Os nazistas eram socialistas?: uma brevíssima resposta

A inscrição lê, em alemão, “Dia do Trabalho, 1934”.
A imagem é frequentemente divulgada por grupos da direita política – nos EUA, Brasil e outros países –
como eviência de que o Nazismo teria sido, na verdade, um movimento socialista e não de extrema direita.

Gibson da Costa

 

O contexto dessa atual “discussão” (ou seria acusação?!) nas redes sociais é o conflito por legitimação política de grupos que se identificam como “direita” no Brasil. Se vocês prestarem muita atenção aos textos que são divulgados online sobre o assunto – e estou pensando em sites como os do Instituto Mises e do Ilisp –, e analisarem quem os escreveram, onde, quando e suas razões, verão que suas conclusões atendem aos seus próprios interesses partidários.

Mas, permitam-me fazer algumas observações:

Apesar de o nome do partido nazista ter sido “Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães”, dizer que o mesmo era um partido “socialista” simplesmente por causa do nome é como dizer que “Little Brazil”, em Manhattan, seja uma parte da República Federativa do Brasil simplesmente por causa de como é chamado!

O nome do partido foi uma estratégia política para lidar com as oposições socialista e comunista, arrastando os “trabalhadores” alemães para as fileiras nazistas. No Brasil houve estratégias semelhantes, no que se refere a nomes de partidos: Getúlio Vargas fundou o Partido Trabalhista Brasileiro, ao fim de sua ditadura marcada pelo anticomunismo – ele era socialista simplesmente porque utilizou o termo “trabalhista” no nome do partido que fundou? Claro que não! O nome que deu ao partido foi simplesmente uma tática de propaganda para enfraquecer as oposições comunista e socialista; atualmente, o PFL, depois de uma história de rejeição por conta de seu passado, se refundou em 2007 como “Democratas” – percebem que o nome pode fazer com que pessoas menos informadas criem uma conexão entre o DEM e o Partido Democrata americano?; o PSDB é o Partido da Social Democracia Brasileira – e vocês poderiam se perguntar: “social democracia”? Sério?!

Então, supor que os nazistas formassem um partido “socialista” simplesmente porque os termos “socialista” e “trabalhadores” aparecem em seu nome é fechar os olhos para as táticas políticas utilizadas para conquistar apoio eleitoral ou miliciano. Na verdade, o nazifascismo como um todo e o nazismo em particular são temas que merecem muito mais cuidado do que essa simplificação de “direita” versus “esquerda”. Eugen Weber, por exemplo, chamava essas classificações do fascismo como “direita” ou “esquerda” de estereótipos anacrônicos – e eu não poderia pensar em melhor qualificativo! O nazismo encontra suas origens ideológicas em variadas tradições, tanto em termos de ligações diretas quanto em conexões aleatórias. Como afirmam Peter Davies e Derek Lynch, os nazistas souberam “identificar, cooptar e perverter ideias e conceitos para seu próprio uso e para fins de credibilidade” (2002: 90).

A tolice dos comentários expostos em sites como os do Instituto Mises ou do Ilisp é que se tratam de observações presas a perspectivas econômicas anacrônicas – ou seja, além de limitarem um tema tão amplo a questões econômicas, projetam sobre o passado circunstâncias e questões do presente, desconsiderando os contextos dos atores históricos daquela época. A retórica utilizada – seguindo a mesma lógica dos livros didáticos de história da década de 1980, por exemplo – tenta criar uma oposição entre “socialismo” e “capitalismo” no que tange a aspectos econômicos. Entretanto, o nazifascismo não possui uma relação de origem direta com a economia em si, mas sim com o nacionalismo de Estado e tudo o que ele significava (ao menos de acordo com um grande número de autores, como Weber, Mann, Mommsen, Siegelbaum, Lüdtke, Hoffmann, Geyer, Lynch, Thorpe, Paxton, Griffin etc).

Ademais, os próprios autores desses textos divulgados nos sites da neodireita brasileira não demonstram uma compreensão histórica do termo “capitalismo”. Ser contrário ao “capitalismo”, no contexto do entreguerras, não significava ser “socialista”. “Capitalismo” se referia a um sistema regido pelas corporações, o discurso desses líderes políticos nacionalistas europeus enfatizava a lealdade à “nação”; ou seja, criavam uma oposição entre “nação” e “corporações” – atualmente, o mesmo conceito se encontra, por exemplo, na retórica de Donald Trump. Independentemente do nome que se dê às posições políticas de certos atores (direita, esquerda, liberal, socialista, anarquista, comunista etc), se se opunham ao domínio de corporações, eles se declaravam anticapitalistas!… Mussolini e Hitler são exemplos claros disso nos movimentos ultradireitistas.

A faixa diz, em alemão, “Morte ao marxismo”.

Por que, então, o nazifascismo é identificado como sendo de direita, mesmo possuindo certos traços aparentemente socialistas?

Retomo a adjetivação utilizada por Eugen Weber para se referir a essas classificações dos movimentos fascistas como sendo de “direita” ou “esquerda”: tratam-se de estereótipos anacrônicos!… A obsessão com seu uso, como bem demonstram os sites de propaganda da neodireita brasileira, parece ter mais a ver com legitimação política do que com historiografia.

Entretanto, há várias razões para identificar os movimentos fascistas como “[ultra]direitistas”. Uma delas é o simples fato de tanto os grupos que lideravam esses movimentos quanto o cerne das ideias que defendiam ter tido suas origens naquilo que se chamava de “direita”. O vocabulário que buscava falsear os conceitos utilizados por socialistas – “socialismo”, “trabalhadores” etc – mascaravam o fato de ideias e conceitos socialistas terem sido pervertidos para que os partidos fascistas encontrassem legitimidade dentre o eleitorado e as organizações trabalhistas. Dentre suas bandeiras, encontravam-se: a compreensão da “nação” como uma entidade orgânica, integral e transcendente, que deveria ser defendida de seus inimigos internos e externos; a preocupação com o vigor nacional e sua defesa contra elementos que o pusessem em perigo; a noção de destino especial; a preocupação com pureza racial; o anti-intelectualismo; um comunitarismo necessário àquela compreensão de “nação” etc.

Sim, é verdade que nazifascistas e comunistas partilhavam de muitas ideias, mas quando estudamos a história política, não avaliamos os atores apenas com base no vocabulário que utilizam ou nas noções que dizem defender – avaliamos, principalmente, suas ações, quem eram, com quem se associavam, quem perseguiam etc. E é com base nisso que o nazifascismo tem sido caracterizado como de “direita” – independentemente do quão anacrônicos e inapropriados sejam os termos “direita” e “esquerda”.

 
 

Referências citadas:

DAVIES, Peter; LYNCH, Derek. The Routledge Companion to Fascism and the Far Right. Nova York: Routledge, 2002.

WEBER, Eugen. Revolution? Counterrevolution? What Revolution?. In: Journal of Contemporary History, Vol. 9, No. 2 (Apr., 1974), p.3-47.

 
 

“A violência… você combate com violência”, afirma Bolsonaro

Resolvi encontrar online a entrevista de Danilo Gentili com Jair Bolsonaro, e me forcei a assisti-la. Queria dar uma oportunidade ao mal-afamado deputado brasileiro para desfazer quaisquer preconceitos que tinha contra ele. E, confesso, não me surpreendi com absolutamente nada – a não ser com o fato de ele ser pago para representar seus eleitores, ou, antes, com o fato de haver eleitores que comprem tal tipo de discurso em pleno século XXI.

Quando Jair Bolsonaro dá voz à sua estreita visão de mundo (e, enquanto Deputado, à sua visão inconstitucional), ancorada no saudosismo da Guerra Fria, só prova que não possui uma compreensão do Estado Democrático de Direito que sua função de Deputado Federal deveria representar. Ele, talvez, não tenha lido ou compreendido os artigos iniciais da Constituição à qual deveria se submeter, tanto como cidadão quanto (principalmente) como Deputado:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, […] constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[…]

III – a dignidade da pessoa humana;

[…]

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

[…]

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

[…]

II – prevalência dos direitos humanos;

[…]

VI – defesa da paz;

VII – solução pacífica dos conflitos;

[…]

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

[…]

XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

[…]

XLVII – não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b) de caráter perpétuo;

c) de trabalhos forçados;

d) de banimento;

e) cruéis;

[…]

XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

[…]

LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; […]

Os artigos não são reflexo duma “política de direitos humanos” que, para o entrevistado, significaria um obstáculo ao que chama de segurança pública. Antes, as políticas que lidam com questões referentes aos direitos humanos é que têm sua origem na Constituição Federal. Assim, defender os direitos de qualquer pessoa que tenha sido flagrada em delito ou condenada como criminosa não é “defender marginal”; é, antes, defender a Constituição!

O artigo 5º assevera a inviolabilidade do direito à vida de todos os cidadãos brasileiros ou estrangeiros residentes no país; desta forma, as propostas do deputado é que desrespeitam a Constituição brasileira. Como agente do Estado, ele deve saber que suas ações e palavras devem estar apoiadas nos princípios e normas constitucionais. Afirmar que “A violência… você combate com violência” é violar esses princípios e normas. De acordo com a Constituição Federal, a violência se combate com a lei!… E isso, a propósito, não é ser “politicamente correto”, é se submeter à Constituição – a base do Estado Democrático de Direito brasileiro!

A ignorância do suposto pré-candidato à Presidência acerca da Lei chega a ser assustadora e patética; especialmente quando se põe a “trumpizar” seu discurso, tratando sobre questões como a imigração. O deputado, provavelmente, não sabe que o Brasil é parte duma comunidade chamada “Mercosul”, e não sabe que há obrigações ligadas à membresia nessa comunidade para com os demais membros!

Por fim, para não dizer que não apreciei nada que tenha dito, concordo com suas seguintes palavras: “Não tem solução fácil para o Brasil e não existe salvador da pátria para o nosso país.” Essa é uma confissão que deveria ressoar nos ouvidos de seus admiradores. Realmente não existe salvador da pátria algum: Bolsonaro não é a salvação do Brasil!

Heil, Trump!… ou… Trump, o grande pai da América!

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Fonte: WGCL – TV Atlanta, CBS 46

Confesso que não sei o que pensar quando vejo os comentários de certos conhecidos sobre o pronunciamento de posse de Donald Trump ontem. Algumas dessas pessoas – brasileiros, a propósito – me surpreendem por aparentemente não se darem conta do que estava por trás daquelas palavras e, assim, aplaudirem o absurdo como se fora fonte de esperança política.

Permitam-me, então, apontar algumas coisas que ouvi naquelas palavras:

Juntos determinaremos os rumos da América e do mundo por muito tempo.

Significaria isso que a visão política de Trump não é a de um Império que influencie o mundo, levando liberdade e democracia aos povos “não livres”, contribuindo para a paz e estabilidade das relações internacionais (a tradicional noção dum “Império do bem”), mas, antes, a de um “Reich” que domina com pulso de ferro por um milênio?

Eu nem precisaria ser um professor de História para reconhecer os gritos do passado aqui. E não, não se trata apenas duma horripilante semelhança discursiva a diferentes tradições fascistas. Trata-se, principalmente, dum retorno àquela pior forma de “excepcionalismo” americano – do qual, na verdade, nenhum Presidente americano (incluindo o próprio Barack Obama) se afastou plenamente até agora.

O ponto importante, aqui, é observar a escolha dos termos usados por Trump: “determinaremos os rumos da América e do mundo por muito tempo” é afirmar que agora emerge um “povo” que, sozinho, delimitará/fixará/definirá/estabelecerá/precisará o futuro de todo o planeta. E não era exatamente essa a visão de “Reich” dos nazistas?… Se esse Império emerge a partir de agora, então Trump, como o “primeiro dos cidadãos”, seria o Imperador não apenas do mundo inteiro, mas também seria o senhor do próprio tempo.

Especialmente para os ouvintes cristãos devotos – mas também judeus ou muçulmanos – aquela pequena frase deveria causar um intenso desconforto. Ali estava um Presidente prometendo que determinará, junto com seu “povo”, os destinos da Terra por muito tempo a partir de agora.

“A cerimônia de hoje, entretanto, tem um significado muito especial. Pois hoje não estamos meramente transferindo poder de uma administração a outra, ou de um partido a outro – estamos transferindo poder de Washington e devolvendo-o a vocês, o povo americano.

Por muito tempo, um pequeno grupo na capital de nossa nação tem colhido as recompensas do governo enquanto o povo tem arcado com os custos. Washington floresceu – mas o povo não partilhou de sua riqueza. Os políticos prosperaram – mas os empregos se foram e as fábricas fecharam.

Os poderosos se protegeram, mas não aos cidadãos de nosso país. As vitórias deles não foram suas vitórias; os triunfos deles não foram seus triunfos; e enquanto celebravam na capital de nossa nação, havia pouco a ser celebrado pelas famílias em dificuldade ao redor do país.

Tudo isso mudará – começando aqui mesmo e agora mesmo, pois este momento é o seu momento: ele pertence a você.”

Você consegue perceber o teor populista do trecho? O populismo poderia ser definido justamente como essa retórica política baseada na vilificação moral das elites e na veneração do povo comum para proveito do político populista. Só que, obviamente, essa retórica se esconde do espelho – já que, do contrário, o espelho refletiria a imagem daquele político como parte da elite que ele mesmo condena.

De fato, Trump não era, até agora, um “político” profissional. Mas ele também é membro da casta que “colheu das recompensas do governo”. Em 2013, por exemplo, recebeu um desconto de 40 milhões de dólares de impostos em um de seus investimentos – um imóvel em Washington, D.C. (de acordo com um relatório sobre descontos de impostos, assinado pelo Senador James Lankford [republicano], de 2015). Logo após o 11 de setembro de 2001, foi formado um fundo de apoio a microempresas da vizinhança do World Trade Center, e quem recebeu dinheiro naquela época, de acordo com uma auditoria federal de 2006? Sim, a não microempresa de Donald Trump recebeu 150 mil dólares de apoio federal!!!

Sim, o mesmo bilionário que sempre desfrutou de subsídios do governo federal e de governos estaduais e municipais para benefício de seus investimentos imobiliários – incluindo os 40 anos de abatimento de impostos pela reforma do antigo Hotel Commodore, em Nova York, em 1980, e, mais tarde, os quase 200 milhões de dólares para construir uma ligação entre uma rodovia e um outro de seus hotéis – agora ousa acusar outros por terem colhido “das recompensas do governo”. Ele se apresenta como a solução e cura, mesmo quando qualquer pessoa mediocremente informada sabe sobre alguns dos benefícios que tem recebido desde 1980.

O seu pronunciamento é, então, um ícone da pior forma de populismo possível!

Deste dia em diante, será a América primeiro.

Todos já conhecem minha repulsa à expressão “America First” (=a América [EUA] Primeiro), que encapsula em si uma horripilante história imoral de violência. Esse foi o slogan do “America First Committee” que se tornou uma organização de apoio ao Nazismo, disfarçada de movimento pela paz. Sua “paz”, com a liderança de Charles Lindbergh, era evitar que os E.U.A. declarasse guerra à Alemanha, durante a 2ª Guerra, impedindo que os nazistas exterminassem as populações judaicas.

Com Trump, esse eco pavoroso do passado ganha um novo sentido e uma outra dimensão. Os “pobres” (no jargão político americano, os derrotados no domínio da virtude empreendedora), os muçulmanos, os imigrantes e os países que recebem algum tipo de ajuda dos E.U.A. passam a encarnar um obstáculo à suposta grandeza americana.

O Império, ou melhor, o “Reich” passa a não ter mais nenhuma responsabilidade para com os dominados. A raça superior vence as inferiores na corrida pelo domínio de 1000 anos, e como estão em disputa, os superiores não precisariam se importar com os seus dominados! Parece ser uma materialização da websérie de história contrafactual “The Man in the High Castle” – a diferença é que ali é a realidade sendo fantasiada; já aqui, a fantasia é que é realizada!

Tantas coisas são feias e trágicas nessa história toda. Uma das piores é o fato de brasileiros historicamente iletrados aplaudirem aquele pronunciamento, e o personagem que o emitiu, porque o que disse se assemelha aos preconceitos que eles mesmos abraçam. Talvez não tenham compreendido que aquela foi uma mensagem para os “parasitas” da América – e que eles se encaixam nessa descrição!

+Gibson

Toxicity: o álbum explosivo e inesquecível

Gibson da Costa

 Il n'y a qu'un problème philosophique vraiment sérieux: c'est le suicide.

[Há apenas um problema filosófico realmente sério: é o suicídio.]

(Albert Camus)
 

Era setembro de 2001. Enquanto os Estados Unidos eram sacudidos pelos atentados de 11 de setembro, o novo álbum da banda System of A Down (ou “SOAD”, para os íntimos), “Toxicity” – lançado no dia 4 daquele mês – estremecia os ouvidos do público americano. A música hereticamente surrealista e tóxica duma banda de “hard rock” criou o primeiro grande reboliço político contra artistas após o 11 de setembro. A vertiginosa “Chop Suey!” foi incluída numa lista de canções inapropriadas para serem tocadas nas rádios após os ataques terroristas e outras canções foram criticadas por seu conteúdo “questionável”. E o álbum se tornou o número 1 nas listas dos mais ouvidos e comprados naquela semana de setembro.

Considero os três maiores sucessos do álbum – Chop Suey!, Toxicity e Aerials – como as grandes pérolas do rock da primeira década do século XXI. As melodias, as poesias e as vozes se juntam para formar três grandes hinos políticos dos últimos tempos – e “hinos políticos” por conta não apenas de sua beleza desordeira, mas também por causa do contexto histórico no qual se tornaram sucesso massificado. Um sucesso, aliás, construído pela união da criação artística à retórica política, moldado por uma campanha de marketing articulada pela MTV – que mesmo após a campanha contra a transmissão da canção pelas rádios, repetidamente exibia o vídeo na emissora. O banimento da canção acabou sendo vencido por seu próprio absurdo no mundo da cultura de massa, e o álbum, atacado por políticos, religiosos e amantes das chamadas “teorias da conspiração”, se tornou um ícone do rock do início deste século.

 

Em “Chop Suey!”, ouvimos o trecho-problema:

[…] I don't think you trust
 In my self-righteous suicide
 I, cry, when angels deserve to die

[…]

Father into your hands, I commend my spirit
 Father into your hands
 why have you forsaken me
 In your eyes forsaken me
 In your thoughts forsaken me
 In your heart forsaken me […]

(Não acho que você confie
em meu suicídio hipócrita,
eu choro quando anjos merecem morrer

[…]

Pai, em suas mãos, entrego meu espírito
Pai, em suas mãos
Por que você me abandonou?
Em seus olhos, me abandonou
Em seus pensamentos, me abandonou
Em seu coração, me abandonou…)

E essas palavras bastaram para o início da caça às bruxas (ou seria “aos bruxos”?) contra o SOAD. Estariam eles incentivando ataques suicida contra os E.U.A.?

 

Nenhuma resposta poderia ser mais provocadora do que a dada pelo próprio Serj Tankian, coautor da canção e vocalista da banda, logo após os ataques de 11 de setembro:

"Os ataques/bombardeios brutais desta semana, em Nova York e Washington, juntamente com ameaças de ataques lá e em outras partes do país mudaram nossa época para sempre. Enquanto a mídia de massa se concentra nos detalhes da destruição e nas palavras encobertas dos políticos, tentarei entender e explicar os eventos a partir da cerca. BOMBARDEAR E SER BOMBARDEADO SÃO AS MESMAS COISAS NOS DIFERENTES LADOS DA CERCA.
 
 O terror não é uma ação humana espontânea sem crédito. As pessoas simplesmente não sequestram aviões e cometem harikari (suicídio) sem pensar antes de agir. Ninguém na mídia parece se perguntar POR QUE ESSAS PESSOAS FIZERAM ESSE TERRÍVEL ATO DE VIOLÊNCIA E DESTRUIÇÃO? […]"

Disponível em: <http://www.blabbermouth.net/news/archive-news-sep-14-2001-2/>. Acesso: 20 jan. 2017.

[Tradução livre nossa]

E o autor continua, oferecendo sua explicação e suas sugestões para a solução do problema do “harikari”. Sua receita antiviolência se assemelhando àquela oferecida pelas grandes tradições religiosas: a segurança e a sobrevivência só seriam alcançadas através da paz! A receita, embalada por um som pesado, intrigas políticas e uma massiva campanha de marketing pode levantar uma questão sobre a arte engajada do mundo do livre mercado: o rock, agora parte da cultura pop, ainda funciona como manifesto político (mesmo quando se vende como simples mercadoria comercializável)?

As outras pérolas do álbum:

 

Donald Trump: O discurso maniqueísta quase-fascista venceu, mas não pelo voto popular

Gibson Da Costa

O derrotado pelo voto popular, mas vencedor no Colégio Eleitoral, assume a Presidência dos Estados Unidos da América hoje. Mas será mesmo que o seu discurso salvacionista-maniqueísta – sua retórica [quase-]fascista – reflete os anseios da maioria esmagadora dos eleitores americanos?

Hillary Clinton venceu Donald Trump em quase 2.9 milhões dos votos populares – isto é, os votos dados por eleitores comuns. Trump venceu as eleições porque conseguiu um número maior de eleitores no Colégio Eleitoral. Ou seja, o sistema eleitoral maluco que ele mesmo tanto criticou durante a campanha foi o único responsável por sua vitória – mesmo considerando a alta porcentagem dos votos populares que obteve. (Ele, a propósito, não foi o primeiro a perder o voto popular, mas vencer no Colégio Eleitoral.) Se o sistema eleitoral americano fosse como o brasileiro, consistindo na contagem dos votos diretos para Presidente dados pelos próprios eleitores (1 eleitor = 1 voto), ele não teria ganho desta vez!

O ponto importante é que seu discurso salvacionista-maniqueísta, sua retórica [quase-]fascista, não foi comprada pela maioria esmagadora dos eleitores americanos – como alguns pensam. Para que você tenha uma ideia, eis a porcentagem dos votos populares recebidos pelos principais candidatos a Presidente dos E.U.A. em 2016:

Hillary Clinton (Partido Democrata) → 48,2% (65.844.954 votos)

Donald Trump (Partido Republicano) → 46,1% (62.979.879 votos)

Gary Johnson (Partido Libertário) → 3,3%

Jill Stein (Partido Verde) → 1%

O resto dos votos se distribuíram entre outros candidatos minoritários. (Esses dados, a propósito, estão atualizados até 22/12/2016.)

Filosofia para as vítimas da antifilosofia

Gibson da Costa

A vida etérea das “redes sociais” é a vida do marketing pessoal. Estamos todos numa vitrine na qual nos vendemos por meio das aparências. É a vida das edições de imagens, que impulsionam a [auto]massagem do ego na disputa pelos “likes” da “Rede Social” de todas as redes sociais. É a vida das imagens com citações descontextualizadas e, muitas vezes, apócrifas. Agora, a disputa e o conflito giram em torno de outra forma de poder: o poder da imagem autoconstruída dum “eu-mercadoria”, projetado, desenhado, manipulado, escrito pelo gosto e preferências alheias.

A coisa triste dessa baratização da humanidade digitalizada é que facilmente nos tornamos vítimas de falsos “filósofos”. E a “Rede Social” está repleta desses. Eles oferecem uma autoajuda barata que se vende como “filosófica”; uma autoajuda que oferece a “cura” para o deficit de “leitura” de nossa cultura: criam inimigos e heróis – os inimigos, claro, são todos aqueles de quem discordam e que deles discordam; os heróis são eles próprios, cercados por acólitos que repetem os refrões bélicos típicos de fanáticos!

E eu que sempre pensara que a criticidade fosse a base da filosofia! O julgar pela aparência, em minha compreensão, se afasta muito de qualquer noção filosófica de criticidade. Ou, como bem escreveu Roger Scruton (autor com quem nem sempre concordo): “os seres racionais não somente olham para as coisas, eles olham dentro das coisas”. Assim, qualquer “filósofo” que se venda como fonte de verdade única, enquanto condena todo e qualquer autor como se fosse mentiroso e, por isso, inferior a si, pratica qualquer coisa, menos filosofia!

A filosofia é inseparável do pensamento crítico, e este – de acordo com Hannah Arendt – faz com que tornemos “o outro” presente por meio da imaginação. Essa criticidade (ou “esclarecimento”) nos faria conhecer e considerar os pontos de vista de outras pessoas. E, assim, poderíamos analisar um objeto por todos os lados, a partir de diferentes perspectivas.

Proclamar anátemas não é filosofar; é, antes, dogmatizar. E a dogmatização é um instrumento utilíssimo para o marketing pessoal daqueles que se vendem como “gurus” da “filosofia” das redes sociais. Como o que proclamam é “a verdade”, e todos os outros são mentirosos, seus discípulos os veem como “autoridade” intelectual, moral, espiritual etc. Assim, uma nova geração de fanáticos é criada. O questionamento e o filosofar são assaltados. Defensores da violência, da tortura, do autoritarismo e da hierarquia são exaltados como baluartes da “esperança” – uma esperança vazia que já decepcionou inúmeros no passado e não falhará em decepcionar os acólitos desses falsos “filósofos” do presente.

 Carvalho prometeu mergulhar numa banheira de palavrões caso seu personal chanceler Ernesto Araújo rompa relações com a FrançaExemplo mais famoso entre os brasileiros de “filósofo” da antifilosofia

Você não tem de acreditar em nada do que escrevo. Não quero nem preciso de seguidores. Apenas convido você, que lê essas palavras, a olhar para “dentro das coisas”, a analisar qualquer coisa a partir de diferentes perspectivas. Em outras palavras, convido você a filosofar!

Referências

 

ARENDT, Hannah. Lições sobre a filosofia política de Kant. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.

 

SCRUTON, Roger. Bebo, logo existo: guia de um filósofo para o vinho. Tradução Cristina Cupertino. São Paulo: Octavo, 2011.

Eleições presidenciais dos E.U.A. de 2016: voto no exterior, partidos e candidatos

Gibson da Costa

Em 2011, o Departamento de Estado dos Estados Unidos estimava a população de cidadãos americanos residentes no Brasil em cerca de setenta (70) mil – nesse número estão incluídos também aqueles que possuam a cidadania brasileira (seja por terem originalmente nascido no Brasil, por serem filhos de brasileiros ou por terem passado por processo de naturalização no país) [1]. Esse número, obviamente, não é exato e não reflete o número de eleitores americanos no Brasil – isto é, de cidadãos americanos registrados como eleitores, residentes em território brasileiro –, mas, ainda assim, poderia servir de razão suficiente para que brasileiros se interessassem em saber como funciona o sistema eleitoral americano.

Diferentemente do que ocorre no Brasil, votar não é uma obrigação da cidadania americana – é, antes, um “privilégio”. Por isso, nem todos os cidadãos participam das eleições; nas eleições presidenciais de 2012, por exemplo, o número de cidadãos que votaram, comparado à população em idade eleitoral, foi de apenas 57,5%, de acordo com o relatório do Bipartisan Policy Center para as eleições daquele ano. De acordo com o mesmo relatório, o Estado de Utah, por exemplo, teve a participação de apenas 12,5% dos cidadãos em idade eleitoral [2].

Cidadãos americanos podem votar de qualquer lugar do mundo. Esse voto, contudo, não ocorre em consulados americanos, já que – diferentemente do Brasil – é proibido votar em dependências diplomáticas americanas no exterior. O voto é realizado, geralmente, pelos correios, através do envio de uma ficha eleitoral oficial que foi previamente enviada ao eleitor pelo Estado no qual o mesmo está registrado – mas também há outras formas de registro de votos vindos do exterior, a depender do Estado em questão. Isso pode fazer com que, em alguns Estados, a apuração dos votos leve dias para ser oficialmente concluída, já que devem esperar a contagem dos votos dos cidadãos no exterior (ou em outros Estados americanos). É um sistema extremamente complexo e fragmentado, quando comparado ao brasileiro!

Diferentemente do caso de brasileiros no exterior, é possível participar mesmo de eleições estaduais e/ou municipais, além das federais, estando no exterior ou em um Estado diferente do Estado de domicílio oficial. Como as leis eleitorais são estaduais, as regras mudam a depender do Estado onde o eleitor esteja originalmente registrado (isto é, do Estado no qual o eleitor tenha, de direito, “domicílio”). O Estado de domicílio, para os cidadãos que não residem mais nos E.U.A. (mesmo que nunca mais voltem ao país), é o último Estado de residência antes de deixar o território americano – são as leis desse Estado que determinam as regras às quais o eleitor deve se submeter.


Dos candidatos de 2016

Um equívoco comum fora dos Estados Unidos é pensar que haja apenas dois partidos políticos no país e, consequentemente, apenas dois candidatos à Presidência da União. A factualidade é bem diferente disso.

Há, literalmente, algumas centenas de partidos políticos nos E.U.A. A razão é simplesmente porque, diferentemente do Brasil, é possível haver partidos registrados apenas num município ou num Estado. Atualmente, há 36 partidos cujos filiados ocupam posições eletivas em algum nível (municipal, estadual ou federal). Desses, 8 possuem filiados nos executivos e legislativos estaduais: Partido Republicano, Partido Democrata, Partido Progressista [do Estado] de Vermont, Partido Libertário, Partido das Famílias Trabalhadoras, Partido Conservador do Estado de Nova York, Partido da Independência de Nova York, e os Independentes (que são políticos que concorrem sem estar filiados a um partido, mas que, são contados como um bloco quase-partidário). Os maiores partidos americanos, isto é, partidos que estão presentes em quase todos os Estados da União, são: Partido Republicano, Partido Democrata, Partido Libertário e Partido Verde. E os candidatos desses partidos são os nomes que possuiriam, em tese, alguma chance de serem escolhidos como Presidente dos Estados Unidos – já que seus nomes aparecem nas listas de votação de quase todos os Estados (os republicanos, democratas e libertários estão em todos os 50 Estados e no Distrito de Colúmbia; o Partido Verde é que não alcança todos os Estados).

Você, leitor, obviamente já conhece dois desses candidatos (e eu me esforçarei para guardar minhas opiniões sobre eles para mim mesmo!): Donald Trump, o candidato do Partido Republicano; e Hillary Clinton, a candidata do Partido Democrata. Esses são os candidatos que possuem mais recursos financeiros para gastarem os milhões e milhões de dólares que precisam para se promoverem. É por essa razão que todos os presidentes eleitos desde meados do século XIX sempre pertenceram a uma dessas duas agremiações. Candidatos de outras agremiações são chamados de “candidato de terceiro partido”. E a última vez em que um candidato de terceiro partido a Presidente conseguiu votação significativa foi em 1968, quando Ross Perot, um Independente (ou seja, não filiado a nenhum partido) alcançou 5% dos votos.

Os dois outros candidatos majoritários são Gary Johnson, do Partido Libertário, e Jill Stein, do Partido Verde. Além deles, outros candidatos presentes nas listas de votação de vários Estados são: Darrell Castle (Partido da Constituição), Evan McMullin (Independente), Gloria LaRiva (Partido do Socialismo e Libertação), Rocky de la Fuente (Partido da Reforma), Emidio Soltysik (Partido Socialista), Alyson Kennedy (Partido Socialista dos Trabalhadores), e mais cerca de 550 candidatos que ainda não abandonaram a disputa!

Então, como se vê, a redução das eleições àqueles dois candidatos que aparecem nos telejornais diários, ao redor do mundo, é um desserviço à democracia eleitoral americana, e contribui para o desconhecimento que a maioria das pessoas ao redor do mundo tem sobre a política interna dos Estados Unidos.

[1] Brazil-U.S. Bilateral Relations Fact Sheet. US Department of State. Disponível em: <https://www.state.gov/outofdate/bgn/brazil/191355.htm>. Acesso em: 11 out. 2016.

[2] Bipartisan Policy Center. 2012 Voter Turnout Full Report. Disponível em: <http://cdn.bipartisanpolicy.org/wp-content/uploads/sites/default/files/2012%20Voter%20Turnout%20Full%20Report.pdf>. Acesso em: 11 out. 2016.

Uma breve resposta a críticas desinformadas sobre o Construtivismo

Como resposta a uma manifestação minha sobre as afirmações dum vlogger/autor brasileiro (guru duma nova geração autoproclamada “conservadora”), um colega me enviou a ligação para um vídeo no qual o mesmo autor discorre – em sua “civilizada” maneira! – sobre aquilo que ele chama de “método sócio-construtivista”, ou o que o resto de nós chama de “construtivismo”.

Abaixo, responderei, brevemente, a algumas das perspectivas expostas no vídeo – deixando de lado, por ter mais o que fazer da vida, as recorrentes grosserias do nobre filósofo para com seu público.

1. “Método sócio-construtivista”

O construtivismo, em si, não é um método de ensino, é um conjunto de teorias epistemológicas. Sobre essas – ou uma ou algumas dessas – múltiplas teorias podem-se construir diferentes métodos de ensino; assim, não há “o método construtivista de ensino”.

2. “Para o método construtivista de ensino só existe [sic] dois elementos em jogo: um é o aluno e o outro é o mundo, que é o objeto.”

A propósito, para alguém que ataca a “incorreção” gramatical alheia como uma forma de “burrice”, é interessante como Carvalho consegue cometer um erro de concordância verbal tão simples: ele, talvez, não saiba que o verbo “existir” deve concordar em número com seu complemento, assim “só existem dois elementos”! Mas, como não partilho da visão linguística do nobre filósofo e, assim, não penso que as pessoas que violam a “gramática” normativa sejam intelectualmente deficientes – se o fizesse, tanto ele quanto eu seríamos intelectualmente deficientes –, analisemos sua afirmação:

Não, para construtivistas não há apenas “dois elementos em jogo” no processo de aprendizagem. Para compreender isso, temos de nos lembrar de onde saem as ideias construtivistas. Temos de revisar um pouco da história da filosofia.

Pensemos sobre as questões epistemológicas da modernidade – isto é, questões que lidam com a origem do conhecimento. No chamado Ocidente, temos lidado, na modernidade, com três grandes tradições que buscam oferecer uma explicação filosófica para o ser e o fazer do conhecimento, e, consequentemente, para como aprendemos: A) a tradição racionalista moderna, iniciada por René Descartes; B) a tradição empirista, iniciada por John Locke; e, C) a via media da tradição interacionista de Immanuel Kant.

Explicando cada uma dessas grandes tradições de forma muito breve – e, portanto, deficiente –, poderíamos resumi-las da seguinte forma:

a) A tradição racionalista moderna → o racionalismo moderno emergiu como uma versão atualizada do idealismo platônico. Para a tradição platônica, já trazíamos, desde antes do nascimento, as ideias das coisas, que nossas almas já conheciam desde sua vinda do mundo das ideias verdadeiras/perfeitas. Em sua versão moderna, as ideias são compreendidas de forma mais ampla, mas, ainda assim, como algo que trazemos ao mundo – ou seja, como algo inato. Diferentemente do idealismo platônico, o racionalismo moderno se baseia no raciocínio a partir da natureza desenvolvida na modernidade. Em seu cerne, encontra-se a visão de que as únicas fontes de conhecimento sejam, exatamente, a razão e o pensamento.

b) A tradição empirista → opostamente ao racionalismo, o empirismo compreende o conhecimento como algo que se obtém a partir do mundo externo, por meio dos sentidos, da experiência. Assim, para os empiristas, nasceríamos com uma mente sem conteúdos – uma tábula rasa. O conhecimento seria obtido apenas através da experiência com o meio e com os estímulos externos – ou seja, o conhecimento viria do objeto, de forma passiva, para o indivíduo; o objeto externo é, assim, a única fonte de conhecimento.

c) A tradição interacionista → Immanuel Kant, em sua monumental “Crítica da razão pura”, ofereceu uma solução para os reducionismos tanto do racionalismo quanto do empirismo. Para Kant, tanto o sujeito quanto o objeto externo desempenhariam um papel na formação do conhecimento. Através da intuição recebemos as impressões dos objetos externos; e, através do entendimento, articulamos essas impressões, aplicando os conceitos que dão forma a esses objetos. Em outras palavras, o conhecimento seria formado através da interação entre o pensamento humano e a experiência sensorial. [Obviamente, a teoria do conhecimento desenvolvida por Kant é muito mais complexa do que essa simplificação, mas não é minha intenção aqui discuti-la – apesar de sua fundamentalidade para o construtivismo.]

Essa teoria epistemológica de Kant é a base filosófica para o construtivismo, originalmente, a chamada “epistemologia genética” de Jean Piaget. Piaget desenvolveu sua epistemologia genética influenciado pela epistemologia de Kant, mas é importante ter o cuidado de não sinonimizá-las – elas não são, necessariamente, a mesma coisa. Obviamente, o construtivismo, enquanto conjunto de teorias, recebeu contribuições importantes de outros pensadores além de Kant e Piaget, como Vygotsky, Luria e Wallon, por exemplo.

Mas, voltando à afirmação de Carvalho, na abordagem construtivista, aqueles dois elementos, tanto na formação do conhecimento quanto no processo de ensino-aprendizagem escolar, são insuficientes em si mesmos. É necessária a interação entre os dois; e, na escola, essa interação ocorre por meio da facilitação oferecida pelo professor.

3. “… e, no fim, chegará a obter toda uma concepção organizada do mundo a partir da [sic] mero experimento espontâneo. […] Agora, toda esta escola que foi adotada no Brasil, há cinquenta anos, e vê esses filhos das p***** desse Jean Piaget, Emilia Ferreiro, Vygotsky, Paulo Freire… todo esse bando de charlatão e vigarista [sic], p****!… O ensino é assim: o ensino não pode ser diretivo…”

Esse é o tipo de afirmação feito por quem não conhece as teorias que servem de base para o construtivismo. Os diferentes métodos construtivistas não são espontaneístas ou não-diretivistas, como assevera Carvalho. Piaget, por exemplo, ensinava que a aprendizagem é “provocada” pelo professor. Para Vygotsky, o professor é o “mediador” da aprendizagem. Para Wallon, é através da “intervenção” planejada e informada do professor que ocorre a aprendizagem na escola. Todos eles desmentem a afirmação do candidato a filósofo da educação acima sobre qual seria a perspectiva teórica construtivista.

4. “… é pra isto que existe a figura do mediador, do professor… sem o qual o aprendizado é impossível, impossível.”

Nesse ponto, posso concordar com o filósofo. Toda aprendizagem é sempre mediada. Para o construtivismo, na escola, essa figura de mediador é assumida pelo professor. Obviamente, o professor não é o único mediador no processo de aprendizagem duma criança, dum jovem ou dum adulto; ele o é no meio escolar.

É importante, aliás, conceituar a própria mediação, para evitarmos maiores incompreensões. O termo refere-se ao elo (leia-se “ponte”, “ligação”) entre o sujeito e seu objeto de aprendizagem – ou seja, é um processo de facilitação da construção do conhecimento por um personagem extra nessa interação entre o sujeito e o objeto. Isso é parte essencial das teorias construtivistas, e só alguém que não conheça as obras dos autores-chave dessa tradição poderia afirmar o contrário.

5. “Eu hoje mesmo tava [sic] lendo, a primeira página da Folha de São Paulo, você tem uns vinte erro [sic] de gramática na primeira página dum jornal, p****! Isso quer dizer que os profissionais de idioma não sabem mais o idioma… E as pessoas assim, elas não conseguem raciocinar…”

E isso foi, na verdade, para fechar com chave de ouro! Nem falarei sobre as perspectivas linguísticas abraçadas pelo pensador acima. Não preciso, agora, comentar mais nada dito nesse vídeo. Só me resta dizer que quando falamos, sem limites de bom senso, sobre tudo – mesmo aquilo que não conhecemos –, corremos o risco de, além de nos contradizermos, nos ridicularizarmos! Essa é uma lição que mesmo os grandes “filósofos” deveriam aprender!

Gibson Da Costa

Uma brevíssima explicação acerca da “shari’a”

 

 
Gibson da Costa
 


Fico sempre muito irritado quando ouço ou leio alguns comentários acerca da chamada “shari’a”. A maioria das pessoas, seguindo a retórica dos agentes da imprensa, refere-se à “lei islâmica” como se ela fosse uma “entidade” única e/ou como se fosse uma grande aberração.

…Eles não poderiam estar mais errados!

O Islã, como o Judaísmo e o Cristianismo, tem um código legal religioso. Enquanto o código legal judaico ortodoxo é chamado de “halakhah”, e o cristão é chamado de “direito canônico” (nas tradições católicas) ou “ordem eclesiástica / ordem da Igreja” (em muitas tradições protestantes), o código religioso da Ummah (a comunidade de fiéis muçulmanos) é chamado de “shari’a” (o Direito Islâmico). Nenhum deles, contudo, é estático ou uniforme. Como ocorre com as códigos civis, há espaço para muita diversidade interpretativa no que concerne a esses códigos.

O que importa, aqui, é que não há nada de absolutamente único ou estranho com o fato de haver um código legal religioso no Islã – com base no qual decisões são tomadas sobre a vida em comunidade, a aceitação ou exclusão de “(in)fiéis”, o status de certas pessoas, a aceitação ou não de certas crenças ou comportamentos etc. Isso pode não condizer muito com a mentalidade moderna ocidental, mas está presente em todas as comunidades de fé, em maior ou menor grau. Se você é parte de alguma comunidade de fé (igreja, centro, templo etc) que não possui um código legal explícito, se ela possui o status de Pessoa Jurídica, terá pelo menos um Estatuto Social (que mesmo sendo um documento civil, expõe expectativas que se baseiam nas perspectivas teológicas/religiosas daquela comunidade)!

Uma diferença que influencia na percepção que muitos cristãos ocidentais, especialmente não-católicos, têm da shari’a é o simples fato de o Cristianismo ocidental, de forma geral, enfatizar a “crença correta”, enquanto o Islã – assim como o Judaísmo –, de forma geral, enfatiza as “ações corretas”, o “comportamento correto” do fiel!

É importante tentar entender o próprio sentido do termo. “Shari’a”, em seu sentido não religioso, refere-se a um caminho que leva a um poço de água. Para as populações do deserto, um poço de água era/é a diferença entre a vida e a morte. Assim, aplicada à religião muçulmana, a “shari’a” seria um caminho que leva à vida – caminho esse divinamente revelado no texto sagrado (o Corão/Alcorão) e nas tradições orais atribuídas à Muhammad (que os muçulmanos acreditam ter sido Profeta). É nesse contexto que ela é a “Lei de Deus” – não muito diferente das ideias de “Lei de Deus” no Judaísmo ou no Cristianismo.

O Direito Islâmico não se baseia exclusivamente no Corão – como também ocorre com o Judaísmo/Cristianismo em relação à Bíblia. Isto é, em sentido amplo (no que concerne à teoria e à prática), há uma distinção entre a Lei de Deus (shari’a) – baseada naquilo que os muçulmanos creem ser revelações divinas – e a atividade humana de interpretar essa lei – chamada de “fiqh”. O Direito Islâmico é a combinação desses. De acordo com o fundador do Direito Islâmico, Muhammad ibn Idris al-Shafi’i (séc. VIII-IX d.C.), haveria quatro bases fundamentais para o Direito Islâmico: o Corão; a sunna de Muhammad; o consenso; e a analogia. Além dessas bases, sobre as quais concordam todas as escolas jurídicas islâmicas (madh’habs), há outras a depender da escola (madh’hab) em questão.

O termo “madh’hab” que citei acima, refere-se à cada uma das escolas jurídicas do Direito Islâmico. Essas escolas são tradições jurídicas que guiam a interpretação que um indivíduo ou grupo aceita em questões legais no Islã. Todo muçulmano adere a uma madhhab específica, independentemente do ramo islâmico do qual seja adepto.

No Islã sunita há, hoje, quatro madh’habs principais: a Hanafi; a Maliki; a Shafi’i (cujo nome vem de Muhammad ibn Idris al-Shafi’i, que citei acima); e a Hanbali (a escola que originou o ramo Salafi, que, por sua vez, influenciou a maioria dos movimentos jihadistas conhecidos – como a Irmandade Muçulmana, o Taliban, a al-Qa’ida, e o chamado Estado Islâmico). Todas elas possuem algumas subdivisões. Ademais, historicamente, possuem adeptos em regiões específicas do mundo – a depender de como o Islã se propagou por aquela região. Há muitas outras madh’habs, mas essas são seguidas por um número muito pequeno de adeptos que se encontram em regiões geográficas muito limitadas.

No Islã xiita, por sua vez, há um número ainda maior de madh’habs, mas as duas principais delas – ou seja, aquelas seguidas por um maior número de adeptos – são a Jaf’ari e a Batiniyyah, ambas com suas subdivisões.

Ou seja, se formos intelectualmente íntegros, nos recusaremos a comprar a retórica ignorante, islamofóbica, e nem um pouco inocente dos que atrelam a noção de “shari’a” ou “lei islâmica” ao terrorismo ou assassínio de “jihadistas radicais” – o próprio termo “jihadista” deve ser utilizado com cuidado, já que “jihad” não significa necessariamente “guerra física”; e ser um “jihadi” nem sempre se refere a fazer guerra física (o termo pode ser usado como uma metáfora duma “batalha espiritual” – noção muito comum a alguns cristãos hoje em dia, especialmente nas tradições pentecostais ou carismáticas). É bom lembrar, ademais, que no Islã não existe a expressão “guerra santa” – essa expressão é uma invenção “cristã”!

+Gibson

Uma breve nota sobre a questão da posse e porte de armas


Gibson Da Costa

Nunca tive muita paciência para com os “mentecaptos voluntários” – isto é, aqueles indivíduos que, mesmo podendo se informar, escolhem não o fazer, sejam quais forem suas razões. Quando se trata da discussão de temas “políticos” – como também de temas religiosos –, não faltarão “mentecaptos voluntários” advogando anátemas contra aqueles de quem discordam. Isso se evidencia ainda mais hoje, especialmente no pseudo-”conservadorismo” da moda que tomou as redes sociais digitais. [Os mentecaptos voluntários que se autoidentificam como “conservadores” parecem se ver como sinônimo da sofisticação intelectual – semelhantemente aos “esquerdistas” que tanto criticam, e que descrevem quase que como uma entidade única e abstrata… mas prefiro deixar meus comentários sarcásticos sobre isso para outra hora!]

Um desses “mentecaptos voluntários” brasileiros publicou comentários infelizes sobre o recente assassinato de dois profissionais da imprensa por seu antigo colega, e os tiroteios desta semana, ambos nos E.U.A., fazendo uma ligação entre a cobertura do caso e a discussão sobre o controle de armas para uso civil naquele país, e sinonimizando aquele contexto ao do Brasil. Seus leitores que também sejam voluntariamente mentecaptos devem ter concordado com sua teoria conspiratória… É uma pena! A retórica antidesarmamentista desses incoerentes pseudolibertários é uma piada de mau gosto, e um verdadeiro espetáculo de ignorância histórica! [Mas, calma! Ainda não estou advogando anátemas contra eles, só um pouco de sarcasmo!]

Filosófica, teológica e politicamente, sou contrário à ideia de qualquer poder externo ditar regras para minha vida pessoal. Não concordo com leis que controlem ou punam alguém por simplesmente externar um pensamento – por mais ofensivo que seja. Não concordo com leis que ditem regras para o comportamento privado dos cidadãos civilmente capazes, incluindo aquelas que ditam como pais devam criar ou educar seus filhos. Sou contrário ao uso e comércio de certos narcóticos e ao aborto, mas, ao menos parcialmente, penso que o que as pessoas fazem com seus corpos é problema seu – desde que eu, enquanto cidadão e pagador de impostos, não seja forçado a cobrir os custos por suas escolhas (na verdade, a discussão desses temas é muito mais complexa e não envolve apenas a questão do que as pessoas fazem a si mesmas, mas também deixarei esse tema para depois!). Apesar disso, acredito que a segurança do cidadão deva ser uma prerrogativa do Estado. Em meu ideário político, a propósito, a função básica do Estado – e “básica”, aqui, implica que ele pode ter mais funções – é justamente proteger e garantir a vida, a liberdade e o patrimônio do cidadão. [Esses três elementos são o que John Locke chamou de “propriedade”, que constituía um conceito muito mais amplo do que a “propriedade privada” proclamada por esses pseudolibertários brasileiros!]

Em se tratando do porte de armas no Brasil, o Estatuto do Desarmamento não “retirou um direito básico do cidadão” brasileiro. Portar armas nunca foi um direito básico do cidadão brasileiro. Desde 1603, pelo menos, havia leis que controlavam o porte de armas por “civis” aplicáveis à América portuguesa (as terras hoje integrantes da República Federativa do Brasil). As ordenações filipinas – conjunto onde se encontravam aquelas leis – estipulavam os detalhes sobre que tipos de armas podiam ser utilizadas por quem, quando, como, e onde. A legislação, obviamente, foi sendo alterada à medida da mudança de contextos.

Aqueles mentecaptos mais informados sobre a história do Direito nacional fazem, por sua vez, um tremendo esforço para justificar sua apologia ao porte de armas por civis através do apelo, na melhor das hipóteses equivocado, a tradições filosóficas e jurídicas estranhas ao contexto brasileiro. Sua base sempre será a tradição libertária americana, que defende uma noção de defesa congelada no contexto da América do Norte Britânica do século XVIII. Talvez eles devessem estudar mais as histórias da Inglaterra e dos Estados Unidos da América antes de publicarem e falarem as besteiras que espalham por aí!

Mas acho que, como um professor de História dos E.U.A. posso ajudá-los, um pouco, a se situarem. Vejamos…

A segunda Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América – que os “filósofos políticos” “pró-armas” brasileiros, consciente ou inconscientemente, tomam como base para sua argumentação (já que seus argumentos são apenas uma caricatura daqueles dos “conservadores” americanos) –, de 1789, assevera o seguinte, num texto hoje estilisticamente confuso:

Uma milícia bem regulada, sendo necessária à segurança dum Estado livre, o direito do povo de manter e portar armas, não será infringido.

Desde o próprio século XVIII, essa Emenda tem sido interpretada de duas formas pelos tribunais, cidadãos e políticos americanos: alguns defendem que ela garanta ao cidadão comum o direito inalienável de portar armas (a interpretação que os “pró-armas” brasileiros abraçam); outros defendem que ela apenas garante a cada Estado o direito de manter sua própria “milícia”.

Obviamente, não vale a pena focar as nuanças políticas da discussão nos E.U.A., já que os “pró-armas” do Brasil não a compreenderiam de qualquer forma – não porque não tenham a capacidade intelectual para tal, mas porque sua disposição não é de construir uma compreensão da questão, mas sim a de opor-se ao que pensam ser uma “bandeira esquerdista” (o controle da posse e porte de armas).

Eles não compreendem que, historicamente, aquela minúscula Emenda carrega uma tradição milenar britânica – testificada já pelas coleções jurídicas de William Blackstone – de os cidadãos (homens) terem a obrigação de ser parte de “milícias” para a defesa do “Direito”. Sua obrigação incluía o dever de fornecerem armas. Isso, obviamente, numa época na qual não existiam forças de segurança (polícia, forças armadas etc) profissionais.

No caso específico dos Estados Unidos, após a Revolução, havia a necessidade de todos os homens participarem duma “milícia bem regulada”, e como essas milícias ainda não eram forças profissionais, e como os Estados membros da União não tinham os recursos necessários para a manutenção de tais forças, o direito de manter e portar armas foi garantido. Mas esse era um direito atrelado a uma obrigação: “a segurança dum Estado livre”.

Percebeu?!

Se analisássemos as razões apontadas pelos autores liberais clássicos ingleses e americanos para a existência do Estado – o que não farei aqui –, veríamos que sua existência é justificada pela necessidade da proteção daqueles três elementos da “propriedade” do cidadão apontados por John Locke (a vida, a liberdade e o patrimônio). [Lembre-se que quando Locke escrevia sobre “propriedade” não era exclusivamente a bens (patrimônio) que ele se referia, era a esses três elementos.] Pare eles, a proteção desses era uma prerrogativa do Estado. É dessa perspectiva que emerge o direito de manter e portar armas na Constituição dos Estados Unidos.

Por que esse direito não é abolido na Constituição americana? Por inúmeras razões. Uma delas sendo porque a tradição constitucional americana geralmente não abole direitos – e como o direito à manutenção e porte de armas é parte integrante da Carta de Direitos, sua abolição é mais complexa e complicada.

No caso do Brasil atual, entretanto, há instituições de Direito que têm a função de proteger a “propriedade” (no sentido lockeano) do cidadão. O fato de haver corrupção e ilegalidades nessas instituições não pode ser justificativa aceitável para que retiremos delas a função de proteção e a passemos a cidadãos miliciados. Ademais, a posse e porte de armas nunca foi um direito constitucional básico dos cidadãos brasileiros!

Então, caros brasileiros “pró-armas”, mudem seus argumentos!

+Gibson