprietária de terras foi detida e um grupo de mulheres pediu a interferência do governador João Maurício de Nassau [1604-1679] para que a presa fosse libertada”, relata. No período da Independência, contudo, essa atitude ganhou força graças aos ventos revolucionários que sopravam naquele momento. “As mulheres participaram ativamente da Revolução Francesa [1789-1799], que gerou a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã [1791]. Essa movimentação impactou em diferentes graus a sociedade da época em várias partes do mundo”, diz Lyra.

Propriedades e negócios
A participação feminina no processo de Independência do Brasil não se restringiu à palavra escrita. “Havia mulheres que cuidavam de propriedades e negócios, acompanhavam o que acontecia na cena pública”, lembra Slemian. É o caso da senhora de engenho Barbara Pereira de Alencar (1760-1832), que integrou a Revolução Republicana de 1817 no Ceará. “A província de Pernambuco era obrigada a contribuir com vultosas quantias mensais para manter a Corte portuguesa radicada no Rio de Janeiro desde 1808. Além disso, a presença real inflacionou os preços na Colônia. Isso tudo gerou descontentamento da elite às camadas populares, funcionando como gatilho para a revolução”, conta o historiador Flavio José Gomes Cabral, da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), que prepara um livro sobre o episódio. “O levante iniciou-se em Pernambuco e se estendeu para o Ceará, o Rio Grande do Norte e a Paraíba.”

Wikimedia CommonsRetrato de Barbara de Alencar (1760-1832), feito por Oscar Araripe em 2017: senhora de engenho integrou a Revolução Republicana de 1817, no CearáWikimedia Commons

Nascida em Pernambuco, Alencar mudou-se após o casamento para o Ceará, onde, viúva, passou a comandar o engenho Pau Seco, na região do Crato. “Pelo lado materno, ela tinha ascendência indígena e, pelo paterno, portuguesa”, relata Cabral. Dois de seus filhos frequentaram o Seminário Episcopal de Nossa Senhora da Graça de Olinda, ligado à diocese de Pernambuco e aguerrido núcleo revolucionário da província. Um deles era José Martiniano Pereira de Alencar (1794-1860), que no futuro viria a ser o pai do romancista José de Alencar (1829-1877). “José Martiniano contou com o apoio da mãe para disseminar no Crato ideias a favor da revolução, sobretudo na organização de reuniões que atraíam parentes e amigos da família”, prossegue o pesquisador.

Com o desmonte da revolução, Barbara de Alencar foi presa em 13 de junho de 1817 e conduzida à cidade de Fortaleza. “Antes foi exposta à execração pública nas ruas do Crato”, conta Cabral. Recuperou a liberdade cerca de três anos depois, em novembro de 1820, após passar por cadeias de Recife e Salvador. “A história de Barbara de Alencar é ainda pouco conhecida”, observa Lyra. Um dos motivos, segundo a especialista, é que ao longo dos séculos XIX e XX a historiografia brasileira tratou da Independência do Brasil com foco no 7 de setembro de 1822 e nas articulações engendradas por homens em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.

De acordo com Slemian, esse quadro vem mudando nas últimas duas décadas com a emergência de estudos pautados pela diversidade nas universidades brasileiras. “Mas ainda há muito a ser pesquisado”, constata. Uma das grandes dificuldades para que novas pesquisas avancem envolve as fontes oficiais do período, segundo Sérgio Armando Diniz Guerra Filho, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). “Esses documentos foram escritos por homens brancos da elite e, em geral, excluem a participação de outros segmentos da sociedade, como pobres, mulheres, negros e indígenas”, diz o historiador que em seu mestrado investigou a participação popular na guerra de Independência na Bahia (1822-1823).

Biblioteca NacionalDrama escrito em 1817 sobre a vida de Bárbara de AlencarBiblioteca Nacional

Entretanto, pistas da presença feminina podem ser observadas em manifestações populares, defende o estudioso. “Desde o século XIX os cortejos cívicos da independência na Bahia, comemorada em 2 de julho, homenageiam a figura do caboclo. Esses símbolos da participação popular na guerra contra os portugueses não raro são do sexo feminino, como acontece no município de Santo Amaro da Purificação”, relata Guerra Filho. Outro indício está no cortejo conhecido como Careta do Mingau, que sai em julho pelas ruas de Saubara, também no Recôncavo Baiano. “As mulheres se cobrem com lençol para lembrar as conterrâneas que se fantasiavam de assombração no passado para levar alimento de madrugada aos combatentes entrincheirados. Cuidar da alimentação e das fardas, além dos doentes nas enfermarias, é outra dimensão da participação feminina no processo de Independência”, diz o pesquisador.

Coleção Anne S. K. Brown, Brown University, ProvidenceRetrato de Maria Quitéria de Jesus (1792-1853), que se disfarçou de homem para lutar contra os portugueses na BahiaColeção Anne S. K. Brown, Brown University, Providence

Contra a ditadura militar
Nem todas as mulheres ficavam na retaguarda, a exemplo de Maria Quitéria de Jesus (c.1792-1853), que se disfarçou de homem e adotou a alcunha de soldado Medeiros para lutar contra os portugueses na Bahia. “Ela era reconhecida entre a tropa pela boa pontaria e sua real identidade só foi revelada quando o pai foi buscá-la em Cachoeira, então capital interina da Bahia. Quitéria recusou-se a voltar para casa e continuou lutando”, diz Guerra Filho. Em 1823 a combatente recebeu de Pedro I o grau de cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, no Rio de Janeiro.

A imagem de Maria Quitéria como heroína da guerra da Independência começou a ser construída logo no início do século XIX, constata o historiador da arte Nathan Gomes na dissertação de mestrado “Teatro da memória, teatro da guerra: Maria Quitéria de Jesus na formação do imaginário nacional (1823-1979)”. Defendida em abril, no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP), a pesquisa teve apoio da FAPESP. Segundo Gomes, a história da baiana ganhou destaque ao ser narrada no livro Journal of a voyage to Brazil and residence there during parts of the years 1821, 1822 and 1823. Trata-se do relato de viagem da artista e escritora inglesa Maria Graham (1785-1842), que, entre outras atividades, trabalhou como preceptora dos filhos de Pedro I e Leopoldina no Rio de Janeiro.

Lançada em 1824 pela editora britânica Longmann & Co., a publicação também trazia um retrato da baiana, cuja autoria a pesquisa atribui aos ingleses Augustus Earle (1793-1838) e Denis Dighton (1792-1827), além do gravador Edward Finden (1791-1857). “Quitéria está de corpo inteiro, com um saiote sobre a farda. Essa foi a imagem dela que ficou”, aponta Gomes. Entre 1840 e 1930 uma série de ações desenvolvidas sobretudo pelo Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) e Museu Paulista (MP) contribuiu para espraiar a fama da combatente baiana na memória coletiva. “O auge da consagração nesse período ocorreu no centenário da Independência, em 1922”, afirma o pesquisador. Na época o Museu Paulista, que hoje pertence à USP, passou a exibir em seu salão nobre um retrato de Maria Quitéria pintado em 1920 pelo italiano Domenico Failutti (1872-1923) junto de telas como Independência ou Morte! (1888) de Pedro Américo (1843-1905).

IpacNo cortejo Careta do Mingau, mulheres se cobrem para lembrar as conterrâneas que se fantasiavam de assombração para levar alimentos a combatentesIpac

O processo de apropriação da imagem de Maria Quitéria avançou no tempo, como mostra a pesquisa. Em 1953, ano do centenário de sua morte, a oficial baiana ganhou a primeira biografia: em tom romanceado, é assinada por Manuel Pereira Reis Júnior, historiador baiano à frente das comemorações da efeméride. Naquele mesmo ano o Exército brasileiro tornou obrigatória a presença de um retrato da combatente em suas repartições e criou a comenda Maria Quitéria. Bem mais tarde, em 1996, ela se tornaria Patronesse do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro. “Nos anos 1980 a corporação passou a aceitar oficiais do gênero feminino”, ressalta Gomes.

A pesquisa chega até a década de 1970, quando o Movimento Feminino pela Anistia (MFPA) converteu Maria Quitéria em símbolo contra o autoritarismo na ditadura militar (1964-1985). Criado em 1975 por um grupo de mulheres de São Paulo, o MFPA rapidamente se espalhou pelo país. À frente da iniciativa estava a dona de casa e ativista Therezinha Zerbini (1928-2015), cujo marido, militar, havia sido cassado pelo golpe de Estado. “A luta de Therezinha contra a ditadura era antiga. Ela foi uma das organizadoras do congresso clandestino da UNE [União Nacional dos Estudantes] realizado em Ibiúna [SP], em 1968, por exemplo”, conta Gomes.
Em relação ao MFPA, a escolha de Maria Quitéria como símbolo fez parte de uma estratégia deliberada do movimento de se associar a uma personagem já cativa no panteão das Forças Armadas, mas cujo significado extrapolava o campo estritamente militar. Podia representar, por exemplo, a defesa da participação das mulheres na política”, assinala Gomes. “Elas acreditavam que com isso poderiam agir com mais liberdade.” A estratégia funcionou parcialmente. Em 1977, a primeira edição do boletim Maria Quitéria, além de cartazes e panfletos com a imagem dela, foi apreendida pelo SNI [Serviço Nacional de Informação], que também infiltrou um fotógrafo em uma manifestação que o movimento participou naquele ano em Salvador.

NyplRetrato de Maria Leopoldina feito por autor desconhecidoNypl

Alternativa moderada
No salão nobre do Museu Paulista, o mesmo que abriga o retrato de Maria Quitéria, está uma tela em homenagem à imperatriz Leopoldina, também pintada por Failutti na década de 1920. “Nascida em Viena, Leopoldina era filha de Francisco II, imperador da Áustria, e foi educada para reinar. Ao se casar com o príncipe herdeiro do Reino Unido luso-brasileiro, o futuro imperador dom Pedro I, mudou-se para o Brasil com a crença de que o fortalecimento da monarquia nos trópicos seria benéfico para a manutenção dos regimes absolutistas em decadência na Europa desde a Revolução Francesa”, diz Lyra, da UFRJ, autora da biografia sobre a austríaca que integra o livro Rainhas de Portugal no novo mundo: Carlota Joaquina, Leopoldina de Habsburgo, publicado pela editora portuguesa Círculo de Leitores, em 2011.

Segundo Slemian, a atuação política de Leopoldina na Corte portuguesa aconteceu principalmente no início da década de 1820. “Ela desempenhou um papel importante no processo de Independência, que exerceu com extrema racionalidade e de forma mais cautelosa do que o marido”, observa a especialista, autora do verbete sobre Leopoldina no Dicionário da Independência: História, memória e historiografia, previsto para ser lançado no segundo semestre. “Entretanto, não é possível falsear sua atuação. Leopoldina era conservadora, morria de medo de sublevação social e lutou por uma alternativa de independência moderada, com a manutenção do príncipe no trono. Esse foi, por sinal, o projeto materializado em 1822”, conclui.

Projeto
À guerra, americanas, vamos com espadas cruéis: Retrato, gênero e identidade nacional no Brasil ‒ 1820-1920 (nº 19/19376-7); Modalidade Bolsa de Mestrado; Pesquisadora responsável Ana Paula Cavalcanti Simioni (USP); Beneficiário Nathan Yuri Gomes; Investimento R$61.965,25.

Artigo científico
LYRA, M. L. V. A atuação da mulher na cena pública: Diversidade de atores e de manifestações políticas no Brasil imperial. Almanack Braziliense, n. 3, p. 105-22, mai. 2006.

Livro
FURTADO, J. e SLEMIAN, A. Uma cartografia dos Brasis: Poderes, disputas e sociabilidades na Independência. Belo Horizonte: Fino Traço (no prelo).

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

Justiça da Independência teve rupturas, mas também continuidade

Em 1835, Jean Baptiste Debret pinta mulheres negras livres tirando seu sustento de atividades profissionais

Museu Imperial

Em julho de 1826, na recém-criada Câmara dos Deputados do Brasil, foi protocolada a petição de um indivíduo de nome Delfino, que afirmava ser um liberto, injustamente preso no Rio de Janeiro, enquanto se desenrolava uma disputa judicial sobre a legalidade de sua alforria. No texto, para resgatar Delfino do calabouço, seus representantes evocavam temas caros àquele período histórico: a liberdade individual, as garantias constitucionais e a presunção de inocência. Depois de uma guerra de agravos, embargos e recursos, o caso chamou a atenção dos parlamentares eleitos.

O episódio é relatado no artigo “Escravo até prove-se o contrário: Petição do liberto Delfino à Câmara dos Deputados (1826)”, das historiadoras Adriana Pereira Campos e Kátia Sausen da Motta, ambas da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Na história de Delfino, é possível ver em filigrana diversos elementos que compunham a Justiça nos primeiros anos do Brasil independente: o uso das petições, o papel do Parlamento, a difícil situação de escravizados e libertos. Era um tempo de rupturas, mas também de continuidade, que se refletiu no exercício da Justiça do país.

O começo do século XIX foi marcado por transições não só no Brasil, mas também na Europa e nos demais países da América. Na esteira das revoluções americana e francesa, surgiam os Estados constitucionais e representativos, para suplantar as monarquias do “antigo regime”. A Justiça e suas instituições foram profundamente transformadas por essa transição. Até o século anterior não havia separação dos poderes como a que conhecemos hoje. “A principal função do monarca, na lógica do “antigo regime”, era a Justiça, entendida como dar a cada um o que lhe é de direito”, afirma a historiadora Monica Duarte Dantas, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). “É uma Justiça que não se baseia simplesmente na aplicação de leis positivas – tal como se conhece hoje –, mas envolve uma série de outras produções normativas, escritas ou não. ”

As fontes do direito, ou seja, aquilo que fundamenta as decisões dos magistrados, eram múltiplas, incluindo a legislação régia (cujas complicações eram conhecidas no Império português como ordenações), mas também corpus do direito romano e do direito canônico, doutrina, normas e costumes locais, muitas vezes não escritos. “Dado que se tratava de uma sociedade corporativa, e não uma sociedade de indivíduos, administrar a justiça pressupunha considerar as particularidades e privilégios derivados do lugar social que cada um ocupava. Vários desses corpos possuíam não só normas e práticas próprias, que não estavam hierarquicamente abaixo da legislação régia, como tinham direito a tribunais ou juízes privados. Havia, por exemplo, o juízo dos moedeiros [fabricantes de moedas], que só deixou de existir em 1830. E os moedeiros, como todos os que desfrutavam de juízos próprios, podiam demandar que quaisquer casos, envolvendo até mesmo suas famílias, fossem julgados em tais foros privados”, acrescenta Dantas.

Segundo José Reinaldo de Lima Lopes, da Faculdade de Direito da USP, a Constituição brasileira de 1824 (com alguns excertos ilustrando esta reportagem) adotou o molde das cartas europeias da Restauração, período que se seguiu à queda de Napoleão Bonaparte (1769-1821) na França, em 1815. “Era monárquica, moderada, com participação limitada dos cidadãos e diversos mecanismos de filtragem do poder imediato do povo, como eleições indiretas e o voto censitário”, resume. Os arquitetos da nova ordem política e jurídica conceberam um princípio de “governo misto”, conjugando elementos populares (como as eleições), aristocráticos (como o Senado vitalício) e monárquicos (como o imperador). “Os debates da época no Brasil mostram que havia muito desejo de mudar, combinado com o temor das inclinações passionais das ‘massas’, tanto de homens livres quanto de escravizados. As convulsões e instabilidades das décadas de revolução eram bem conhecidas e assustavam muito”, afirma Lopes.

Essas características bastavam para que o ordenamento jurídico a ser criado fosse muito diferente do anterior. “Tanto que levou muito tempo para que os oficiais e servidores públicos se acostumassem. Os juízes, por exemplo, continuavam consultando o governo sobre como decidir certos casos”, observa Lopes. “Muito do que chamamos de direito privado, como o direito dos contratos, da posse e da propriedade, da família, dos negócios, continuou sendo regido por leis e doutrinas existentes anteriormente à Independência. A Igreja continuou gozando de sua jurisdição sobre assuntos de família e sobre seus próprios instrumentos de ação.”

Para a historiadora Andréa Slemian, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), embora a Constituição de 1824 não tenha, no Brasil, instalado de uma vez por todas um Estado nacional e moderno, ela é um documento de princípios cujo efeito mais relevante é projetar um novo modelo político, centrado no poder das leis, não mais do monarca. “É possível dizer que a primeira Constituição tinha menos poder normativo do que a de hoje, porque muito da prática jurídica anterior foi mantida”, observa. “Mas a Carta tinha a pretensão de normalizar uma nova sociedade, sob novos princípios. Ao projetar esses princípios, a Constituição foi um documento de referência para a construção da Justiça em todo o século XIX.”

Museu ImperialTambém de Debret, o quadro mostra a entrega de mantimentos a prisioneiros, em 1839Museu Imperial

A Constituição de 1824 previa a criação de um Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para julgar empregados privilegiados, como ministros, conselheiros de Estado, empregados diplomáticos, presidentes de província, e conceder revista nos processos julgados, em segunda instância, nos tribunais de Relação. O STJ passou a funcionar em 1828. Mas a Casa de Suplicação, criada no Brasil quando da chegada da família real, só deixou de existir em 1833. A Carta outorgada previa também a elaboração de códigos – mencionando especificamente o Civil e o Criminal. Enquanto os novos textos eram elaborados, o país manteve total ou parcialmente vigentes as leis de seu tempo de Colônia. Os dois primeiros códigos – Criminal e de Processo Criminal – foram adotados, respectivamente, em 1830 e 1832. As discussões sobre um código comercial começaram na década de 1830, mas ele só foi aprovado em 1850. Na segunda metade do século, foram debatidos projetos de um Código Civil. Ele só seria aprovado, contudo, em 1916.

Os códigos aprovados no começo da década de 1830 continham dispositivos que, enfim, revogaram a legislação penal do período anterior e, por isso, constituíram marcos na transição política do Brasil, de Colônia a país independente na era moderna. Já a legislação civil se manteve no registro anterior, com atualizações. “Quem fez essas atualizações foram os próprios doutrinadores do direito. O caso mais famoso é o das ordenações filipinas, editadas por Cândido Mendes [1818-1881] em 1870. Ele elencou o que seguia em vigor e o que não vigia mais”, diz Slemian.

A Carta de 1824 introduziu duas inovações principais no ordenamento jurídico do jovem país. Ambas refletiam uma preocupação com o modo de funcionamento da Justiça. “O Judiciário do Brasil nascente não foi pensado para uma sociedade de massas como a nossa, mas primeiramente para resolver o problema da corrupção da Justiça colonial e do arbítrio dos juízes na aplicação das penas”, comenta Lopes.

A primeira dessas inovações foi o júri, tanto em matéria criminal quanto em matéria cível. Novidade oriunda dos países anglo-saxões e adotada na Revolução Francesa para casos criminais, foi originalmente adotado no Brasil para os crimes de abuso de liberdade de imprensa, sendo expandido para todos os crimes em 1832. O júri era considerado, segundo Dantas, um bastião de defesa e garantia dos direitos dos cidadãos. Ainda que a Constituição previsse o júri no cível, ele nunca foi efetivamente adotado. Ainda que várias das lideranças do processo de independência dos países hispano americanos defendessem a instituição dos jurados, ele só seria de fato adotado décadas depois. Segundo Slemian, o júri refletia os anseios dos movimentos revolucionários latino-americanos por formas de justiça popular.

A segunda foi a eleição para o cargo de juiz de paz, autoridade que não precisava ter formação jurídica e exercia funções amplas. Previsto na Constituição para a conciliação, em 1827 tornara-se responsável também pela manutenção da ordem pública, pelos corpos de delito e por julgar pequenas causas, tanto cíveis como criminais. Em 1832, passou a responder também pela formação da culpa, correspondente ao que hoje chamamos de inquérito. Havia um juiz de paz para cada freguesia, a menor divisão administrativa do país. “Nesse sentido, o juiz de paz tinha proximidade maior com a população do que as autoridades municipais e, mais ainda, os juízes de direito, um por comarca, a maioria delas compreendendo vários municípios, ou seja, territórios muito vastos”, diz Dantas.

Diferentemente das eleições para deputado e senador, que eram indiretas, os vereadores e juízes de paz eram escolhidos pelo conjunto de todos os votantes, isto é, homens livres com mais de 25 anos e renda superior a 100 mil réis anuais, incluindo analfabetos e libertos. “Era um valor baixo, que ficou ainda menor com o passar dos anos devido à inflação”, comenta Dantas. “A população estava mais próxima dessa Justiça do que estamos hoje em dia, por exemplo.”

De acordo com o cientista político Christian Lynch, do Instituto de Estudos Políticos e Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), a adoção do sistema de jurados e a eleição de juízes de paz sem formação jurídica estão associadas a um projeto de descentralização política, característico de elites locais. No Brasil, essas elites eram compostas sobretudo por proprietários de terras, donos de escravizados e integrantes da burocracia estatal.

Pinacoteca do Estado de São PauloA chegada de desembargadores ao Palácio da Justiça, em 1839, no Rio de Janeiro, na visão de DebretPinacoteca do Estado de São Paulo

“Essa categoria queria seguir o modelo dos Estados Unidos, que elegia xerifes e usava o sistema de júri, porque odiava o ‘antigo regime’. Os juízes de fora e desembargadores, que eram bacharéis, apareciam para eles como representantes de uma antiga nobreza, do Estado central”, explica. “Por isso, simpatizavam com a ideia de juízes e jurados locais, eleitos pelo povo. Mas o Brasil não tinha povo como na Europa. Era um país escravista, então a maior parte da classe trabalhadora estava excluída, sem direitos civis. Quem era o povo? Os donos de escravizados. Em um país como esse, federalismo era quase feudalismo”, conclui.

Na década de 1840, parte dessas inovações foi revogada com a reforma da legislação. O juiz de paz perdeu suas funções judiciárias para delegados que não eram eleitos, mas indicados pelo poder central no Rio de Janeiro. O movimento fez parte do chamado “regresso conservador”, em que a tendência à descentralização política foi revertida no país.

A instituição das petições, como a que o liberto Delfino endereçou à Câmara dos Deputados, é remanescente das práticas do período anterior, observa Slemian. “Se uma pessoa escravizada tivesse comprado sua liberdade, mas o senhor ou seus herdeiros se negassem a reconhecê-la, havia dois caminhos. Podia abrir um processo ou enviar uma petição ao governador, que tinha o poder de fazer com que a questão fosse investigada e até mesmo que a alforria fosse cumprida”, resume. O parágrafo XXX do artigo 179 da Constituição de 1824, que continha uma declaração de direitos, cristalizou no novo regime a instituição das “reclamações ou petições” ao Legislativo e ao Executivo.

A historiadora pesquisou os chamados tribunais da relação, que correspondiam à segunda instância e estavam instalados em Salvador, Rio de Janeiro, Recife e São Luís. Embora fosse uma instituição essencialmente jurídica e, no caso do país independente, formalmente pertencente ao Poder Judiciário, o tribunal da relação também lidava com as petições, documento não vinculado a processos judiciais. “As petições tinham muita força no mundo jurídico antigo. Elas mostram que, apesar de todas as críticas à morosidade da Justiça e à corrupção dos juízes, existiam formas efetivas de capilaridade social da Justiça”, afirma.

Na petição de Delfino, lê-se que “o suplicante, como liberto, é um cidadão e como tal não pode ser preso, e muito menos continuar a existir em prisão”. A frase expressa uma característica da Constituição aprovada poucos anos antes, a respeito de um traço marcante do Brasil. Embora a escravidão fosse uma das instituições basilares do país no século XIX, há uma única referência a ela no texto constitucional de 1824, e velada: “No artigo 6°, parágrafo I, constam entre aqueles com direito à cidadania brasileira os nascidos no território brasileiro, ‘quer sejam ingênuos ou libertos’”.

Assim, como mostram Campos e Motta, os representantes de Delfino recorreram ao texto constitucional para afirmar que, ao receber a carta de alforria, ele não apenas deixava a categoria de escravizado como adentrava a de cidadão. Ora, a declaração de direitos do artigo 179 vedava a prisão sem culpa formada, instituía a fiança e abria a possibilidade de queixas a prisões arbitrárias.

Todavia, para infelicidade de Delfino, os parlamentares não deram abrigo aos argumentos. Em sua resposta, declararam que “o suplicante não pode dizer-se cidadão enquanto não for ultimamente decidida a questão que pende sobre a sua liberdade”. Com isso, Delfino teve de esperar no cárcere a decisão final do nascente Judiciário brasileiro. O registro dessa decisão ainda não foi encontrado.

Projetos
1. Remédios para a Justiça: Um estudo sobre os recursos judiciais nos Tribunais da Relação, entre o Império português e o do Brasil (c. 1750-c.1840) (no 17/18137-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Andréa Slemian (Unifesp); Investimento R$ 86.632,81.
2. Governantes e juízes: O problema da determinação do direito no Brasil imperial (nº 15/23689-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Pesquisador Visitante – Internacional; Pesquisador responsável José Reinaldo de Lima Lopes (USP); Pesquisador visitante Carlos Garriga Acosta; Investimento R$ 34.520,68.

Livros
LOPES, J. R. de L. História do direito e da Justiça no Brasil do século XIX. Curitiba: Juruá, 2017.
LYNCH, C. E. C. Da monarquia à oligarquia. História institucional e pensamento político brasileiro (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2014.
SLEMIAN, A. Sob o império das leis. Constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822-1834). São Paulo: Hucitec, 2009.
CAMPOS, A. P. e MOTTA, K. S. da. Escravo até prove-se o contrário: Petição do liberto Delfino à Câmara dos Deputados (1826). In: O espelho negro de uma nação. A África e sua importância na formação do Brasil. Vitória: Edufes, 2019.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

Erros e acertos dos caminhos da Independência

Trecho da Calçada do Lorena, que corta a serra do Mar

Hélio Nobre / MP-USP

Em 7 de setembro de 1822, antes de subir a serra do Mar e chegar à cidade de São Paulo, então com 10 mil habitantes, Pedro de Alcântara (1798-1834), filho do rei de Portugal, dom João VI (1767-1826), e príncipe regente do Brasil, valeu-se de um barco para ir de Santos a Cubatão. O trecho não foi feito a cavalo, como consta em alguns livros de história, porque não havia caminho por terra entre a ilha santista e o continente.

Ao subir a serra por um caminho de pedra conhecido como Calçada do Lorena e mesmo ao gritar o famoso “Independência ou morte”, o príncipe regente e seus 36 acompanhantes provavelmente estavam em mulas, não em cavalos garbosos como os do famoso quadro do pintor Pedro Américo (1843-1905). As mulas eram o meio mais seguro de subir a serra do Mar e não há relatos de que tenham trocado de animais, de acordo com estudos recentes de pesquisadores do Museu Paulista (MP).

Fonte Jorge Pimentel Cintra/MP-USP | Infográfico Alexandre Affonso

Outra conclusão das pesquisas: o lugar exato da declaração da Independência encontra-se na verdade a 200 metros (m) ao norte de onde o marco histórico, uma rocha em forma de paralelepípedo, foi colocado em 1825, a 600 m do riacho do Ipiranga, um córrego de 9 quilômetros (km) hoje parcialmente canalizado. O marco colocado em lugar errado foi perdido e só reencontrado em 1922, durante a reforma do Parque da Independência, mas não foi mais reposto.

“Estamos consertando muitos detalhes da história da Independência”, diz o engenheiro especializado em cartografia histórica Jorge Pimentel Cintra, da Escola Politécnica e do MP, ambos da Universidade de São Paulo (USP), que em 2013 refez e apresentou o mapa das Capitanias Hereditárias na revista Anais do Museu Paulista. Nos últimos três anos, ele consultou relatos e representações gráficas, subiu e desceu a serra do Mar várias vezes e conversou longamente com colegas historiadores.

José Rosael / Hélio Nobre / MP-USP / wikimedia commonsCalçada de Lorena, aquarela de 1826 de Oscar Pereira da SilvaJosé Rosael / Hélio Nobre / MP-USP / wikimedia commons

Como resultado, ele refez a cartografia dos 64 km percorridos em um dia por dom Pedro desde Santos até o Pátio do Colégio, então sede do governo paulista. Foi lá que terminou o dia de trabalho do então futuro primeiro imperador do Brasil. À noite ele foi ao teatro da Ópera, ostentando uma braçadeira de ouro confeccionada às pressas em que se lia “Independência ou morte”. Em uma das exposições do MP que deve ser aberta em 7 de setembro, um vídeo de 10 minutos mostrará, por meio de um sobrevoo, o caminho entre Santos e o Pátio do Colégio no dia da Independência.

Um dos mapas elaborados pela equipe do museu apresentará a Calçada do Lorena, a primeira estrada pavimentada entre a capital e o porto de Santos, usada para escoar a produção de açúcar do interior paulista. “Até agora, não havia nenhum mapa detalhado”, afirma Cintra, que percorreu o caminho marcando as coordenadas com um aparelho de GPS (ver quadro e mapa).

Werner Haberkorn / Fotolabor / Museu Paulista – USPA pista sul da Via Anchieta na fase final de construção, na década de 1950Werner Haberkorn / Fotolabor / Museu Paulista – USP

Do Paço Imperial ao Pátio do Colégio
A viagem que culminou com a Proclamação da Independência começou quase um mês antes. Na manhã de 14 de agosto de 1822, decidido a fazer alianças com fazendeiros, desfazer ameaças de motins e preparar o terreno para a separação política de Portugal, o príncipe, com sua comitiva, saiu do Palácio Imperial, atualmente chamado Palácio de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Atravessou cidades do Vale do Paraíba, então uma próspera região cafeeira e, depois de cavalgar cerca de 500 km, chegou a São Paulo em 25 de agosto (ver mapa).

Dez dias depois de conversas com políticos, beija-mãos e acenos para o povo, Pedro retomou o roteiro planejado e, agora de mula, seguiu para o litoral: desceu a Calçada do Lorena e chegou à então vila de Santos. Passou ali o dia 6, em visita a fortalezas e à família de seu ministro José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838). O historiador mineiro Eduardo Canabrava Barreiros (1908-1981) detalha esse trajeto no livro Itinerário da Independência (José Olympio, 1972).

Fonte Jorge Pimentel Cintra/MP-USP | Infográfico Alexandre Affonso

“Barreiros diz que dom Pedro e sua comitiva passaram por um aterro e cruzaram rios para ir de Cubatão a Santos, mas não é possível, porque esse caminho só foi construído cinco anos depois”, comenta Cintra, após examinar os relatos e os mapas do Itinerário. Sua conclusão é de que os viajantes devem ter ido de barco ou saveiro, como os retratados em Santos na época pelo pintor e naturalista britânico William Burchell (1781-1863). “O caminho por barco passa pelo largo do Caneu, em Santos, e segue pelo rio Cubatão até o porto de desembarque”, diz ele. “Essa correção proposta pelo Cintra é absolutamente necessária, porque o que estava sendo dito não existia em 1822”, reforça o historiador e curador do MP Paulo César Garcez Marins, que não participou da pesquisa.

Na madrugada do dia 7, um sábado, Pedro, com seu grupo, voltou à capital da capitania de São Paulo subindo a Calçada do Lorena, que a equipe do museu examinou atentamente. O nome é uma homenagem ao governador da capitania de São Paulo, o português Bernardo José Maria de Lorena (1756-1818), que promoveu sua construção.

Hélio Nobre / MP-USPPadrão do Lorena, monumento em homenagem ao governador da capitania de São Paulo, o português Bernardo José Maria de Lorena, que promoveu a construção da CalçadaHélio Nobre / MP-USP

Bastante íngreme, com um desnível de cerca de 700 m entre as pontas, tem um trajeto em zigue-zague, com 133 curvas e não 180, como atestou o grupo da USP, largura entre 3,2 m e 4,5 m e uma extensão de cerca de 9 km, cercada de mata densa, com chuva constante, sem cruzar nenhum curso d’água.

A Calçada foi planejada por engenheiros militares, construída por mão de obra escravizada e operou de 1790 a 1846, substituindo “caminhos que pouco mais eram do que as primitivas trilhas indígenas”, acentuou o arquiteto e professor da USP Benedito Lima de Toledo (1934-2019) em um artigo publicado em dezembro de 2000 na revista PosFAUUSP.

Léo Ramos ChavesCasa do Grito, no parque da Independência, construída em 1844Léo Ramos Chaves

“O que mais surpreendeu a população foi a técnica empregada na pavimentação: o calçamento com lajes de pedra”, relatou Toledo. Segundo ele, a nova técnica de pavimentação assegurou “o trânsito permanente de tropas de muares que, por essa época, principiavam a ser largamente empregadas no transporte de carga”. Antes, tudo o que se destinava ao porto de Santos era “transportado no ombro de indígena”.

Tomada pela mata, a Calçada foi restaurada no início da década de 1990 pela Eletropaulo, estatal do setor elétrico hoje extinta, gerenciada pela Fundação Florestal e concedida para exploração da iniciativa privada em 2020. Foi aberta para visitação no ano seguinte e recebe atualmente de 3 mil a 5 mil pessoas por mês, de acordo com o biólogo Maycon de Oliveira Morais, da empresa Parquetur. “Aprendemos muito com a equipe do museu”, diz ele.

Fonte Jorge Pimentel Cintra/MP-USP | Infográfico Alexandre Affonso

Cintra e sua equipe mapearam o primeiro trecho, de cerca de 4 km, aberto para visitação, e o segundo, com 2 km, ainda sem acesso para turistas. O trecho restante, da cota (altitude) 150 até o nível do mar, foi incorporado pela refinaria Presidente Bernardes, inaugurada em 1955. Os pesquisadores não conseguiram acesso para examinar essa parte da Calçada.

“No planalto, a Calçada passava em frente da capela de Nossa Senhora da Boa Viagem, no centro da cidade de São Bernardo do Campo”, informa o pesquisador. Ele refez o trajeto usando um mapa de 1900 da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo e outro de 1832, elaborado por ordem de Rafael Tobias de Aguiar (1794-1857), então presidente da província. O príncipe regente passou também em frente ao atual Instituto de Tecnologia Mauá e cruzou duas vezes o ribeirão dos Meninos antes de chegar ao Ipiranga, então um descampado. Hoje, não há nenhum registro físico da Calçada nessas localidades.

Museu Paulista / USPCaixa de ferro e pedra fundamental da Independência, guardados no Museu PaulistaMuseu Paulista / USP

Por volta das 16h30 de 7 de setembro, Pedro e seu séquito estavam em uma colina próxima ao riacho do Ipiranga quando dois mensageiros os encontraram para entregar ao príncipe cartas de sua esposa, Leopoldina (Leopoldina Carolina Josefa de Habsburgo-Lorena, 1797-1826), de José Bonifácio, de dom João VI e de seu amigo Henry Chamberlain (1796-1844), descrevendo os conflitos com Portugal e incitando-o à separação política da metrópole. Inversamente, as instruções das cortes de Portugal exigiam seu regresso imediato e a prisão de José Bonifácio.

Há dois relatos sobre o que se passou em seguida.

No primeiro, registrado no livro D. Pedro I e o grito da Independência (Melhoramentos, 1921), do historiador Francisco de Assis Cintra (1887-1947), o padre Belchior Pinheiro de Oliveira (1775-1856) relatou: “Dom Pedro, tremendo de raiva, arrancou de minhas mãos os papéis e, amarrotando-os, pisou-os, deixou-os na relva. Eu os apanhei e guardei. Depois, virou-se para mim e disse: ‘E agora, padre Belchior?’. E eu respondi prontamente: ‘Se Vossa Alteza não se faz rei do Brasil será prisioneiro das cortes e, talvez, deserdado por elas. Não há outro caminho senão a independência e a separação’”.

Léo Ramos ChavesEstátua de dom Pedro I no parque da IndependênciaLéo Ramos Chaves

O príncipe disse ainda, enquanto caminhava: “As cortes me perseguem, chamam-me com desprezo de rapazinho e de brasileiro. Pois verão agora quanto vale o rapazinho. De hoje em diante estão quebradas as nossas relações; nada mais quero com o governo português e proclamo o Brasil, para sempre, separado de Portugal”. E, por fim, virou-se para seu ajudante de ordens: “Diga à minha guarda que eu acabo de fazer a Independência do Brasil. Estamos separados de Portugal”. Depois, proclamou novamente a Independência, diante da guarda de honra.

Apresentado no Historia do Brasil-Reino e Brasil-Imperio (Pinheiro, 1871), do historiador Alexandre Jose de Mello (1816-1882), o segundo relato, do comandante da guarda de honra, Manuel Marcondes de Oliveira e Melo, barão de Pindamonhangaba (1780-1863), é mais teatral: “Diante da guarda, que descrevia um semicírculo, [o príncipe regente] estacou o seu animal e, de espada desembainhada, bradou: ‘Amigos! Estão, para sempre, quebrados os laços que nos ligavam ao governo português! E quanto aos torpes daquela nação, convido-os a fazer assim’. E arrancando do chapéu que ali trazia a fita azul e branca, a arrojou no chão, sendo nisso acompanhado por toda a guarda que, tirando dos braços o mesmo distintivo, lhe deu igual destino. […] ‘E viva o Brasil livre e independente!’, gritou dom Pedro. Ao que, desembainhando também nossas espadas, respondemos: ‘Viva o Brasil livre e independente! Viva dom Pedro, seu defensor perpétuo!’ […] E bradou ainda o príncipe: ‘Será nossa divisa de ora em diante: Independência ou morte!’.[…] Por nossa parte, e com o mais vivo entusiasmo, repetimos: ‘Independência ou morte!’”.

Wikimedia commonsIndependência ou morte, óleo sobre tela pintado em 1888 por Pedro AméricoWikimedia commons

Para saber onde tudo isso se passou, exatamente, Cintra examinou pinturas, fotos, relatos e mapas antigos. Encontrou incoerências, foi a campo com trena, bússola e GPS e mediu a distância entre o riacho do Ipiranga, com margens hoje concretadas, e uma ponte, hoje desfeita. “Em 1822, a ponte situava-se um pouco à direita da atual passarela metálica verde, mais próxima da rua Leais Paulistanos, e um pouco ao sul do curso d’água atual, retificado nesse trecho por ocasião da implantação do Monumento à Independência”, escreveu ele em um artigo de dezembro de 2021 na Anais do Museu Paulista.

Em 1825, como resultado de uma sessão da Câmara Municipal de São Paulo feita em campo e com a ajuda de topógrafos e de pessoas que testemunharam a proclamação, uma baliza foi colocada a 405 m da ponte. Por alguma razão desconhecida, 40 dias depois, sem considerar o local da baliza, provavelmente arrancada, implantou-se um marco – uma pedra –, colocado a 200 m do ponto determinado pela medição inicial.

Cintra concluiu que o lugar estava errado, por ser uma região relativamente plana, divergindo dos relatos segundo os quais o príncipe regente estava à meia altura de uma colina. “A pedra foi enterrada e perdida pouco tempo depois, encontrada em 1875 e novamente enterrada e perdida, mas ficando o local como sendo o correto”, comenta o pesquisador do MP.

“Senhor, ninguém mais do que sua esposa deseja sua felicidade e ela lhe diz em carta, que com esta será entregue, que Vossa Alteza deve ficar e fazer a felicidade do povo brasileiro, que o deseja como seu soberano, sem ligações e obediências às despóticas cortes portuguesas, que querem a escravidão do Brasil e a humilhação do seu adorado príncipe regente.

Fique, é o que todos pedem ao magnânimo príncipe, que é Vossa Alteza, para orgulho e felicidade do Brasil.

E, se não ficar, correrão rios de sangue, nesta grande e nobre terra, tão querida do seu real pai, que já não governa em Portugal, pela opressão das cortes; nesta terra que tanto estima Vossa Alteza e a quem tanto Vossa Alteza estima.”

Trecho da carta de José Bonifácio

Em 1902, o médico e ornitólogo alemão Hermann Von Ihering (1850-1930), primeiro diretor do MP, levou as dúvidas sobre o local exato para um debate com os colegas do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP). Como resultado, uma comissão coordenada pelo engenheiro Antonio de Toledo Piza e Almeida (1848-1905), um dos fundadores do instituto, confirmou o equívoco da medição anterior, fez outra e instalou, agora em local correto, a 405 m da antiga ponte do Ipiranga, um mastro, ao lado de outra pedra.

Removidos em 1922 durante uma reforma do parque da Independência, não foram mais repostos – o marco está hoje no acervo do museu. “Desde 1922 nada mais se fez”, comenta Cintra, “permanecendo ignorado ou pouco destacado o lugar mais preciso da Independência”.

Se ao chegar ao planalto o futuro imperador e seu séquito estavam em mulas, mais seguras e resistentes que os cavalos, mais velozes e usados em terrenos planos, por que Pedro Américo pintou cavalos no famoso quadro Independência ou morte, conhecido também como Grito do Ipiranga, até hoje mantido como a peça mais importante do Museu Paulista?

“Por causa das convenções da pintura histórica europeia, que determinava que as montarias em cenas heroicas ou de batalhas teriam de ser cavalos”, argumenta Marins. “Essa era a maneira adequada de representar o passado. Pintar mulas seria falta de decoro.”

Américo fez o quadro por encomenda do governo imperial, inspirado no francês Ernest Meissonier (1815-1891), que pintou a Batalha de Friedland (1875). Ele expôs a obra pela primeira vez em Florença, na Itália, em 1888, em uma cerimônia à qual compareceram o imperador do Brasil dom Pedro II (1825-1891) e a rainha britânica Vitória (1819-1901). Com 4,15 m por 7,60 m, a obra foi exposta na inauguração do Museu Paulista, em 7 de setembro de 1895, permanecendo em seu salão nobre desde então.

Américo não foi o único. Além do príncipe e sua guarda em cavalos, o pintor francês François-René Moreaux (1807-1860) incluiu crianças, homens e mulheres se abraçando em seu quadro A proclamação da Independência, de 1844. Feita a pedido do Senado, a obra, com 2,44 m por 3,83 m, encontra-se no Museu Imperial de Petrópolis, no Rio de Janeiro. “Pinturas históricas não são a realidade, mas versões do passado”, ressalta Marins.

Artigos científicos
CINTRA, J. P. Reconstruindo o mapa das Capitanias Hereditárias. Anais do Museu Paulista. v. 21, n. 3, p. 11-45. 1° dez. 2013.
TOLEDO, B. L. de. Do litoral ao planalto – A conquista da serra do Mar. PosFAUUSP. v. 8, p. 150-67. 19 dez. 2000.
CINTRA, J. P e CINTRA, A. P. O sítio da Independência no Ipiranga: As vicissitudes de um local histórico. Anais do Museu Paulista. v. 29, p. 1-48. 10 dez. 2021.

Livros
BARREIROS, E. C. Itinerário da Independência. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.
CINTRA, A. D. Pedro I e o grito da Independência; transcrição de documentos. São Paulo: Melhoramentos, 1921.
MORAES, A. J. de M. Historia do Brasil-Reino e Brasil-Imperio. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro, 1871.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

Diálogos sobre a democracia

A sessão de instalação da Assembleia Constituinte levou uma multidão ao Congresso Nacional, no início de 1987

Agência Senado

Refletir sobre a democracia brasileira a partir da Constituição de 1988 é o cerne do recém-lançado Acervo Digital do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec). A plataforma, que começou a ser pensada em 2019, foi desenvolvida graças a uma parceria com o Centro de Estudos Internacionais e de Política Contemporânea (Ceipoc) e o Centro de Memória, ambos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), além do apoio da FAPESP e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Atualmente, o banco de dados abriga duas coleções principais. “A aba denominada experiências de pesquisa contém entrevistas com pesquisadores sobre a democracia constitucional brasileira. Memória da Constituinte traz depoimentos de protagonistas e pesquisadores sobre o processo de transição democrática e a Assembleia Nacional Constituinte realizada entre 1987 e 1988”, explica Andrei Koerner, coordenador do projeto e professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH-Unicamp). “Queremos gradativamente ampliar o número de coleções.”

A equipe é composta por 10 pesquisadores vinculados ao Cedec e quatro bolsistas de iniciação científica. Em 2020 o grupo começou a produzir a coleção Experiências de Pesquisa. “Além de falar sobre o processo de elaboração da Constituição, os relatos revelam a trajetória acadêmica dos entrevistados, os bastidores de suas investigações, voltadas ao cenário político brasileiro entre o final da década de 1980 e os dias de hoje, bem como de que forma a instabilidade política que se instaurou no país a partir de 2013 vem impactando seus trabalhos”, informa o historiador Ozias Paese Neves, integrante da equipe do Acervo Digital, que atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

Arquivo Público do Estado de São PauloRegistro da entrega de emenda popular sobre direitos das crianças, em agosto de 1987Arquivo Público do Estado de São Paulo

Desde então a equipe ouviu sete pesquisadores, como o economista e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Luiz Carlos Bresser Pereira, ex-ministro dos governos José Sarney (1985-1990) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2003). “A listagem da bibliografia que utilizamos para preparar as entrevistas e o conteúdo adicional disponibilizado pelos próprios entrevistados ficarão acessíveis para consulta no banco de dados”, diz outra integrante do projeto, a cientista política Celly Cook Inatomi, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu), também apoiado pela FAPESP e pelo CNPq. “Esse material poderá servir de fonte não apenas para outros pesquisadores, mas também para professores do ensino fundamental e médio utilizarem em sala de aula, por exemplo.”

Dentre as entrevistas disponíveis no momento está a transcrição do depoimento da historiadora e socióloga Débora Alves Maciel, do curso de ciências sociais da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-Unifesp). Há também um vídeo com o relato do cientista político André Singer, da FFLCH-USP. “Todas as transcrições serão acompanhadas do vídeo da entrevista e vamos disponibilizar trechos desse material audiovisual para serem compartilhados nas redes sociais”, conta Koerner.

Zuleika de Souza / Agil / Biblioteca NacionalNa tribuna do Congresso, Ailton Krenak fez a defesa de emenda sobre os direitos indígenas, perante a Comissão de Sistematização Zuleika de Souza / Agil / Biblioteca Nacional

A meta para este ano é recolher outros quatro depoimentos de pesquisadores radicados no Brasil. “Aprendemos muito ao preparar e realizar as entrevistas. Elas têm trazido elementos importantes para que os integrantes do projeto reflitam sobre questões contemporâneas como a crise da democracia. A ideia é que essas reflexões se desdobrem em artigos a respeito dessas temáticas”, relata o cientista político Lucas Baptista de Oliveira, professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

Caixeiro-viajante
“A sistemática de coleta dos depoimentos é lenta e laboriosa. Além disso, alguns entrevistados faleceram antes de concluir o ciclo, sem conferir o conteúdo e autorizar sua publicação, o que inviabiliza a veiculação da entrevista”, informa o economista e cientista político Antônio Sérgio Rocha, coordenador do projeto Memória da Constituinte, a outra coleção presente no banco de dados.

A origem de Memória da Constituinte está no projeto “Constituição: Teoria e prática”, que nasceu em 2008 no Cedec sob a coordenação de Cicero Araujo, da FFLCH-USP (ver Pesquisa FAPESP n° 274). Na época, Araujo reuniu um grupo de pesquisadores, entre eles Rocha. “Após ler exaustivamente sobre as Constituições brasileiras desde o século XIX, resolvemos entrevistar pessoas que vivenciaram o processo Constituinte de 1987-1988, como o advogado e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau, autor do livro A Constituinte e a Constituição que teremos [Editora Revista dos Tribunais, 1985]”, recorda Rocha, professor da EFLCH-Unifesp, campus de Guarulhos.

Ao longo do tempo, a ideia inicial se desdobrou em outros projetos, sempre realizados pelo Cedec e, a partir de 2013, em conjunto com o curso de direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). A parceria, que aconteceu por intermédio do advogado José Francisco Siqueira Neto, professor daquela instituição de ensino, resultou no Colóquio nacional percurso constitucional brasileiro (2013) e no Simpósio internacional processos Constituintes comparados (2014), ambos sediados na UPM. Entre 2016 e 2018, a iniciativa contou com o apoio da FAPESP.

Acervo Museu da RepúblicaAdesivo com desenho do cartunista Henfil (1944-1988) foi utilizado para estimular a participação da sociedade civil nos trabalhos da ConstituinteAcervo Museu da República

Ao todo foram realizadas 152 entrevistas. Há cerca de quatro anos, 22 desses depoimentos passaram a ser disponibilizados no site do Cedec. Agora o material está sendo transferido para o Acervo Digital – 17 entrevistas já foram indexadas e encontram-se disponíveis para consulta. “Esses depoimentos mostram que a trajetória até a Constituinte de 1988 foi longa e iniciada pela sociedade civil ainda durante a ditatura militar [1964-1985]. Em 1971, por exemplo, o MDB escreveu a Carta do Recife, documento em que o partido oposicionista pretendia pressionar o regime pela reconstitucionalização do país”, aponta Rocha.

Essa pauta também mobilizava figuras públicas como o jurista Dalmo Dallari (1931-2022), professor emérito da Faculdade de Direito da USP, que em 2008 declarou ao projeto: “Precisávamos de uma Constituinte para que no Brasil houvesse uma Constituição verdadeira, autêntica. Começaram a surgir, principalmente depois de 1979, alguns trabalhos, alguns artigos sobre o assunto. […] Isso veio pouco depois da Lei da Anistia. Já havia, embora com algum temor, a possibilidade de fazer publicações. E aí se lançou a ideia de uma Constituinte, que depois se divulgou e teve grande circulação, por vários meios. Eu próprio virei um caixeiro-viajante da Constituinte, circulava por muitos lugares do Brasil. Relembro uma dessas viagens. Eu tinha ido falar em Pirapora, norte de Minas Gerais, com alguns grupos organizados. E um fato me surpreendeu: eu estava falando de Constituinte quando me disseram: ‘Está aqui uma delegação de mulheres, do bairro Tiradentes, que quer lhe entregar um documento’. Eu as recebi. Elas tinham preparado propostas para a Constituinte” (ver Pesquisa FAPESP n° 315).

Acervo CEDI / CDO deputado Ulysses Guimarães (1916-1992), presidente da Assembléia Nacional Constituinte, exibe o primeiro exemplar da Constituição de 1988Acervo CEDI / CD

Segundo Rocha, além das entrevistas, o Acervo Digital contará com documentação extra, como a cronologia dos 613 dias do processo de elaboração do texto constitucional, as bancadas partidárias que participaram da votação do documento e vídeos. “Um deles traz o antológico discurso do ativista indígena Ailton Krenak no plenário da Assembleia Nacional Constituinte, que mudou a votação do capítulo sobre a demarcação das terras indígenas”, conta. O conteúdo de Memória da Constituinte, entretanto, não ficará circunscrito ao mundo virtual. No momento, o pesquisador organiza o material em formato de livro, que deve ser lançado em oito volumes. “A expectativa é de que três deles saiam no próximo semestre”, finaliza o professor da Unifesp.

Projetos
1. Implementação do Núcleo de Pesquisa em Ciências Sociais e Tecnologias Digitais (nº 19/06157-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Reserva Técnica para Infraestrutura Institucional de Pesquisa; Pesquisador responsável Andrei Koerner (Cedec); Investimento R$85.824,44.
2. A Constituinte recuperada. Vozes da transição, memória da redemocratização, 1983-1988 (nº 15/07080-5); Modalidade Auxílio à pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Antônio Sérgio Carvalho Rocha (Cedec); Investimento R$86.193,64.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

Pensando alto sobre o Afeganistão: observações incompletas sobre a insurgência revolucionária

Não me surpreende que a imprensa ocidental continue a utilizar o termo “terroristas” para se referir ao Talibã – da mesma forma como fazia com o Estado Islâmico do Iraque e do Levante –. A imprensa (e não me refiro apenas à americana e inglesa), afinal, abraçou a estratégia da chamada “Guerra ao Terror” de Washington e Londres, e, assim, asseverar a adjetivação de “terrorista” é indispensável para alcançar a legitimação pelos consumidores da indústria de notícias do mundo globalizado (ou seria “americanizado”?) dos anseios do Império. Isso, obviamente adaptado aos seus próprios contextos, pode ser dito ainda mais certeiramente sobre as estratégias da China para convencer seus próprios cidadãos em relação a Xinjiang.

O fato é que o Talibã (assim como o Estado Islâmico) não é primariamente um grupo terrorista, mas sim um grupo revolucionário. E utilizar o termo apropriado não se trata apenas duma simples escolha retórica, mas de reconhecer as origens e os condicionantes da situação afegã (e paquistanesa) atual. O Talibã tem utilizado estratégias do terrorismo revolucionário para alcançar seus objetivos, dos quais o principal é a construção dum Estado revolucionário. Assim, reduzi-lo a um “grupo terrorista” é não compreender que não é a guerra que o destruirá, pois por trás da violência e morte que o acompanham está um pensamento político insurgente revolucionário.

A história está repleta de exemplos de uso do terrorismo revolucionário por grupos insurgentes com o intento de fundar um novo Estado: Jacobinos franceses, Bolcheviques russos, Khmer Rouge cambojano, Sionistas na Palestina, Islamistas em diferentes países do Oriente Médio, da Ásia e da África. A lógica é a de que um grupo rebelde ou um partido de vanguarda lidere o processo revolucionário.

Esses diferentes grupos revolucionários utilizam uma mescla de convencimento, intimidação, doutrinação e violência, com maior ou menor sucesso, para alcançarem seus objetivos. Mas tratá-los simplesmente como criminosos é ignorar que sua motivação é persistente e pode sobreviver – como o fez o Talibã – às divisões internas e aos ataques militares de seus inimigos…

Pensando em voz alta sobre o mito do Afeganistão

Há séculos uma utopia alienígena tem dominado os anseios dos pretensos conquistadores dos pashtuns e dos daris: a formação dum Estado nacional chamado Afeganistão. O erro que os impérios britânico e russo do século XIX, e os impérios soviético e americano do século XX, assim como o Paquistão, cometeram foi o de querer transformar múltiplas sociedades tribais num Estado-nação.

O próprio Talibã, que agora retorna ao “poder” (poderíamos até debater o sentido desse termo para os diferentes povos que habitam o “Afeganistão”), cometeu o mesmo erro: por influência soviética, americana e paquistanesa, sonhavam em construir um Estado nacional que neutralizasse as diferenças socioculturais das variadas tribos ao redor duma noção muito específica de Islã. O antiamericanismo nunca foi seu credo – até porque eles foram criados pelo Império Americano –, a construção duma nação sim. Entretanto, desde o século XVIII, o Afeganistão nunca foi uma nação: tem sido, no máximo, e sob mão de ferro, apenas uma confederação de tribos que partilham duma identidade pashtun (e às outras etnias tem restado apenas a submissão).

O Estado-tampão do século XIX, que servia apenas aos interesses dos impérios russo e britânico, tornou-se – no século XX – uma anedota monárquica para as classes urbanas de Cabul. Como no caso da Pérsia/Irã, a monarquia e sua modernidade serviam apenas como fantoches para o imperialismo europeu. A monarquia constitucional, o liberalismo, o comunismo, e todas as demais ideologias ocidentais representavam uma traição. A imprensa ocidental que cobriu a primeira tomada do poder pelo Talibã não compreendia que o problema não era apenas o violento fanatismo político com máscaras de religioso; era, mais ainda, a imposição duma identidade cultural e duma entidade política indesejada – afinal, nem todos são pashtuns, e nem todos desejam fazer parte duma nação pashtun naquilo que os outros chamam de Afeganistão.

O Afeganistão talvez seja o maior símbolo de fracasso do modelo ocidental de Estado-nação. Enquanto um Estado multinacional, como o Brasil, quase conseguiu convencer seus cidadãos a aderirem ao mito do Estado-nação (alguns dos povos originários ainda resistem), no Afeganistão, até hoje, o mito só foi imposto à bala e à espada…