Perguntas problematizantes e o seminário socrático na pedagogia inquisitiva

Gibson da Costa

Enquanto professores, podemos nos engajar tanto com a tarefa de fazer perguntas que não investimos muito tempo em analisar por quê e como o fazemos. Mas, se analisássemos as perguntas que fazemos durante uma aula, poderíamos nos surpreender com os resultados encontrados. Provavelmente, descobriríamos que a maioria de nossas perguntas são feitas unicamente para sabermos se um aluno sabe ou não um certo item daquilo que lhe foi “ensinado”. Descobriríamos, assim, que elas carregam uma expectativa de apenas testar a memória de nossos alunos. E esse tipo de perguntas, infelizmente, não se restringe apenas àquelas que lhes são feitas oralmente em aulas, mas incluem, principalmente, aquelas presentes nos tradicionais modelos de provas escritas que muitas vezes aplicamos nas escolas. A boa notícia é que nossas perguntas podem e devem fazer muito mais do que apenas testar a memória dos alunos.

Fazer perguntas é um instrumento essencial tanto para a construção do pensamento quanto das relações humanas. E, na educação, perguntas são indispensáveis. Dentre tantas outras razões, enquanto professores, perguntamos para testar a memória dos alunos, para obter informações, para expressar e estimular interesse e curiosidade, para incentivar a participação, para detectar dificuldades, para encorajar comentários, para desafiar certezas, para questionar asserções, para desempenhar o papel do “advogado do diabo” etc. Fazer perguntas, ao menos no que tange ao professor na pedagogia inquisitiva, é uma habilidade que se baseia em saber decidir sobre o quê e quando perguntar.

Neste texto – uma continuação do tema abordado anteriormente sobre o ensino-aprendizagem inquisitivo –, abordarei o papel desempenhado por um tipo específico de perguntas na pedagogia inquisitiva. O mesmo destina-se àqueles professores da Educação Básica que queiram adotar uma prática de articulação aberta de diferentes pontos de vista por parte dos alunos, especialmente através da utilização de seminários socráticos, especificamente na área das Ciências Humanas e Suas Tecnologias (Filosofia, Geografia, História e Sociologia).

Tipos de perguntas

Na pedagogia inquisitiva, perguntar exige mais do que construir perguntas que possam ser respondidas com uma única palavra, ou simplesmente com “sim” ou “não”. Assim, a ação de perguntar torna-se um processo de questionar, de problematizar. Há diferentes sistemas para a classificação de perguntas, com muitos deles baseando-se nas tradicionais categorias listadas na Taxonomia de Objetivos Educacionais (1956), de Benjamin S. Bloom. Nas ciências humanas, por exemplo, um desses sistemas as categoriza em perguntas que apelam à memória, compreensão, aplicação, análise, síntese e avaliação (classificação de Clegg, Farley, e Curran); outra, as categoriza como sendo de apelo à memória, tradução – i.e., transformação da informação em diferentes formas ou linguagens simbólicas –, interpretação, aplicação, análise, síntese e avaliação (classificação de Norris Sanders).

Aqui, não intenciono lidar com tamanha complexidade tipológica; assim, utilizarei uma classificação didática exageradamente simplificada que categoriza as perguntas em problematizantes e não-problematizantes. Desde já, reconheço a limitação desta tipologia. Utilizo essa classificação simples com meus alunos da educação básica e superior, para ajudar-lhes a avaliar os tipos de perguntas que utilizamos em nossas discussões em sala, e acredito que a mesma possa ajudar-nos, enquanto professores, a começar a refletir sobre o tipo de perguntas que fazemos a nossos alunos em sala. Se, posteriormente, você quiser aprofundar-se no tema, descobrirá que há excelentes pesquisas acadêmicas sobre o papel desempenhado pelas perguntas na educação escolar.

Na tipologia que utilizo especificamente neste texto, os seguintes são os sentidos que atribuo aos termos perguntas problematizantes e perguntas não-problematizantes:

Perguntas problematizantes são aquelas que ajudam a identificar, interpretar e avaliar perspectivas e relações; analisam eventos, tendências e problemas significativos; e reconhecem, interpretam e julgam forças que causam mudanças e contribuem com a continuidade. Com elas, não esperamos respostas específicas, já que as mesmas servem como convite à discussão e ao compartilhamento de múltiplas ideias. Esse tipo de questionamento, ou melhor, de problematização, é possível e necessário em todos os níveis da educação escolar (seja na educação básica ou na superior), e em todos os componentes curriculares. No caso específico das chamadas ciências humanas (Filosofia, Geografia, História e Sociologia – e também Religião), assim como das linguagens e códigos (Língua Portuguesa, Literatura, Arte, e níveis mais avançados de Línguas Estrangeiras), esse tipo de questionamento é indispensável.

Perguntas não-problematizantes são aquelas que buscam dados e informações específicas sobre um determinado tema, podendo ou devendo ser respondidas com “sim/não” ou com detalhes apropriados à expectativa da pessoa que a elaborou. Com este tipo de perguntas, geralmente não abrimos espaço à discussão de ideias ou argumentações discordantes. Apesar de elas não serem úteis a atividades que envolvam discussão de argumentos e ideias, são úteis se o que quisermos for testar se os alunos lembram-se de informações ou dados específicos.

A razão primordial para a ênfase em perguntas problematizantes na pedagogia inquisitiva é porque fazer e responder esse tipo de perguntas oferece um foco para a pesquisa e a investigação, e ajuda a pensar criticamente. Esse tipo de questionamento promove a curiosidade, encoraja a criatividade e leva a mais perguntas. Por serem respondidas de forma “aberta”, isto é, por não possuírem respostas “certas”, encorajam compreensões mais profundas e exigem decisões e julgamentos que possam se apoiar em evidências ou critérios específicos.

Como criar perguntas problematizantes?

Mas, reconhecendo seu valor e importância para a pedagogia inquisitiva, como podemos criar tais perguntas? Há modelos que podem ser seguidos, por aqueles que não estão acostumados a utilizar tais tipos de perguntas em sala, para iniciar a utilização de perguntas problematizantes com seus alunos?

Para refletirmos sobre a tipologia proposta aqui das perguntas em problematizantes e não-problematizantes, permita-me exemplificar com uma experiência real. Numa unidade sobre imigração e identidade nacional, em História dos Estados Unidos, numa de nossas aulas, meus alunos se engajaram num seminário socrático no qual discutiram alguns textos extraídos da imprensa, das leis e de pronunciamentos políticos acerca do papel desempenhado pelo inglês e pelo espanhol naquele país – na verdade, haviam levado seleções de textos escritos selecionados por mim para ler em casa, pesquisaram sozinhos outros textos e, em sala, vimos alguns trechos em vídeo de pronunciamentos políticos. Como costumeiro, nos focamos em debater alguns dos aspectos que eles consideravam importantes nos argumentos utilizados por grupos políticos e movimentos sociais que buscam a oficialização da língua inglesa no âmbito federal.

Aqui, não poderia incluir aqueles textos utilizados como base para nossas discussões, já que esse não é o objetivo deste texto. Mas, importa informar que, por exemplo, a Constituição dos Estados Unidos, diferentemente da brasileira, não estabelece uma língua oficial para o país. Assim, ao menos constitucionalmente, o governo federal dos EUA não pode se negar a oferecer seus serviços em outras línguas aos seus cidadãos que não falem inglês. Lembre-se que há muitas regiões nos EUA onde um grande número de cidadãos não falam inglês – por exemplo, o sul da Flórida, regiões metropolitanas como as de Nova York, Boston, Chicago, Los Angeles; áreas do Novo México, Arizona, Texas, etc. Assim, em diferentes momentos da história do país, tem havido um grande investimento no oferecimento de serviços federais em outras línguas (especialmente espanhol). Entretanto, inúmeros estados têm tornado o inglês sua língua oficial em suas constituições, em resposta ao fluxo migratório especialmente de hispanofalantes; e, especialmente nos últimos anos, muitos grupos têm defendido o mesmo para o governo federal. Todo o conflito em torno do papel do inglês e de outras línguas minoritárias no país tem existido desde a independência das colônias britânicas que formariam os Estados Unidos, ou seja, trata-se dum problema de longa data. Foi sobre isso que tratamos em nossas discussões em sala.

Agora, como exercício, imagine-se naquela turma. Imagine haver levado os textos para casa, lido-os, selecionado algumas reportagens da imprensa e ter assistido aos breves vídeos em sala, preparando-se para a discussão que seguiria. Imagine que tivesse de propor uma pergunta para o início de nosso seminário socrático em sala. Agora, das perguntas que sugiro abaixo, quais, em sua opinião, poderiam ser classificadas como problematizantes (i.e., facilitadoras duma discussão à qual a multiplicidade de ideias fossem bem-vindas) e por quê?

  1. Qual é a língua oficial dos Estados Unidos?

  2. Por que, em sua opinião, não há menção a uma língua oficial na Constituição dos EUA?

  3. O inglês é definido em alguma outra lei como língua oficial dos Estados Unidos?

  4. A Constituição dos EUA deveria declarar o inglês como língua oficial? Por que sim, ou por que não?

  5. Em sua opinião, qual a maior vantagem e/ou desvantagem em a língua inglesa não ser declarada como oficial na Constituição dos EUA?

  6. Quantos cidadãos dos Estados Unidos não falam inglês? Que evidências você pode apresentar para confirmar os números que apresenta?

  7. Até que ponto não declarar uma língua como oficial põe em risco as tradições nacionais de um Estado? Você pode apresentar alguma evidência para sua posição?

  8. Todos os cidadãos norte-americanos falam inglês como língua materna?

Você consegue imaginar a pergunta nº 1 servindo como base para o início bem-sucedido duma discussão crítica numa aula de História ou Sociologia, por exemplo? E o que dizer sobre a questão proposta antes da enumeração das perguntas (…das perguntas que sugiro abaixo, quais, em sua opinião, poderiam ser classificadas como problematizantes […] e por quê?)?

Perceba que o tamanho do enunciado não necessariamente indica que a pergunta levará o aluno a uma reflexão sobre o tema proposto, muito menos a uma discussão de ideias. A pergunta de nº 3, e a dupla pergunta de nº 6, por exemplo, são comparativamente extensas, mas apelam apenas à memória do aluno, exigindo como resposta um dado ou informação presente em algum texto ao qual supostamente tenha tido acesso (texto que poderia ser escrito ou audiovisual, no caso do material que utilizamos de base para aquela discussão).

Note, também, a incidência de por que associado a outras expressões, como em “por que sim ou não?”, e de em sua opinião, ou de expressões semelhantes (como em “até que ponto…?”), nas perguntas que levam o aluno a formular uma opinião própria. Nem sempre, contudo, um “por que?” indica uma pergunta problematizante, já que o mesmo poderia apenas estar fazendo referência a uma resposta que não exija a formulação de opiniões e argumentos próprios. Por exemplo, poderíamos perguntar “Por que nem todos os cidadãos americanos falam inglês?”, e, quase certamente, poderíamos esperar respostas como “porque nem todos nasceram nos Estados Unidos”, ou “porque há muitos imigrantes e filhos de imigrantes no país”, ou ainda, “porque muitas pessoas têm deficiência auditiva e, por isso, não falam inglês”. Nenhuma dessas respostas, contudo, evidencia um esforço crítico por parte do aluno, nem facilita o início duma discussão de ideias.

Lembre-se que, na tipologia simplificada que utilizei aqui, perguntas problematizantes são aquelas que, necessariamente, levam a discussões e ao compartilhamento de múltiplas perspectivas. Assim, os enunciados das perguntas levantadas devem deixar claro que o que se espera dos alunos é que expressem suas ideias, suas perspectivas, com base, por exemplo, nos textos (escritos, pictóricos, audiovisuais etc) que serviram de base para a discussão.

Outras considerações

Algo que devemos sempre ter em mente quando nos engajamos com a pedagogia inquisitiva – especialmente se fazemos uso, por exemplo, de seminários socráticos – é o fato de que o que importa não é o número de perguntas feitas, mas sua qualidade para os objetivos que estabelecemos. Quando fazemos perguntas problematizantes – perguntas que estimulam o pensamento e, consequentemente, levam os alunos a produzir respostas mais longas –, a velocidade das aulas diminui. Isso significa que menos “matéria” é coberta em aulas como essas, apesar de, provavelmente, o que for tratado o ser de forma mais ampla. Ademais, os alunos possivelmente discutirão ideias não previstas pelo professor, o que exige não apenas uma preparação cuidadosa, como também um senso de humildade para reconhecer que não sabemos tudo.

Num seminário socrático com turmas da Educação Básica, por exemplo, alguns cuidados devem ser tomados. Se por um lado, o planejamento é indispensável, por outro não pode servir de “camisa de força” para as discussões em sala. Ao mesmo tempo em que devemos ter questões formuladas previamente para guiar a discussão, também não devemos servir de empecilho aos questionamentos levantados pelos alunos – desde que pertinentes ao tema tratado –, já que é justamente para que desenvolvam essa habilidade questionadora que utilizamos seminários socráticos.

Outro ponto importante a considerar é o da compreensão que o próprio professor tem de sua identidade profissional e do componente curricular que ensina. Se o professor se vê como uma autoridade inquestionável em sala, que exerce a função de “transmissor” de conhecimentos e descreve seu trabalho como sendo “dar aulas”, então, provavelmente, nada do que escrevi até agora fará sentido ou funcionará. Ademais, especialmente no caso das ciências humanas, se também enxerga o componente curricular que ensina de forma dogmática, compreendendo suas próprias perspectivas (digamos, uma escola filosófica, uma perspectiva política, uma tradição sociológica específica etc) como sendo inquestionáveis, facilitar a discussão livre de ideias contradirá sua visão de mundo e, possivelmente, será uma experiência não muito fácil.

O tema do papel desempenhado pelas perguntas no ensino-aprendizagem em geral e, especialmente na pedagogia inquisitiva, tem sido muito pesquisado no campo da Educação nos últimos cinquenta anos. Aqui, quis apenas ajudar meus leitores e leitoras a refletirem um pouco sobre o tema de forma simplificada. Ainda voltarei a este tema no futuro.

Perguntas problematizantes e o ensino-aprendizagem inquisitivo

Gibson da Costa

Conte-me, e esquecerei; mostre-me, e lembrar-me-ei; envolva-me, e entenderei.

(Antigo ditado anglófono)

Lembro-me duma conversa que tive com uma jovem professora de literatura há alguns meses. Eu facilitara um minicurso sobre ensino como facilitação e, ao fim de nosso primeiro encontro (o minicurso durou 5 dias), ela me disse que era muito fácil falar em trazer os alunos para o centro do processo de ensino-aprendizagem, mas que fazer isso era mais difícil do que eu imaginava! Como resposta, disse-lhe que ela se esquecera de considerar três fatos: 1) como ela, eu também ensinava a adolescentes e jovens, então partilhávamos de desafios comuns, e eu já testara os princípios que discutíramos; 2) aquele era o primeiro encontro, e ainda não havíamos discutido as práticas listadas em nosso programa; e, 3) ela talvez não percebera o tipo de atividades que realizáramos naquele primeiro encontro, já que algumas daquelas práticas listadas em nosso programa estavam sendo utilizadas, apesar de ainda não as havermos discutido. Posteriormente, fiquei extremamente feliz quando ela me escreveu, descrevendo sua experiência com algumas daquelas práticas em sala e a transformação que trouxera ao seu trabalho!

Aqui, gostaria de começar a tratar, brevemente, daqueles métodos, estratégias, abordagens etc que, em minha experiência, ajudam-me a tornar os estudantes o eixo central no processo de ensino-aprendizagem, e ajudam-me a transformar-me em facilitador nesse processo. Incluirei alguns dos temas abordados naquele minicurso ao qual fiz referência e que, de acordo com aquela jovem professora, ajudaram-na a transformar positivamente sua atuação e a de seus alunos em sala.

Antes de tudo, um aviso: Por mais que isso implique numa aparente contradição ante o fato de eu sugerir esta ou aquela abordagem didático-pedagógica, não tenho nenhum receio em afirmar que bons e experientes professores conhecem mais suas turmas e suas circunstâncias do que qualquer autor, pesquisador ou observador externo. Eles sabem como suas turmas respondem às suas abordagens pedagógicas, conhecem os contextos nos quais exercem suas atividades profissionais e, por isso mesmo, podem planejar, adaptar e utilizar estratégias que melhor funcionem para suas circunstâncias particulares. Assim, quaisquer sugestões ou interpretações que eu faça dizem respeito às minhas próprias experiências em sala de aula. Elas têm funcionado para mim, sendo adaptadas quando necessário, em meus contextos até hoje. Mas exigem preparação, objetivos claros, planejamento, atenção, paciência, visão de longo prazo etc.

Discutirei, hoje, sobre um conjunto de abordagens ao processo de ensino-aprendizagem que traduzo, em português, como ensino-aprendizagem inquisitivo. O mesmo tem sido, há muito, objeto de discussão e uso na Educação Básica nos países anglófonos, especialmente nos Estados Unidos, e é parte integrante de minha herança escolar – tanto como estudante quanto como professor. E, provavelmente, não será completamente estranho à grande parte daqueles que estudaram em universidades brasileiras. Mas, do que se trata?

O ensino-aprendizagem inquisitivo é um conjunto de abordagens didático-pedagógicas que se focam em torno de questões geradas ou propostas coletivamente. Ao longo do processo, são dadas oportunidades para que os alunos ofereçam respostas a essas questões por meio da busca e organização de evidências, dados e informações advindas de diferentes fontes. Eles analisam essas evidências, dados e informações, levando em consideração as diferentes interpretações e perspectivas às quais foram expostos – apresentadas por outros alunos, por outro texto etc. A partir disso, formam opiniões, fazem julgamentos e chegam às suas próprias conclusões com base naquelas evidências, dados e informações. E, ao final, comunicam aos seus colegas suas conclusões etc.

Parece extremamente simples, mas não se engane. Esse tipo de ensino-aprendizagem exige um real deslocamento do foco em sala: do professor para os alunos. Aqui, não é o professor que domina as aulas, com alunos ouvindo suas explicações passivamente. Não! O professor fala menos e ouve mais; e, quando fala, explica menos e questiona/provoca mais. Sua voz não domina os ares da sala. A dos alunos, sim. Isso exige uma mudança tanto por parte do professor, quanto da dos alunos. O professor atua como um facilitador. Os alunos falam mais, mas sua fala deve ser informada e articulada – isto é, suas questões ou afirmações são baseadas nas evidências, dados e informações aos quais tiveram acesso. Trata-se duma verdadeira mudança da cultura escolar. Mas é possível – especialmente nos componentes curriculares da área de Ciências Humanas e Suas Tecnologias (nas quais é possível haver um nível maior de subjetividade nas discussões), mas não apenas nela.

Não há, entretanto, um único molde desse tipo de ensino-aprendizagem. Como escrevi um pouco acima, trata-se de “um conjunto de abordagens”, ou seja, uma variedade de formas para se levar a cabo um molde inquisitivo de ensino-aprendizagem. Spronken-Smith, Walker, Batchelor, O’Steen e Angelo (2012), pesquisadores da área, apresentam diferentes formas para categorizar esse tipo de ensino-aprendizagem. Em uma delas, por exemplo, categorizam-na com base na distinção entre três modos de inquisição (o sentido do termo “inquisição” aqui é averiguação metódica e rigorosa; inquirição; investigação; pesquisa – não o confunda com o termo como usado em “a Santa Inquisição”; há uma razão estética para eu escolher o termo como tradução do inglês “inquiry”):

  • inquisição estruturada → na qual o professor oferece a questão, além de instruções sobre como se deve explorá-la;

  • inquisição guiada → na qual o professor estimula a investigação com questões, mas são os estudantes que decidem como explorá-las;

  • inquisição aberta → na qual os alunos formulam as questões, identificam o que precisa ser conhecido, coletam e analisam as evidências, dados e informações, comunicam suas conclusões e avaliam a pesquisa.

Nesse tipo de classificação, fica claro que poderíamos utilizar atividades apropriadas ao tipo de turma e à experiência do professor. Pessoalmente, tenho utilizado a aqui chamada inquisição aberta com mais frequência, em grande parte porque meus alunos já conhecem a abordagem e estão familiarizados com ela, e a mesma já ser parte de meu imaginário didático-pedagógico e de meu repertório profissional (fazendo com que me sinta mais confortável com a autonomia dos alunos e o desafio que isso pode representar). Para quem tentará pela primeira vez, ou aqueles que não estão tão familiarizados com uma grande autonomia por parte dos alunos, talvez não devessem começar com uma abordagem de inquisição aberta, optando por dar mais experiência a seus alunos (e a si mesmos) antes de dar-lhes tamanha responsabilidade – alunos acostumados ao ensino expositivo tradicional tendem a sentir-se desconfortáveis com o ensino-aprendizagem inquisitivo por algum tempo, até que se acostumem.

Uma preocupação comum que tenho ouvido de vários professores é sobre o que fazer se alguns alunos não participam dos debates, estando sempre calados. É importante ter consciência de que nem todos os alunos participam oralmente. Eles não precisam falar para estarem participando. Muitas vezes, a audição atenta é sua forma de participação. Alguns anotam o que ouvem. Logo, nunca me preocupo simplesmente pelo fato de alguns alunos não se engajarem em discussões orais. Esforço-me para conversar com eles fora da sala de aula, para ouvir suas opiniões (o silêncio de alguns em sala pode indicar que não se sentem confortáveis com a discussão em grupo, mas, se abordados da forma certa, partilham suas opiniões conosco fora de sala). Já tive turmas nas quais alguns alunos nunca disseram nada em sala, mas em seus trabalhos escritos – ou em seu vídeo, por exemplo –, demonstravam que haviam compreendido as discussões e aprendido com as ideias de seus colegas. Da mesma forma, há sempre aqueles dois ou três alunos que dominam todas as discussões – quando esses parecem estar tomando o espaço de outros, intervenho de forma elegante, aproveitando-me de algum comentário para fazer uma pergunta a alguém específico. Respeitar diferenças inclui reconhecer as diferenças de personalidade de nossos alunos – uma preocupação exacerbada com disciplina pode nos fazer esquecer que os adolescentes não são todos iguais.

Apesar de a carga de preparação exigida de professores (e dos alunos) ser grande para este tipo de ensino-aprendizagem, há inúmeras vantagens, especialmente no que concerne às Ciências Humanas e Suas Tecnologia (Filosofia, Geografia, História e Sociologia) na Educação Básica. O processo inquisitivo promove uma diversidade de vozes na sala de aula, criando oportunidades para que os alunos expressem e compartilhem suas opiniões. Ademais, o engajamento neste processo ensina-os a encontrar, reconhecer, avaliar e utilizar evidências; além de ajudá-los na construção ou fortalecimento de sua autoconfiança.

Abaixo, listo, brevemente, algumas sugestões para a utilização da inquisição em sala de aula, resumindo aquilo que discuti com os cursistas que participaram no minicurso que facilitei e ao qual me referi no início deste texto.

Questionando:

  • faça perguntas abertas (sem “certo”/”errado”);

  • convide e seja receptivo a diferentes interpretações;

  • faça uso do questionamento para focar o debate;

  • pergunte aos alunos o que um certo texto ou fonte significa “para eles” individualmente (Ex.: O que, na sua opinião, isso significa? / O que isso significa para você?).


Como encorajar a voz dos alunos:

  • permita que os alunos dirijam a discussão;

  • use seus comentários para formular questões;

  • encoraje respostas que sejam pessoais e analíticas.


Como encorajar múltiplas respostas:

  • esteja atento(a) às diferenças de opinião;

  • repita os pontos de vista para enfatizar as discordâncias;

  • aguce a análise por meio da reformulação do debate;

  • lembre-se que não há conclusões claras, apenas argumentos claros.

Como construir uma cultura de respeito:

  • não permita ataques pessoais;

  • evite respostas como “certo!” ou “errado!”;

  • arbitre as discussões de forma justa e equitativa.


Como apoiar alunos silenciosos/tímidos:

  • lembre-se que nem todos os alunos participam através da fala;

  • mantenha diálogo com os alunos fora da sala de aula;

  • organize discussões em grupos menores para construir sua confiança.

Posteriormente, relatarei uma aula específica para apontar como tudo isso pode ser utilizado numa aula real.

REFERÊNCIAS

SPRONKEN-SMITH, R.; WALKER, R.; BATCHELOR, J.; O’STEEN, B.; ANGELO, T. Evaluating student perceptions of learning processes and intended learning outcomes under inquiry approaches. In: Assessment & Evaluation in Higher Education, 37, vol. 1, 2012, p.57-72.

Autoridade hierarquizada versus autonomia na educação formal

Poucas instituições são tão hierarquizadoras quanto as instituições de ensino oficial – sejam elas da Educação Básica ou da Educação Superior. Independentemente das perspectivas agógicas (isto é, pedagógicas, hebegógicas, adagógicas, gerentogógicas etc) adotadas pela instituição ou pelo professor, a educação formal sempre se baseia na dependência dos estudantes para com um eixo hierárquico de autoridade – autoridade esta que pode se centrar na figura do próprio professor, dos textos escolares/acadêmicos, das tradições que modelam a sociedade, etc. O fato é que, por mais que neguemos isso, a educação institucionalizada, de modo geral, faz muito pouco para ajudar os estudantes a se tornarem realmente autônomos – e isso desde a mais tenra idade.

Lembro-me de quando comecei a ensinar numa determinada escola pública nova iorquina há cerca de duas décadas atrás. Discutíamos um de meus temas favoritos em História dos EUA – o chamado “Movimento pelos Direitos Civis” (o segundo, de meados do século XX) –, e três de meus alunos fizeram uma reclamação formal a meus superiores por eu os estar “forçando” a ler outras coisas e a ouvir testemunhos de visitas que trouxe à sala, enquanto deixava de lado o livro didático de História. Seu argumento era que eu estava tirando deles a oportunidade de estudarem o “currículo oficial” e se prepararem para as provas aplicadas pelo Departamento de Educação do Estado (felizmente, meus superiores discordaram da opinião daqueles alunos!).

Aquele incidente me deixou extremamente perturbado por algum tempo. Perturbei-me porque a reclamação, aparentemente, partira dos próprios alunos, e não de seus pais. Mesmo sendo apenas três deles – os considerados mais brilhantes da turma –, aquilo mostrava a compreensão que tinham do que deveríamos fazer em sala: eles seriam apenas receptores dum conhecimento acabado, e eu não passava dum transmissor. Ficava me perguntando o que tínhamos (a escola) feito com aqueles adolescentes para que rejeitassem a oportunidade de chegarem às suas próprias conclusões por meio do conhecimento de outras opiniões que podiam diferir do que o livro didático lhes oferecia. Aqueles estudantes, no final das contas, só estavam seguindo o que a escola os adestrara a fazer: sigam as regras, repitam o que “aprenderam”, e tudo estará bem!

Aquele incidente, para mim, retrata bem o efeito que a mentalidade autoritária pode ter na percepção que estudantes têm de seu valor e capacidades – e isso ocorre igualmente na Educação Superior. Frequentemente, a escola/universidade parece treinar pessoas para que sejam excelentes repetidores do que já foi dito e feito, mas incapazes de criar algo novo a partir daquilo que supostamente aprenderam. Nas humanidades, por exemplo, professores se esforçam para ensinar o que, para eles, é certo; mas não esperam de seus estudantes a capacidade de apresentarem um alto nível de discordância – isto é, uma discordância que apresente argumentos bem fundamentados, de acordo com a capacidade e experiência do estudante.

Esse problema da autoridade na educação me faz lembrar da questão do 2+2. Como gosto de dizer, 2 + 2 nem sempre é igual a 4. Esse resultado sempre dependerá da escala de medida que utilizamos (se nominal, ordinal, intervalar, ou de razão). E apenas nas escalas intervalar e de razão o resultado será 4. O motivo pelo qual pensamos que 2+2 é sempre igual a 4 é porque, na escola, a maioria de nós apenas utilizou a escala de razão.

Se nem com a matemática podemos atingir um produto que sempre será inquestionavelmente correto, o que dizer das humanidades?… É justamente por isso que prefiro que os estudantes sejam capazes de chegar a conclusões próprias (mesmo que pessoalmente não concorde com elas), construindo seus argumentos por meio da análise das evidências, comparando seus argumentos com aqueles que a instituição escolar lhes impõe, do que ensiná-los a aceitar a “tradição” sem questioná-la. Quem sabe um dia as escolas e as universidades não se tornarão templos da autonomia, espaços onde discordar construtivamente seja mais importante que marcar a opção “correta” em provas padronizadas… Sonho com esse dia!

Gibson

Identidades, Memória, e Tradição da Saudade no Estudo de Língua, Cultura e História Brasileiras em Nova York

Gibson da Costa

[Ensaio apresentado no FIE 2011.]

RESUMO: Considerando nossas experiências no ensino de Língua, Cultura e História Brasileiras a jovens brasileiros na cidade de Nova York, refletimos neste ensaio acerca do papel da memória, enquanto representação seletiva do passado, na construção duma identidade étnica e nacional de jovens brasileiros migrantes e transnacionais no ensino secundário. Para isso, optamos pelo exercício da própria memória na escrita deste texto, relatando as experiências que nos levaram a desenvolver nossa compreensão da construção identitária étnica e nacional, esclarecendo, ao mesmo tempo, noções de identificação étnica e (trans)nacional, além de esclarecer a noção que chamamos de “tradição da saudade”.

PALAVRAS-CHAVE: tradição da saudade; identidade; memória; ensino de História.

1. Introdução

Neste ensaio, refletiremos acerca de nossa experiência no ensino de jovens estudantes brasileiros transnacionais e/ou migrados no ensino secundário na cidade de Nova York. As reflexões aqui presentes baseiam-se em nossas próprias experiências como brasileiro transnacional e professor de alunos imigrantes e transnacionais. Nossa discussão centra-se no papel da memória enquanto uma representação seletiva do passado e enquanto eixo na (re)construção e (re)interpretação de identidades étnicas e nacionais.

Para nossa reflexão acerca desse papel desempenhado pela memória, fazemos uso do relato de nossas próprias experiências, emoldurado pelas perspectivas da antropóloga Loretta Baldassar acerca da construção da identidade transnacional, e das perspectivas das psicólogas Karmela Liebkind e Jean Phinney sobre a construção da identidade étnica e nacional de adolescentes. A linha condutora de nossa reflexão é a de que a construção de identidades transnacionais se dá por meio da experiência daquilo que aqui chamamos de tradição da saudade.

Por este texto ser uma reflexão acerca da memória enquanto meio de construção identitária, escolhemos fazer uso dela mesma para a elaboração de nossas ideias. Sendo assim, é através de uma narração de nossas próprias lembranças das experiências que tivemos com um grupo específico de alunos que esperamos refletir sobre o tema que aqui discutimos.

2. Definições iniciais

Muitas vezes, ao refletirmos acerca da relação entre o ensino de História e o processo de construção identitária no ambiente escolar, podemos não avançar além da noção já bem estabelecida deste processo como referindo-se apenas à identidade nacional. Essa perspectiva de “identidade” como uma referência à nacionalidade está frequentemente limitada pela concepção dominante na sociedade como um todo, e na escola em particular, da unicidade da identidade étnica brasileira.


O mito da unicidade étnica parece servir como pano de fundo para o que poderíamos chamar aqui de
tradição memorial da escola brasileira – a memória social como construída na escola. Assim, nossa tradição memorial escolar ensina que o “povo brasileiro” foi formado por apenas três grupos distintos (portugueses, índios, negros); fala uma única língua (a “língua portuguesa”); professa apenas uma religião (o cristianismo); e está unido por traços culturais comuns (aqueles característicos dos grandes centros urbanos de influência). Como eixo central dessa concepção identitária encontra-se, além das características citadas, a visão dos laços de territorialidade – ou seja, é brasileiro aquele que nasceu em território brasileiro.


Pensamos em
memória aqui como um termo detentor de dois sentidos básicos: [1] como uma capacidade peculiar à espécie humana de processar – biológica, social, cultural e historicamente – nossa percepção do mundo (BOCK et al., 2009, p. 157); e, [2] como uma representação seletiva do passado por parte dum indivíduo (ou comunidade) contextualizado num ambiente familiar, social, nacional (ROUSSO, 1992). O segundo sentido é o que mais interessa-nos em nossa presente reflexão.


A memória, enquanto representação seletiva do passado, é elemento constituinte do processo de formação da identidade (étnica ou nacional) dum indivíduo. Ela desempenha um papel (quiçá primordial) nos laços de sentido construídos entre um indivíduo e sua comunidade. Esses laços, cujas representações poderiam ser encontradas em experiências objetivas ou subjetivas, são o que chamamos aqui de
identidade.


Faz-se necessário, ainda, definirmos o sentido que queremos dar à ideia de etnicidade que nos acompanhará no decurso de nossa reflexão. Identidade étnica refere-se ao sentimento que tem um indivíduo de pertencer a um grupo étnico particular (LIEBKIND, 1992, 2001; PHINNEY, 1990). A identidade étnica é geralmente vista como aglutinadora de vários aspectos, como auto-identificação, sentimentos de pertencimento e comprometimento a um grupo, valores comuns, e atitudes para com o próprio grupo étnico. Aqui, usaremos os termos
etnia, etnicidade, grupo étnico, ou identidade étnica para nos referirmos a subgrupos dentro de um contexto maior (por exemplo, nação) que reclamam uma origem comum e partilham de um ou mais dos seguintes elementos: cultura, religião, língua, parentesco, e lugar de origem. É importante estabelecer que a diferença entre identidade étnica e identidade nacional, aqui, é que a segunda consiste numa construção muito mais complexa, envolvendo sentimentos de pertencimento e atitudes para com a sociedade como um todo, extrapolando o círculo étnico com o qual se identifica mais estreitamente o indivíduo (PHINNEY, DEVICH-NAVARRO, 1997).

 

Considerando a noção que adotamos para a ideia de etnicidade, podemos afirmar que há uma multiplicidade étnica na sociedade brasileira que, de forma geral, não é prevista pela tradição memorial da escola, especialmente no ensino de História. Ou seja, os brasileiros sobre os quais fala a História ensinada na escola não são aqueles de outras origens que não aquelas do tradicional racialismo tripartite; não são os brasileiros que falam outras línguas maternas que não a que se chama de língua portuguesa (populações indígenas, populações de fronteiras, comunidades de imigrantes no Brasil, e os brasileiros emigrados e transnacionais); não são os adeptos de outras religiões minoritárias (especialmente o judaísmo, o islã, e as tradições orientais trazidas por imigrantes asiáticos) praticadas no Brasil do passado ou de hoje; não são os brasileiros cujo contexto cultural não se encaixa nos moldes estereotipados duma suposta “brasilidade”; e muito menos, são os brasileiros emigrados e transnacionais, cuja participação na identidade nacional é ignorada pela citada tradição memorial escolar, apesar de ser reconhecida pela tradição jurídica brasileira1. Esse esquecimento duma parcela dos brasileiros na tradição memorial escolar torna-se visível mais claramente nos livros didáticos usados para o ensino histórico; livros esses, cuja narrativa exclui aqueles brasileiros supracitados.


O adjetivo
transnacional refere-se, aqui, especificamente aos brasileiros nascidos no exterior, ou detentores de cidadania do país receptor (se brasileiros emigrados), e que ainda mantêm laços identitários com sua cultura de origem, ao mesmo tempo em que também se identificam como nacionais do país onde nasceram ou onde se naturalizaram.

3. A tradição da saudade na construção identitária transnacional

Aqui, refletiremos acerca das relações possíveis entre a memória (como representação seletiva do passado), a experiência transnacional e o ensino escolar de História como instrumento na construção de uma identidade transnacional de jovens brasileiros emigrados ou filhos de brasileiros na região metropolitana de Nova York, Estados Unidos. Os jovens aos quais fazemos menção neste ensaio, frequentaram o ensino secundário em escolas públicas de Nova York nos anos letivos de 2004 e 2005, tendo participado de aulas de “Língua, Cultura e História Brasileiras” oferecidas como um programa opcional para estudantes de high school2. Os alunos matriculados nesse programa somavam um total de quinze jovens, sendo nove moças e seis rapazes: três dessas moças e dois desses rapazes, nasceram nos Estados Unidos sendo filhos de pais brasileiros emigrados , enquanto dez deles seis moças e quatro rapazes nasceram no Brasil, tendo chegado aos Estados Unidos antes dos dez anos de idade.


Participamos como colaborador nesse projeto de ensino de “Língua, Cultura e História Brasileiras”, que surgira com patrocínio de uma comunidade religiosa com grande concentração de brasileiros e uma
high school, em Nova York, e que foi desenvolvido durante os anos letivos de 2004 e 2005. As experiências dos participantes naquele programa (professores e estudantes) auxiliaram as citadas comunidade religiosa e escola a refletirem acerca das necessidades dos jovens identificados como brasileiros em seu meio, tendo transformado algumas de suas conclusões em solicitações às autoridades municipais.


Nossa experiência naquele programa de educação transnacional envolveu um estudo comparativo e discussão sobre a imigração nos Estados Unidos e no Brasil. Durante as discussões sobre o tema, frequentemente veio à tona a maneira como a questão da identidade nacional era encarada por brasileiros e por norte-americanos. Ao término daquela unidade temática, requisitamos dos alunos um texto dissertativo sobre a experiência migratória. Todos os textos versaram ao redor de dois temas principais: o que era ser brasileiro em uma terra estrangeira, e o que era ser um cidadão americano de origem brasileira numa cidade com tanta diversidade cultural quanto Nova York.


Os textos escritos pelos alunos daquele programa, assim como as discussões que frequentemente mantínhamos em classe, faziam um uso recorrente da palavra inglesa ‘
home‘ (lar/casa, em português). Além disso, era também recorrente a comparação do ‘aqui‘ versus ‘‘ – com o sentido geográfico sendo, muitas vezes, alterado: o ‘aqui‘ podendo significar os Estados Unidos ou o Brasil, dependendo do histórico pessoal de cada aluno e do aspecto histórico-cultural que estava em discussão, e vice versa.


As experiências que tivemos, em sala, com aqueles alunos parece-nos apontar que a ideia de nacionalidade está sempre ligada ao sentimento de “lar”. Enquanto a noção de identidade étnica não requer necessariamente uma
memória de localização geográfica, a identidade nacional parece sempre exigir a dicotomia ‘aqui‘ versus ‘‘, criando uma divisão externa para limitar-se identitariamente. A construção dessa dicotomia já havia sido apontada como uma marca da experiência migratória pela antropóloga Loretta Baldassar (1997, p. 70), quando escreveu que “a migração não consiste simplesmente na partida e no estabelecimento de um lar em um novo país. Consiste também nos laços com a antiga terra natal e na influência dessa ligação no desenvolvimento da identidade étnica na nova pátria”.


Na experiência de muitos transnacionais, a migração carrega em si um elemento de trauma, causado pelo abandono do que antes era familiar na antiga pátria. A memória exerce para esses uma função de ligação com os lugares e pessoas que ficaram para trás, e, assim, pode ser dolorosa, já que é uma lembrança do que está ausente no presente; ao mesmo tempo em que exerce uma função enraizadora numa identidade cultural íntima, ligada a uma história pessoal e a um senso de pertença em meio à mudança. A essa experiência específica da memória daremos aqui o nome de
tradição da saudade.


Pessoalmente, experienciamos essa
tradição da saudade em diferentes direções em nossas vivências migratórias, assim como também testemunhamos a experiência de jovens que passaram por vivências semelhantes. Em meio a essa crise enfrentada pelo migrante, qualquer ligação com a cultura de origem pode servir de suporte para a construção da nova identidade, que poderá ser repensada e reconstruída muitas vezes, dependendo de como se configure(m) a(s) experiência(s) migratória(s) do indivíduo. Algumas dessas ligações, na experiência de nossos alunos em Nova York, eram as próprias aulas de “Língua, Cultura e História Brasileiras”, o envolvimento com a comunidade brasileira local, uma ligação com as tradições religiosas de origem, e um contato com a cultura brasileira produzida nos Estados Unidos e/ou no Brasil.


Há jovens brasileiros, entretanto, que passam por experiências migratórias mais complexas. Como exemplo, poderíamos citar um de nossos alunos no programa, que aqui identificaremos pela inicial de seu primeiro nome
– “A” , que apesar de haver nascido no Brasil, tinha pai norte-americano e mãe uruguaia. Além dessa transnacionalidade familiar, sua família era judia ortodoxa, o que acrescentava um elemento a mais na complexidade étnica que o circundava. “A” viveu no Brasil até os quatro anos de idade, quando mudou-se para Israel tendo lá vivido até os nove , e posteriormente mudou-se para os Estados Unidos. Ou seja, para ele, a construção duma identidade nacional não era algo fácil, já que possuía ligações a diferentes lugares, e falava diferentes línguas. Além de todas essas marcas identitárias, “A” vinha de uma família que enfatizava muito fortemente sua etnia judaica, o que o distanciava ainda mais da concepção de unicidade étnica brasileira. Sua família, seus amigos, e mesmo outros alunos do programa, não o viam como brasileiro, apesar de ele perceber-se plenamente como tal, o que aparentemente confirma a sugestão de Phinney (1990) de que a auto-identificação étnica de um indivíduo pode ser diferente daquela percebida por outros.


Que relação poderia ter o ensino de História com a construção duma identidade transnacional naqueles estudantes, levando-se em consideração o fato de o programa ter tentado criar diálogos entre as histórias brasileira e norte-americana para aqueles jovens migrantes? Há alguma vantagem num empreendimento como esse para a criação ou fortalecimento de laços culturais entre jovens brasileiros emigrados e seu país de origem? Essas questões se repetiram durante todo o nosso envolvimento com o programa, já que alguns professores acreditavam que, para os jovens migrantes, o essencial seria a integração à cultura na qual estavam agora inseridos. Para um outro grupo, o contato com a cultura nacional de origem – o que inclui uma apreciação pela língua e história, por exemplo – contribuiria para que os estudantes pudessem lidar melhor com sua experiência da
tradição da saudade optando pela perspectiva assumida por Baldassar (1997, p. 70), como explicada anteriormente.


Nossas próprias experiências transnacionais, e o processo de construção identitária fluida que delas resultou, forçou-nos a enxergar a escola como uma experiência essencial na construção de pontes de ligação não apenas à cultura na qual tentam se inserir os imigrantes, mas também àquilo que deixam alhures. Sendo assim, nosso envolvimento anterior com o ensino bilingue de alunos transnacionais, e posteriormente com aquele programa destinado especificamente a jovens estudantes brasileiros baseava-se na concepção defendida por Loretta Baldasser de que a ligação com a cultura de origem influencia (positivamente, em nossa opinião) o desenvolvimento da nova identidade étnica ou nacional.

4. A tradição da saudade e a (re)construção e (re)interpretação de representações memoriais

Como a memória tem sua base referencial no passado, ela é flexível, enquanto material para a construção de interpretações do passado e do presente. “Memórias, imagens, identidades construídas são sempre incompletas porque correspondem a uma multiplicidade de experiências vividas por indivíduos e grupos sociais que não se encontram parados no tempo, mas em contínua transformação” (SANTOS, 1998, p. 11). A memória é, assim, inacabada.


Essa fluidez memorial desempenha, como consequência, um papel marcante na compreensão que o migrante tem de sua própria identidade nacional, enquanto estando geográfica e temporalmente alhures. Sua interpretação da memória identitária nacional – que não se baseia necessariamente em experiências objetivas pessoais – é influenciada e, até certo ponto, moldada pelas experiências do presente, quando pensamos em migrados que estejam no país receptor há muito tempo. Para transnacionais, a interpretação dessa memória identitária nacional depende, frequentemente, daquela assumida por sua própria família e sua comunidade migrante, já que essas representam a ligação mais imediata que possuem com a cultura de origem da família.


Nesse cenário de construção de representações memoriais e de (re)interpretações das mesmas, destaca-se o ensino direcionado a determinados grupos étnicos em países com grande movimentação imigratória, como os Estados Unidos. Esse tipo de ensino, que, em muitos casos, resume-se a um programa de aulas bilingues, muitas vezes funciona como
locus de transição para uma assimilação identitária em jovens migrantes, ao mesmo tempo em que funciona como um território de tensão identitária para jovens transnacionais (CUMMINS, 1989; PHINNEY, DEVICH-NAVARRO, 1997).


Em nossa experiência no programa de “Língua, Cultura e História Brasileiras” em Nova York pudemos presenciar o impacto causado em nossos jovens alunos o fato de explorarem aquele território de tensão. Para a maioria deles, aquela era a primeira oportunidade de encararem-se como
estrangeiros de forma mais ampla, já que, em seus relatos, na escola eram sempre apontados como latinos e nunca como especificamente brasileiros; seus amigos não-hispanos não compreendiam as diferenças étnicas/nacionais entre brasileiros e hispanos, assim como também não compreendiam as diferenças entre os vários grupos étnicos/nacionais hispânicos. Por outro lado, para seus amigos hispanos aqueles jovens brasileiros não eram parte plena de seu grupo étnico, especialmente se não falassem espanhol – ou, mais propriamente, no caso específico da comunidade onde ensinávamos, spanglish3 –, o que, para muitos deles, funcionava como uma pressão a mais em sua construção identitária étnica/nacional: alguns sofriam a pressão no lar para serem mais brasileiros, a pressão dos amigos para se encaixarem em algum grupo aceitável, e a pressão da sociedade como um todo para serem “americanos” (o que, grosso modo, significava falarem inglês fluentemente e se portarem de maneira aceitável para os padrões culturais estadunidenses).


Toda essa pressão sofrida por aqueles jovens – pressão essa que sempre testemunháramos, enquanto ensinávamos a alunos transnacionais, mas que parecia ser muito maior no caso de nossos outros alunos em situação ilegal no país, e que, por essa razão, não se encaixariam em nossa presente noção de transnacionalidade – parecia só reforçar a noção de nossos colegas professores que se opunham àquela forma de ensino. Em muitas ocasiões, ouvimos que aquele tipo de programa era um desperdício e um retrocesso, já que (para esses colegas) o papel da escola era absorver esses alunos e fazê-los juntarem-se ao
mainstream da sociedade norte-americana, e não o de reforçar as diferenças. Em alguns momentos anteriores àquele envolvimento nesse programa, observando o desempenho de grupos de alunos em disciplinas como Língua Inglesa e História dos Estados Unidos, receamos que o ensino bilingue fosse realmente um problema em termos de levá-los a uma integração com a sociedade na qual viviam agora. Entretanto, o programa de “Língua, Cultura e História Brasileiras” era uma tentativa de sairmos daquele velho formato de ensino bilingue, até aquele ponto tão característico de grandes centros migratórios nos Estados Unidos.


Em nossas discussões em sala, tínhamos a oportunidade de tratar o Brasil a partir de diferentes temas como o processo de colonização, a escravidão, a imigração, a industrialização, os problemas urbanos, o êxodo rural, a democracia, a violência urbana, as desigualdades sociais, e as questões ambientais – dando especial ênfase à vida no Brasil dos dias atuais. Em nossas aulas, usávamos livros de ficção e não-ficção, recortes de jornais, artigos de revistas, filmes, cenas de telenovelas e comerciais de televisão, fotografias, cartões postais, música, e outros materiais produzidos no Brasil. Além disso, usávamos também materiais produzidos nos próprios Estados Unidos, como referências em livros didáticos e reportagens de televisão, além de artigos na imprensa – e a partir disso, discutíamos a maneira como o Brasil era retratado em seu próprio território e no exterior. Os alunos visitavam atividades culturais da comunidade brasileira, e recebiam a visita de brasileiros envolvidos com a comunidade brasileira local.


A resposta dada pelos alunos às provocações causadas pelo que líamos, assistíamos, ouvíamos, visitávamos e posteriormente discutíamos em classe era suficientemente convincente para que pudéssemos afirmar que um trabalho como aquele, mesmo que não tivesse uma aparente importância acadêmica, colaborava na (re)construção e (re)interpretação dum lado identitário que, para alguns de nossos alunos, estava esquecido em decorrência da distância e tensão do viver num confuso território de múltiplas identidades que tinham a necessidade de serem manifestas.


A mobilização das competências não apenas cognitivas, como também emocionais, causada por aquele aprendizado construído em conjunto, faz-nos lembrar das palavras do filósofo francês, que escreveu: “O movimento, por sua vez, implica uma pluralidade de centros, uma sobreposição de perspectivas, um emaranhado de pontos de vista, uma coexistência de momentos que essencialmente distorcem a representação” (DELEUZE, 1994, p. 67).


A representação do eu, como um indivíduo modelado por e construtor duma identidade étnica e nacional é um ser em movimento. Entretanto, esse movimento é ainda mais intensificado quando pensamos num indivíduo moldado pela experiência migratória, que expõe-se a diferentes “centros” de influência. Essa não é uma experiência que possa ser apenas especificada na individualidade, pois é característica da experiência migratória universal. Essa é aquela experiência que chamamos de
tradição da saudade: a lembrança do que ficou para trás, a realidade manifesta na vivência do agora, e, como resultado da tensão criada por essas duas, uma identidade própria – que, enquanto se enraíza no presente, visita o passado para criar novos sentidos em meio a todas as mudanças. Essa experiência marcava-nos naquela turma: professor e alunos.


O Brasil que enxergávamos juntos, e o sentido de ser brasileiros que alcançávamos, não eram os mesmos que seriam enxergados e alcançados pelos brasileiros no Brasil. Além de serem brasileiros, aqueles jovens eram construtores habilidosos de pontes culturais e diplomáticas – e não apenas na comunidade escolar, mas também no seio de suas próprias famílias. Eram políticos que se engajavam na sobrevivência dentre diferentes momentos que “distorciam” sua representação memorial. Eram brasileiros emigrados e transnacionais que se arriscaram a descobrir um pedaço deles mesmos. E mais ainda, eram brasileiros esquecidos e ignorados pela tradição memorial do Brasil como um todo, e da escola brasileira em particular.

5. Considerações finais

No mundo cada vez mais globalizado no qual vivemos, onde há uma contínua movimentação migratória ocasionada pelas mais diferentes razões, é importante pensar acerca do sentido da identidade étnica e cultural. O Brasil, que apesar de ter sido historicamente um importante pólo de recebimento de imigrantes, é hoje um importante portão de emigração, com brasileiros vivendo em todos os continentes do globo.


O que esperamos dos pequenos brasileiros que hoje vivem no exterior e dos brasileiros que nascerão no exterior nas décadas adiante? Que tipo de apoio nossa tradição memorial oferecerá a esses brasileiros que, provavelmente, também experimentarão a confusão da tradição da saudade? Diremos algo sobre eles nos nossos livros didáticos? Ou continuaremos a ignorá-los, assim como ignoramos as comunidades de imigrantes em nosso país e os brasileiros da fronteira?


As responsabilidades que aguardam um país que deseja se destacar no cenário internacional, incluem o cuidado com todos os seus nacionais – estejam eles em seu território ou alhures. Acreditamos que disponibilizar meios para que os brasileiros que estão em outras terras possam aprender algo sobre sua herança – como sua língua, cultura e história –, é algo que deve fazer parte dos planos do Estado brasileiro. Enquanto isso não ocorre – e que provavelmente não ocorrerá brevemente, considerando que não se investe suficientemente nem na educação dos brasileiros que estão aqui mesmo –, esperamos que, pelo menos, os autores de livros didáticos se esforcem para reconhecer em seus textos os brasileiros sempre esquecidos: aqueles que comunicam-se nativamente em outras línguas que não o português, aqueles que nasceram e/ou cresceram em outros países ou nas áreas de fronteira entre o Brasil e seus vizinhos, e aqueles alheios ao estereótipo cultural atribuído aos nacionais do Brasil, estejam esses aqui mesmo ou em outras terras.

6. Referências bibliográficas

BALDASSAR, Loretta. Home and away: Migration, the return visit and ‘transnational’ identity. In: Ang, I; Seymonds, M. (eds.). Communal/Plural 5: Home, Displacement, Belonging. Sydney, Austrália: Research Centre in Intercommunal Studies, UWS Nepean, 1997.

 

BOCK, Ana M. B.; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes T. Psicologias: Uma introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Saraiva, 2008.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988, atualizada até a Emenda Constitucional nº 39 de 19 de dezembro de 2002. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003.

_______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 25 abr. 2011.

CUMMINS, Jim. Empowering Minority Students. Sacramento, EUA: California Association for Bilingual Education, 1989.

DELEUZE, Gilles. Difference and Repetition. Tradução ao inglês de Paul Patton. Nova York, EUA: Columbia University Press, 1994.

LIEBKIND, Karmela. Ethnic identity: Challenging the boundaries of social psychology. In: Breakwell, G. (ed.). Social psychology of identity and the self-concept. Londres, Reino Unido: Academic, 1992. p. 147-185.

_____________. Acculturation. In: Brown, R.; Gaertner, S. (eds.). Blackwell handbook of social psychology: Intergroup processes. Oxford, Reino Unido: Blackwell, 2001. p. 386-406.

PHINNEY, Jean S. Ethnic identity in adolescents and adults: A review of research. In: Psychological Bulletin, Volume 108, Issue 3. Washington, EUA: American Psychological Association, 1990. p. 499-514.

PHINNEY, Jean S.; DEVICH-NAVARRO, Mona. Variations in bicultural identification among African American and Mexican American adolescents. In: Journal of Research on Adolescence, Volume 7. Ann Arbor, EUA: Society for Research on Adolescence, 1997. p. 3-32.

ROUSSO, Henry. La mémoire n’est plus ce qu’elle était. In: Écrire l’histoire du temps présent. Paris, França: CNRS, 1992.

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Sobre a autonomia das novas identidades coletivas: alguns problemas teóricos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Out. 1998, vol. 13, nº 38. Disponível em:

NOTAS

1 De acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil, Capítulo III, Artigo 12, há duas formas de aquisição da nacionalidade brasileira: aquela chamada de forma primária ou originária, que consiste na utilização dos critérios do jus solis e/ou do jus sanguinis; e aquela chamada de forma secundária ou adquirida, que consiste na naturalização. Quando mencionamos aqui brasileiros nascidos no exterior, nos referimos àqueles cujo direito à nacionalidade deriva dos critérios do jus sanguinis, apesar de, não necessariamente, já possuírem a cidadania brasileira, já que esta, de acordo com a Constituição de 1988 (entre 1994 e 2007), dependia de sua fixação em território nacional. A redação dada pela Emenda Constitucional de número 54, de 2007, confere a nacionalidade brasileira também aos nascidos no exterior, de pai ou mãe brasileira, que tenham sido registrados em repartição brasileira competente (representações consulares).

2  A High School corresponde ao Ensino Médio brasileiro.

3  Uma mistura informal de espanhol e inglês, especialmente na fala de jovens hispanos.

Filosofia para as vítimas da antifilosofia

Gibson da Costa

A vida etérea das “redes sociais” é a vida do marketing pessoal. Estamos todos numa vitrine na qual nos vendemos por meio das aparências. É a vida das edições de imagens, que impulsionam a [auto]massagem do ego na disputa pelos “likes” da “Rede Social” de todas as redes sociais. É a vida das imagens com citações descontextualizadas e, muitas vezes, apócrifas. Agora, a disputa e o conflito giram em torno de outra forma de poder: o poder da imagem autoconstruída dum “eu-mercadoria”, projetado, desenhado, manipulado, escrito pelo gosto e preferências alheias.

A coisa triste dessa baratização da humanidade digitalizada é que facilmente nos tornamos vítimas de falsos “filósofos”. E a “Rede Social” está repleta desses. Eles oferecem uma autoajuda barata que se vende como “filosófica”; uma autoajuda que oferece a “cura” para o deficit de “leitura” de nossa cultura: criam inimigos e heróis – os inimigos, claro, são todos aqueles de quem discordam e que deles discordam; os heróis são eles próprios, cercados por acólitos que repetem os refrões bélicos típicos de fanáticos!

E eu que sempre pensara que a criticidade fosse a base da filosofia! O julgar pela aparência, em minha compreensão, se afasta muito de qualquer noção filosófica de criticidade. Ou, como bem escreveu Roger Scruton (autor com quem nem sempre concordo): “os seres racionais não somente olham para as coisas, eles olham dentro das coisas”. Assim, qualquer “filósofo” que se venda como fonte de verdade única, enquanto condena todo e qualquer autor como se fosse mentiroso e, por isso, inferior a si, pratica qualquer coisa, menos filosofia!

A filosofia é inseparável do pensamento crítico, e este – de acordo com Hannah Arendt – faz com que tornemos “o outro” presente por meio da imaginação. Essa criticidade (ou “esclarecimento”) nos faria conhecer e considerar os pontos de vista de outras pessoas. E, assim, poderíamos analisar um objeto por todos os lados, a partir de diferentes perspectivas.

Proclamar anátemas não é filosofar; é, antes, dogmatizar. E a dogmatização é um instrumento utilíssimo para o marketing pessoal daqueles que se vendem como “gurus” da “filosofia” das redes sociais. Como o que proclamam é “a verdade”, e todos os outros são mentirosos, seus discípulos os veem como “autoridade” intelectual, moral, espiritual etc. Assim, uma nova geração de fanáticos é criada. O questionamento e o filosofar são assaltados. Defensores da violência, da tortura, do autoritarismo e da hierarquia são exaltados como baluartes da “esperança” – uma esperança vazia que já decepcionou inúmeros no passado e não falhará em decepcionar os acólitos desses falsos “filósofos” do presente.

 Carvalho prometeu mergulhar numa banheira de palavrões caso seu personal chanceler Ernesto Araújo rompa relações com a FrançaExemplo mais famoso entre os brasileiros de “filósofo” da antifilosofia

Você não tem de acreditar em nada do que escrevo. Não quero nem preciso de seguidores. Apenas convido você, que lê essas palavras, a olhar para “dentro das coisas”, a analisar qualquer coisa a partir de diferentes perspectivas. Em outras palavras, convido você a filosofar!

Referências

 

ARENDT, Hannah. Lições sobre a filosofia política de Kant. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.

 

SCRUTON, Roger. Bebo, logo existo: guia de um filósofo para o vinho. Tradução Cristina Cupertino. São Paulo: Octavo, 2011.

Uma breve resposta a críticas desinformadas sobre o Construtivismo

Como resposta a uma manifestação minha sobre as afirmações dum vlogger/autor brasileiro (guru duma nova geração autoproclamada “conservadora”), um colega me enviou a ligação para um vídeo no qual o mesmo autor discorre – em sua “civilizada” maneira! – sobre aquilo que ele chama de “método sócio-construtivista”, ou o que o resto de nós chama de “construtivismo”.

Abaixo, responderei, brevemente, a algumas das perspectivas expostas no vídeo – deixando de lado, por ter mais o que fazer da vida, as recorrentes grosserias do nobre filósofo para com seu público.

1. “Método sócio-construtivista”

O construtivismo, em si, não é um método de ensino, é um conjunto de teorias epistemológicas. Sobre essas – ou uma ou algumas dessas – múltiplas teorias podem-se construir diferentes métodos de ensino; assim, não há “o método construtivista de ensino”.

2. “Para o método construtivista de ensino só existe [sic] dois elementos em jogo: um é o aluno e o outro é o mundo, que é o objeto.”

A propósito, para alguém que ataca a “incorreção” gramatical alheia como uma forma de “burrice”, é interessante como Carvalho consegue cometer um erro de concordância verbal tão simples: ele, talvez, não saiba que o verbo “existir” deve concordar em número com seu complemento, assim “só existem dois elementos”! Mas, como não partilho da visão linguística do nobre filósofo e, assim, não penso que as pessoas que violam a “gramática” normativa sejam intelectualmente deficientes – se o fizesse, tanto ele quanto eu seríamos intelectualmente deficientes –, analisemos sua afirmação:

Não, para construtivistas não há apenas “dois elementos em jogo” no processo de aprendizagem. Para compreender isso, temos de nos lembrar de onde saem as ideias construtivistas. Temos de revisar um pouco da história da filosofia.

Pensemos sobre as questões epistemológicas da modernidade – isto é, questões que lidam com a origem do conhecimento. No chamado Ocidente, temos lidado, na modernidade, com três grandes tradições que buscam oferecer uma explicação filosófica para o ser e o fazer do conhecimento, e, consequentemente, para como aprendemos: A) a tradição racionalista moderna, iniciada por René Descartes; B) a tradição empirista, iniciada por John Locke; e, C) a via media da tradição interacionista de Immanuel Kant.

Explicando cada uma dessas grandes tradições de forma muito breve – e, portanto, deficiente –, poderíamos resumi-las da seguinte forma:

a) A tradição racionalista moderna → o racionalismo moderno emergiu como uma versão atualizada do idealismo platônico. Para a tradição platônica, já trazíamos, desde antes do nascimento, as ideias das coisas, que nossas almas já conheciam desde sua vinda do mundo das ideias verdadeiras/perfeitas. Em sua versão moderna, as ideias são compreendidas de forma mais ampla, mas, ainda assim, como algo que trazemos ao mundo – ou seja, como algo inato. Diferentemente do idealismo platônico, o racionalismo moderno se baseia no raciocínio a partir da natureza desenvolvida na modernidade. Em seu cerne, encontra-se a visão de que as únicas fontes de conhecimento sejam, exatamente, a razão e o pensamento.

b) A tradição empirista → opostamente ao racionalismo, o empirismo compreende o conhecimento como algo que se obtém a partir do mundo externo, por meio dos sentidos, da experiência. Assim, para os empiristas, nasceríamos com uma mente sem conteúdos – uma tábula rasa. O conhecimento seria obtido apenas através da experiência com o meio e com os estímulos externos – ou seja, o conhecimento viria do objeto, de forma passiva, para o indivíduo; o objeto externo é, assim, a única fonte de conhecimento.

c) A tradição interacionista → Immanuel Kant, em sua monumental “Crítica da razão pura”, ofereceu uma solução para os reducionismos tanto do racionalismo quanto do empirismo. Para Kant, tanto o sujeito quanto o objeto externo desempenhariam um papel na formação do conhecimento. Através da intuição recebemos as impressões dos objetos externos; e, através do entendimento, articulamos essas impressões, aplicando os conceitos que dão forma a esses objetos. Em outras palavras, o conhecimento seria formado através da interação entre o pensamento humano e a experiência sensorial. [Obviamente, a teoria do conhecimento desenvolvida por Kant é muito mais complexa do que essa simplificação, mas não é minha intenção aqui discuti-la – apesar de sua fundamentalidade para o construtivismo.]

Essa teoria epistemológica de Kant é a base filosófica para o construtivismo, originalmente, a chamada “epistemologia genética” de Jean Piaget. Piaget desenvolveu sua epistemologia genética influenciado pela epistemologia de Kant, mas é importante ter o cuidado de não sinonimizá-las – elas não são, necessariamente, a mesma coisa. Obviamente, o construtivismo, enquanto conjunto de teorias, recebeu contribuições importantes de outros pensadores além de Kant e Piaget, como Vygotsky, Luria e Wallon, por exemplo.

Mas, voltando à afirmação de Carvalho, na abordagem construtivista, aqueles dois elementos, tanto na formação do conhecimento quanto no processo de ensino-aprendizagem escolar, são insuficientes em si mesmos. É necessária a interação entre os dois; e, na escola, essa interação ocorre por meio da facilitação oferecida pelo professor.

3. “… e, no fim, chegará a obter toda uma concepção organizada do mundo a partir da [sic] mero experimento espontâneo. […] Agora, toda esta escola que foi adotada no Brasil, há cinquenta anos, e vê esses filhos das p***** desse Jean Piaget, Emilia Ferreiro, Vygotsky, Paulo Freire… todo esse bando de charlatão e vigarista [sic], p****!… O ensino é assim: o ensino não pode ser diretivo…”

Esse é o tipo de afirmação feito por quem não conhece as teorias que servem de base para o construtivismo. Os diferentes métodos construtivistas não são espontaneístas ou não-diretivistas, como assevera Carvalho. Piaget, por exemplo, ensinava que a aprendizagem é “provocada” pelo professor. Para Vygotsky, o professor é o “mediador” da aprendizagem. Para Wallon, é através da “intervenção” planejada e informada do professor que ocorre a aprendizagem na escola. Todos eles desmentem a afirmação do candidato a filósofo da educação acima sobre qual seria a perspectiva teórica construtivista.

4. “… é pra isto que existe a figura do mediador, do professor… sem o qual o aprendizado é impossível, impossível.”

Nesse ponto, posso concordar com o filósofo. Toda aprendizagem é sempre mediada. Para o construtivismo, na escola, essa figura de mediador é assumida pelo professor. Obviamente, o professor não é o único mediador no processo de aprendizagem duma criança, dum jovem ou dum adulto; ele o é no meio escolar.

É importante, aliás, conceituar a própria mediação, para evitarmos maiores incompreensões. O termo refere-se ao elo (leia-se “ponte”, “ligação”) entre o sujeito e seu objeto de aprendizagem – ou seja, é um processo de facilitação da construção do conhecimento por um personagem extra nessa interação entre o sujeito e o objeto. Isso é parte essencial das teorias construtivistas, e só alguém que não conheça as obras dos autores-chave dessa tradição poderia afirmar o contrário.

5. “Eu hoje mesmo tava [sic] lendo, a primeira página da Folha de São Paulo, você tem uns vinte erro [sic] de gramática na primeira página dum jornal, p****! Isso quer dizer que os profissionais de idioma não sabem mais o idioma… E as pessoas assim, elas não conseguem raciocinar…”

E isso foi, na verdade, para fechar com chave de ouro! Nem falarei sobre as perspectivas linguísticas abraçadas pelo pensador acima. Não preciso, agora, comentar mais nada dito nesse vídeo. Só me resta dizer que quando falamos, sem limites de bom senso, sobre tudo – mesmo aquilo que não conhecemos –, corremos o risco de, além de nos contradizermos, nos ridicularizarmos! Essa é uma lição que mesmo os grandes “filósofos” deveriam aprender!

Gibson Da Costa

O que significa chamar o professor de “facilitador”?

Gibson da Costa


Nossas escolhas metodológicas são, em minha opinião, uma escolha política. Assim, a forma como ensinamos, e a forma como nos relacionamos com os estudantes em sala (e fora dela), é uma expressão da forma como compreendemos tanto o ser humano quanto a sociedade – um reflexo de nosso imaginário antropológico e político. Isso faz com que eu sempre me preocupe quando vejo uma sala de aula organizada em fileiras direcionadas ao professor, com ele ocupando uma posição magistral diante de seus alunos: o que essa organização diria sobre o imaginário antropológico e político da escola e do professor?

Nossa sociedade, no século XXI, precisa de jovens que possam resolver problemas, tomar decisões, pensar criativamente, comunicar ideias de forma eficaz, e trabalhar eficientemente independentemente e em grupo. O tipo de professor que funciona como “transmissor” de conhecimento por meio de aulas exclusivamente expositivas, falando duma posição de autoridade exclusiva em sala de aula é insuficiente para preparar o tipo de jovens que nossa sociedade precisa.

No mundo cada vez mais complexo e fluido no qual vivemos, os jovens precisam de oportunidades para desenvolverem capacidades e habilidades pessoais, associadas aos conhecimentos e compreensões previstos nos programas curriculares, como parte de sua educação escolar. Para tal, o professor precisa desenvolver a habilidade de engajar seus alunos ativamente no processo de ensino-aprendizagem, tornando-o uma experiência mais relevante, apreciável e motivadora. Pessoalmente, essa é uma escolha metodológica que espelha minhas próprias compreensões sobre o ser humano e sobre a vida em comunidade – meu imaginário antropológico e político.

Esse processo de ensino-aprendizagem no qual os alunos participam mais ativamente tem implicações diretas para o papel desempenhado pelo professor em sala de aula. Há, aí, uma mudança daquele conhecido modelo centrado no professor para uma abordagem centrada no aluno. Há, também, uma mudança do ensino-aprendizagem centrado no produto para um ensino-aprendizagem centrado no processo.

Colocar o aluno na posição central no processo de ensino-aprendizagem não significa, diferentemente do que se poderia pensar, diminuir a importância do professor nesse processo. Como afirma Libâneo,

O professor é aqui um parceiro mais experiente na conquista do conhecimento, interagindo com a experiência do aluno. O papel do ensino – e, portanto, do professor – é mediar a relação de conhecimento que o aluno trava com os objetos de conhecimento e consigo mesmo, para a construção de sua aprendizagem. O papel do ensino é possibilitar que o aluno desenvolva suas próprias capacidades para que ele mesmo realize as tarefas de aprendizagem e chegue a um resultado.1


Poderíamos ilustrar essa mudança de abordagens por meio do uso de uma tabela. Do lado esquerdo, veremos aquilo que poderíamos chamar de abordagem magistral (porque centrada na autoridade exclusiva do professor) do processo de ensino-aprendizagem, e, do lado direito, aquilo que nomearemos abordagem democrática (porque centrada na participação comunitária de todos os envolvidos) do processo de ensino-aprendizagem – como a mudança de papel do professor implica, também, uma mudança de papel do aluno, dividirei a lista em duas partes:

PAPEL DO PROFESSOR

De uma “abordagem magistral”

Para uma “abordagem democrática”

Centrada no professor

Centrada no aluno

Centrada no produto

Centrada no processo

Professor é “transmissor do conhecimento”

Professor é “organizador do conhecimento”

Professor é o que faz, o que tem as respostas

Professor facilita a aprendizagem

Foco na matéria/componente curricular específico

Foco numa aprendizagem holística

PAPEL DO ALUNO

De uma “abordagem magistral”

Para uma “abordagem democrática”

Recipiente passivo do conhecimento

Aprendiz ativo e participativo

Centrada na resposta a perguntas

Centrada no questionamento

Receptor da “transmissão” do professor

Assume responsabilidade por sua própria aprendizagem

Compete com outros alunos

Colabora com outros para sua aprendizagem

Quer dominar a discussão, sempre tendo razão

Ativa e participativamente, ouve às opiniões dos outros

Aprendiz de matéria/componentes individuais

Conecta e inter-relaciona sua aprendizagem


Mas o que significa, afinal de contas, chamar o professor de
facilitador?

Num ambiente escolar onde se opta por uma abordagem democrática do processo de ensino-aprendizagem – isto é, uma abordagem que enfatiza uma participação ativa dos estudantes nesse processo –, o professor apoia seus alunos em seus esforços para aprenderem e desenvolverem habilidades tais como avaliar evidências, negociar, tomar decisões informadas, resolver problemas, trabalhar independentemente ou em grupo, etc. Para isso, a participação dos alunos em seu próprio aprendizado é essencial.

Algumas vezes, o professor-facilitador terá de assumir um papel ou uma função específica para melhorar a aprendizagem na sala de aula, ou para desafiar seus alunos para que pensem de forma diferente. Alguns desses papéis poderiam incluir:

  • facilitador (aparentemente) “neutro”: leva o grupo a explorar diferentes pontos de vista sem explicitar sua própria opinião (tendo-se em mente, obviamente, que absolutamente ninguém encontra-se numa posição de “neutralidade”);

  • advogado do diabo: o professor deliberadamente adota uma posição oposta para confrontar os alunos, independentemente de sua própria visão;

  • posições explícitas: o professor declara sua própria posição, para que o grupo, assim, conheça suas opiniões;

  • aliado: o professor apoia a visão de um subgrupo ou indivíduo (geralmente uma minoria);

  • posição oficial: o professor informa à turma a posição oficial sobre certos temas, por exemplo, a Constituição Federal, as leis, certas organizações etc – um exemplo: “nesta classe não aceitaremos insultos racistas, sexistas, homofóbicos, porque além de serem descorteses, violam a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Constituição Federal e as leis brasileiras”;

  • desafiador: o professor, através de questionamentos, desafia as opiniões sendo expressas pelos alunos e encoraja-os a justificarem suas posições;

  • provocador: o professor apresenta um argumento, ponto de vista ou informação que ele sabe provocará a turma, e nos quais ele não necessariamente acredita, mas por serem crenças autênticas de outros indivíduos ou grupos, ele os apresenta convincentemente;

  • ator: o professor torna-se uma pessoa ou personagem particular (por exemplo, um político, comunicador, ou líder religioso), apresentando à classe seus argumentos ou opiniões.


Os papeis listados acima apresentam suas vantagens e suas desvantagens, e é deveras importante considerá-las quando do planejamento de nossas aulas. Algumas perguntas sobre as quais poderíamos pensar incluem:

  • Como me sentirei se assumir este papel?

  • Posso pensar em áreas de minha prática atual nas quais alguns desses papeis poderiam ser desempenhados?

  • Já assumo alguns desses papeis inconscientemente?

  • Há alguma necessidade específica em minha turma que deva ser considerada?

  • Que estratégias posso usar para lidar com problemas difíceis e desafiadores que possam surgir?

  • Já decidi exatamente quais são os objetivos da aula?

  • Etc, etc, etc…


É importante lembrar-se, contudo, que para que nos tornemos facilitadores em sala de aula, devemos nos engajar num cuidadoso trabalho de planejamento. Em minha própria experiência, assumindo diferentes papeis em sala – de acordo com meus objetivos –, isso é ainda mais importante. É só por meio dum cuidadoso planejamento que podemos saber o que poderia ou não funcionar com nossas turmas, nossos objetivos, o tema que trataremos em sala etc; ajudando, assim, nossos alunos a assumirem eles mesmos um papel mais ativo em sua aprendizagem.

 

Referências

1LIBÂNEO, José Carlos. Didática: velhos e novos temas. [S/l]: Edição do Autor, 2002., p.5.