Manifestação na praça Tahrir, Cairo. Egito, 08/07/2011.
Foto: Mohamed Abd El-Ghany/Reuters
[Originalmente publicado em 12 de julho de 2014.]
Gibson da Costa
Parece que ainda podemos ouvir os gritos dos manifestantes egípcios vociferarem as palavras que se tornaram o slogan da prévia duma nova era: ash-sha’b yurid isqat an-nizam (o povo quer derrubar o regime). Esse grito do sha’ab1, o povo – uma entidade até então impotente, se não inexistente, na política egípcia –, pareceu sinalizar, a partir de janeiro de 2011 (anteriorizado pelo levante na Tunísia, iniciado em dezembro de 2010, e pelos da Argélia, Jordânia e Omã, respectivamente), um novo momento na conturbada história egípcia e de alguns outros países do mundo árabe. Aquele grito, associado à brilhante construção semântica de Marc Lynch, que foi, supostamente, o primeiro a utilizar a expressão Primavera Árabe para se referir àqueles eventos em seu blog no sítio da revista Foreign Policy, em 6 de janeiro de 20112; mas também associado à suposta estratégia do governo de Barack Obama de apoderar-se dessa adjetivação para poder controlar a imagem do movimento e o caminho que o mesmo seguiria3, fez com que se pensasse que aquele movimento fosse uma revolução democrática à la americana/francesa. A pressão ocidental e o romantismo retórico de sua imprensa, e do mundo digital globalizado, entretanto, foram insuficientes para encapsular a experiência e as expectativas do sha’ab egípcio e do resto do mundo árabe.
O que é mais relevante sobre o slogan dos manifestantes egípcios é a diferença quando comparado aos costumeiros gritos revolucionários. Para os manifestantes, era insuficiente gritar “Abaixo o regime!”. Aqueles súditos de autocratas, ditadores, e imãs supostamente teocratas resolveram tomar em suas mãos a soberania popular, e em seu slogan adicionaram o singular coletivo “o povo quer”. O sha’ab agora afirmava sua existência. O sha’ab queria agora que sua voz fosse ouvida. O sha’ab queria escrever sua história coletiva sem amarras ditatoriais. E, se acreditássemos no que a imprensa e as autoridades políticas ocidentais queriam que acreditássemos, o sha’ab queria a democracia e a liberdade ocidentais. A emergência do próprio sha’ab, entretanto, representa, para nós, um sentido mais significativo daqueles movimentos que se alastraram pelo mundo árabe. Sua busca por uma alternativa política, entretanto, encontraria respostas numa tradição incompatível com a noção que a “opinião ocidental” tinha duma revolução democrática. A Primavera Árabe tornar-se-ia o Renascimento Islamita.
Faz-se importante, aqui, traçar uma clara distinção entre o Islã, uma religião, e aquilo que aqui chamamos de Islã político, uma ideologia sociopolítica baseada numa leitura específica do Islã. Enquanto, aqui, a religião islâmica/muçulmana é uma questão de identidade pessoal em diálogo com uma tradição religiosa, a ideologia sociopolítica islamita serve a uma agenda política específica. Esse é o sentido básico, mesmo que reconhecidamente limitado, que atribuímos a esses termos neste ensaio. Ademais, utilizamos o adjetivo “islamita” para referir-nos exclusivamente ao Islã político; enquanto utilizamos “muçulmano” e/ou “islâmico” como adjetivo relativo à religião do Islã.
Não surpreende a emergência política de partidos islamitas após os levantes iniciados em 2010, especialmente no que tange à Gamma’at al-ikhwan al-muslimun (a Irmandade Muçulmana do Egito). Por décadas, a Irmandade Muçulmana usou a repressão do regime para organizar suas redes sociais alternativas e construir uma imagem semi-heroica. A Irmandade transformou sua perseguição pelo regime em capital sociopolítico, permitindo-lhe recrutar novos membros e aumentar sua influência sobre diferentes grupos sociais. Ademais, com o passar do tempo, se ajustou às regras do jogo político, participando de eleições, construindo alianças com diferentes grupos políticos, e, em alguns momentos, estimulando a repressão do regime para aumentar seu apelo público. A eficiente rede social construída e mantida por ela provia de serviços de saúde e educação a abrigo para os mais pobres, o que tornou-se uma garantia de ganhos políticos entre uma grande parcela dos eleitores egípcios4.
A ideologia islamita, como aquela defendida pela Irmandade Muçulmana, difundiu-se como uma promessa messiânica entre jovens egípcios que haviam sido marginalizados pela modernização e, em sua visão, pelo status de haram (iniquidade) atribuído ao antigo regime. Essa ideologia político-religiosa constituía, para muitos jovens urbanos conservadores, a única alternativa ao mundo “ocidentalizado” e divorciado do Islã (apesar de não necessariamente laicizado) que se lhes impunha. Os líderes islamitas, assim, não tiveram problemas para ecoar entre esses jovens sua “sagrada missão” de estabelecer um “Estado Islâmico”. Décadas de tradição na defesa duma transformação tanto das estruturas políticas quanto das normas e valores sociais, para ajustá-los à sua visão, preparou o caminho para que os eleitores egípcios conhecessem a alternativa que se lhes apresentava. Portanto, mesmo considerando a direção pragmática tomada pela Irmandade após a “Primavera”, e mesmo antes, julgamos precipitadas as perspectivas que viam os levantes como uma “revolução pós-islâmica”5.
Pode ser verdade que os jovens que iniciaram as manifestações nas ruas egípcias não fossem, em sua maioria, islamitas, ou, mais especificamente, integrassem a Irmandade Muçulmana, como afirmava-se repetidamente em noticiários televisivos da Al Jazeera, da BBC, da CNN, da MSNBC, da TF1, da TVE e da Deutsche Welle que acompanhamos. Contudo, a julgar pelo que se seguiu no palco político daquele país, não é difícil imaginar que a Irmandade tenha se contido durante os levantes para evitar a repressão e para diminuir o temor ocidental de sua presença. Também, é importante recordar que a Irmandade Muçulmana não foi o único grupo islamita a participar do movimento, já que outros grupos menores e independentes – e mais radicias – se envolveram no levante. Assim, considerando o envolvimento de tais grupos com agendas políticas supostamente baseadas na religião, assim como a utilização de sermões religiosos em mesquitas ao redor do país para a mobilização das massas durante o período, não poderíamos aceitar a esperançosa visão de que aquela fosse uma “revolução pós-islâmica” – como se o Islã e, mais especificamente, a tradição islamita estivessem ausentes das alternativas mais imediatamente disponíveis ao sha’ab.
Diferentemente da visão esperançosa que Oliver Roy, por exemplo, articulou num artigo para o blog do The European Institute ainda em fevereiro de 2011, onde enfatizava o caráter pós-islâmico daquilo que chamou de “revolução”, em grande parte as demandas com as quais o sha’ab egípcio se engajou se revestiam dum ethos próprio ao mito muçulmano, e, assim, podiam manter uma comunicação com tradições islamitas mais moderadas. Logo, se é verdade que essas demandas se focavam em “valores humanos universais”6, a interpretação que faziam desses valores se revestiria duma roupagem mais próxima à sua própria experiência sociocultural – enormemente moldada pelo imaginário muçulmano. O autor, entretanto, não vira ainda, em fevereiro de 2011, como se dariam os acontecimentos políticos no Egito e nos demais países árabes atingidos por aqueles movimentos. Seu julgamento hoje, à luz do que resultaria daqueles levantes populares, só reforça a visão de que todo o otimismo que se criou foi deveras antecipado. Ao que nos parece, não havia, no Egito ou nos outros países da “Primavera Árabe”, uma alternativa política capaz de realizar uma tal “revolução pós-islâmica”.
Os resultados das eleições de fins de 2011 mostraram que, mesmo em disputas eleitorais relativamente livres, o sha’ab egípcio optaria pelos políticos islamitas, como já ocorrera nas eleições de 2005. Para as eleições de 2011, novos partidos islamitas de orientação salafista foram organizados. A soma dos deputados do Hizb al-Hurriya wal-‘Adala (Partido Liberdade e Justiça) – o partido da Irmandade Muçulmana7 – com os desses partidos salafistas somava cerca de dois terços da Assembleia Legislativa egípcia. Desses novos partidos, o mais numeroso e influente era o Hizb al-Nur8 [Partido da Luz], partido criado pela al-Da’wa al-Salafiyya [O Chamado Salafista], um movimento islamita radical. Além deles, reorganizou-se o Hizb al-Wasat [Partido do Centro], originalmente fundado em 1996, mas tornado ilegal subsequentemente, de orientação islamita moderada e defendendo uma visão bem tolerante e diversa do papel do Islã na sociedade9; e fundou-se o Hizb al-Benaa wa al-Tanmia10 [Partido da Construção e do Desenvolvimento], um partido islamita associado ao al-Jama’a al-Islamiyya [Grupo Islâmico].
Dos 498 deputados eleitos de forma direta – 10 outros eram indicados pelos militares no poder –, 235 eram do al-Hurriya wal-‘Adala, 121 do al-Nur, 10 do al-Wasat, 9 do al-Benaa, e os demais ficaram com partidos menores11. Em outras palavras, a grande maioria das vagas ficaram com partidos islamitas, partidos defensores, duma forma ou de outra, de ideologias baseadas numa visão particular da religião islâmica. Isso, em termos estatísticos, é mais do que suficiente para convencer-nos que o qualificativo de “revolução pós-islâmica” é equivocado no que concerne especificamente ao Egito.
Com isso, não queremos insinuar que o simples fato de o país possuir uma população majoritariamente muçulmana faria com que os eleitores automaticamente rejeitassem opções secularistas e empossassem um regime islamita. O que os eleitores buscaram após a “Primavera”, contudo, parece ter sido opções que representassem uma forte oposição ao regime deposto. Os variados grupos islamitas conseguiam representar bem isso por terem décadas de história na oposição, tendo sido perseguidos pelo regime deposto. Sua história dava-lhes credibilidade e legitimidade aos olhos da maioria dos eleitores egípcios. O mesmo, entretanto, não poderia ser dito dos partidos secularistas, fossem de orientação liberal ou socialista, por não terem uma história na oposição ao regime deposto.
Enquanto o regime deposto havia tentado controlar o establishment religioso, influenciando as lideranças religiosas da Universidade al-Azhar, e se esforçando para silenciar as oposições islamitas por décadas (e não apenas o regime deposto, como também os anteriores, desde pelo menos a emergência da Irmandade Muçulmana como força política), essas oposições continuaram – mesmo que ilegalmente – suas atividades sociais, políticas e religiosas na oposição ao regime. Pode-se supor que, na imaginação do sha’ab, a religião tornara-se o sinalizador dos grupos que tiveram a coragem de desafiar um regime ditatorial. A atitude desafiadora desses grupos, associada a suas obras sociais, deu-lhes um carisma que nenhum partido secularista conseguiu alcançar nas eleições que se seguiram aos levantes de 2011. Isso foi, contudo, o que ocorreu apenas no início da transição.
Como em todo drama político, não demorou muito para que os antigos heróis fossem, também, acusados de ineficiência, corrupção etc. Veio o golpe de 3 de julho de 2013, e a deposição do presidente Mohammed Morsy, membro da al-Hurriya wal-‘Adala, da Presidência do país. A Irmandade Muçulmana foi, mais uma vez, posta na ilegalidade. O próprio sha’ab demostrava-se, aparentemente, insatisfeito com a forma como o Egito estava, especialmente em termos econômicos e sociais. Os militares, insatisfeitos com seus inimigos no poder, aproveitaram-se da situação. Mais violência, mais caos12. Era o fim da “revolução pós-islâmica”?
O complexo contexto histórico, não apenas do Egito como também de toda a região, pode tornar toda a dinâmica sociopolítica e, consequentemente, eleitoral difícil de compreender. Como compreender a conciliação entre os anseios do sha’ab e suas escolhas eleitorais “livres” (talvez devêssemos, na verdade, tentar compreender o sentido de “liberdade” no contexto egípcio)?
Se um dia haverá uma “revolução pós-islâmica” no Egito, é muito cedo para saber – apesar de os especialistas não terem tido nenhum pudor em se apressar para identificar assim os eventos políticos no país e na região em 2011. Assim como se poderia dizer que também era cedo demais para qualificar como “revolução” as transformações políticas que se tentavam fazer – a depender de como se define “revolução”, claro. A verdadeira “revolução”, entretanto, e talvez a única que tenha realmente ocorrido tanto no Egito como em outros países atingidos pelo clima da “Primavera”, foi a revolução do sha’ab. Essa revolução pode ter sido trazida à tona pelo renascimento islamita, mas, se um dia haverá alguma mudança democrática permanente naquela sociedade, essa só poderá ocorrer por seu real senhor: o sha’ab.
Referências
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Gamma’at al-ikhwan al-muslimun [Irmandade Muçulmana egípcia]: <http://www.ikhwanonline.com/>. Acesso em: 15 fev 2014.
Hizb al-Benaa wa al-Tanmia [Partido da Construção e do Desenvolvimento]: <http://benaaparty.com/>. Acesso em: 15 fev 2014.
Hizb al-Nur [Partido da Luz]: <http://www.alnourparty.org/ >. Acesso em: 15 fev 2014.
Hizb al-Wasat [Partido do Centro]: <http://www.alwasatparty.com/>. Acesso em: 15 fev 2014.
LYNCH, Marc. Obama’s Arab Spring [A Primavera Árabe de Obama]. Foreign Policy, 6 jan 2011. Disponível em: <http://mideastafrica.foreignpolicy.com/posts/2011/01/06/obamas_arab_spring>. Acesso em: 15 fev 2014.
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REVOLUÇÃO “pós-islâmica” afectará todo o sistema global. Diário de Notícias, 11 março 2011. Disponível em: <http://www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=1803829&seccao=Europa&page=-1>. Acesso em: 15 fev 2014.
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WEDEMAN, Ben; SAYAH, Reza; SMITH, Matt. Coup topples Egypt’s Morsy; deposed president under ‘house arrest’. CNN, 4 jul 2013. Disponível em: <http://edition.cnn.com/2013/07/03/world/meast/egypt-protests/>. Acesso em: 15 fev 2014.
NOTAS:
1 Utilizaremos o termo árabe ao longo deste texto para nos referirmos ao “povo” por ele possuir um sentido retórico importantíssimo aqui, que não seria alcançado por uma tradução apenas aproximada.
2 LYNCH, Marc. Obama’s Arab Spring [A Primavera Árabe de Obama]. Foreign Policy, 6 jan 2011. Disponível em: <http://mideastafrica.foreignpolicy.com/posts/2011/01/06/obamas_arab_spring>. Acesso em: 15 fev 2014.
3 MASSAD, Joseph. The ‘Arab Spring’ and other American Seasons [A ‘Primavera Árabe’ e outras estações norte-americanas]. Al Jazeera, 29 ago 2012. Disponível em:<http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2012/08/201282972539153865.html>. Acesso em: 15 fev 2014.
4 SOCIAL programmes bolster appeal of Muslim Brotherhood [Programas sociais reforçam o apelo da Irmandade Muçulmana]. IRIN News, 22 fev 2006. Disponível em: <http://www.irinnews.org/report/26150/egypt-social-programmes-bolster-appeal-of-muslim-brotherhood>. Acesso em: 15 fev 2014.
5 REVOLUÇÃO “pós-islâmica” afectará todo o sistema global. Diário de Notícias, 11 março 2011. Disponível em:
<http://www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=1803829&seccao=Europa&page=-1>. Acesso em: 15 fev 2014.
6 ROY, Oliver. Post-Islamic Revolution [Revolução pós-islâmica]. The European Institute, 17 fev 2011. Disponível em: <http://www.europeaninstitute.org/February-2011/qpost-islamic-revolutionq-events-in-egypt-analyzed-by-french-expert-on-political-islam.html >. Acesso em: 15 fev 2014.
7 Sítio oficial da Gamma’at al-ikhwan al-muslimun [Irmandade Muçulmana egípcia]: <http://www.ikhwanonline.com/>. Acesso em: 15 fev 2014.
8 Sítio oficial do Hizb al-Nur [Partido da Luz]: <http://www.alnourparty.org/>. Acesso em: 15 fev 2014.
9 Sítio oficial do Hizb al-Wasat [Partido do Centro]: <http://www.alwasatparty.com/>. Acesso em: 15 fev 2014.
10 Sítio oficial do Hizb al-Benaa wa al-Tanmia [Partido da Construção e do Desenvolvimento]: <http://benaaparty.com/>. Acesso em: 15 fev 2014.
11 EGYPT’S Islamist Parties win elections to Parliament. BBC, 21 jan 2012. Disponível em: <http://www.bbc.com/news/world-middle-east-16665748>. Acesso em: 15 fev 2014.
12 WEDEMAN, Ben; SAYAH, Reza; SMITH, Matt. Coup topples Egypt’s Morsy; deposed president under ‘house arrest’. CNN, 4 jul 2013. disponível em: <http://edition.cnn.com/2013/07/03/world/meast/egypt-protests/>. Acesso em: 15 fev 2014.