Perguntas problematizantes e o seminário socrático na pedagogia inquisitiva

Gibson da Costa

Enquanto professores, podemos nos engajar tanto com a tarefa de fazer perguntas que não investimos muito tempo em analisar por quê e como o fazemos. Mas, se analisássemos as perguntas que fazemos durante uma aula, poderíamos nos surpreender com os resultados encontrados. Provavelmente, descobriríamos que a maioria de nossas perguntas são feitas unicamente para sabermos se um aluno sabe ou não um certo item daquilo que lhe foi “ensinado”. Descobriríamos, assim, que elas carregam uma expectativa de apenas testar a memória de nossos alunos. E esse tipo de perguntas, infelizmente, não se restringe apenas àquelas que lhes são feitas oralmente em aulas, mas incluem, principalmente, aquelas presentes nos tradicionais modelos de provas escritas que muitas vezes aplicamos nas escolas. A boa notícia é que nossas perguntas podem e devem fazer muito mais do que apenas testar a memória dos alunos.

Fazer perguntas é um instrumento essencial tanto para a construção do pensamento quanto das relações humanas. E, na educação, perguntas são indispensáveis. Dentre tantas outras razões, enquanto professores, perguntamos para testar a memória dos alunos, para obter informações, para expressar e estimular interesse e curiosidade, para incentivar a participação, para detectar dificuldades, para encorajar comentários, para desafiar certezas, para questionar asserções, para desempenhar o papel do “advogado do diabo” etc. Fazer perguntas, ao menos no que tange ao professor na pedagogia inquisitiva, é uma habilidade que se baseia em saber decidir sobre o quê e quando perguntar.

Neste texto – uma continuação do tema abordado anteriormente sobre o ensino-aprendizagem inquisitivo –, abordarei o papel desempenhado por um tipo específico de perguntas na pedagogia inquisitiva. O mesmo destina-se àqueles professores da Educação Básica que queiram adotar uma prática de articulação aberta de diferentes pontos de vista por parte dos alunos, especialmente através da utilização de seminários socráticos, especificamente na área das Ciências Humanas e Suas Tecnologias (Filosofia, Geografia, História e Sociologia).

Tipos de perguntas

Na pedagogia inquisitiva, perguntar exige mais do que construir perguntas que possam ser respondidas com uma única palavra, ou simplesmente com “sim” ou “não”. Assim, a ação de perguntar torna-se um processo de questionar, de problematizar. Há diferentes sistemas para a classificação de perguntas, com muitos deles baseando-se nas tradicionais categorias listadas na Taxonomia de Objetivos Educacionais (1956), de Benjamin S. Bloom. Nas ciências humanas, por exemplo, um desses sistemas as categoriza em perguntas que apelam à memória, compreensão, aplicação, análise, síntese e avaliação (classificação de Clegg, Farley, e Curran); outra, as categoriza como sendo de apelo à memória, tradução – i.e., transformação da informação em diferentes formas ou linguagens simbólicas –, interpretação, aplicação, análise, síntese e avaliação (classificação de Norris Sanders).

Aqui, não intenciono lidar com tamanha complexidade tipológica; assim, utilizarei uma classificação didática exageradamente simplificada que categoriza as perguntas em problematizantes e não-problematizantes. Desde já, reconheço a limitação desta tipologia. Utilizo essa classificação simples com meus alunos da educação básica e superior, para ajudar-lhes a avaliar os tipos de perguntas que utilizamos em nossas discussões em sala, e acredito que a mesma possa ajudar-nos, enquanto professores, a começar a refletir sobre o tipo de perguntas que fazemos a nossos alunos em sala. Se, posteriormente, você quiser aprofundar-se no tema, descobrirá que há excelentes pesquisas acadêmicas sobre o papel desempenhado pelas perguntas na educação escolar.

Na tipologia que utilizo especificamente neste texto, os seguintes são os sentidos que atribuo aos termos perguntas problematizantes e perguntas não-problematizantes:

Perguntas problematizantes são aquelas que ajudam a identificar, interpretar e avaliar perspectivas e relações; analisam eventos, tendências e problemas significativos; e reconhecem, interpretam e julgam forças que causam mudanças e contribuem com a continuidade. Com elas, não esperamos respostas específicas, já que as mesmas servem como convite à discussão e ao compartilhamento de múltiplas ideias. Esse tipo de questionamento, ou melhor, de problematização, é possível e necessário em todos os níveis da educação escolar (seja na educação básica ou na superior), e em todos os componentes curriculares. No caso específico das chamadas ciências humanas (Filosofia, Geografia, História e Sociologia – e também Religião), assim como das linguagens e códigos (Língua Portuguesa, Literatura, Arte, e níveis mais avançados de Línguas Estrangeiras), esse tipo de questionamento é indispensável.

Perguntas não-problematizantes são aquelas que buscam dados e informações específicas sobre um determinado tema, podendo ou devendo ser respondidas com “sim/não” ou com detalhes apropriados à expectativa da pessoa que a elaborou. Com este tipo de perguntas, geralmente não abrimos espaço à discussão de ideias ou argumentações discordantes. Apesar de elas não serem úteis a atividades que envolvam discussão de argumentos e ideias, são úteis se o que quisermos for testar se os alunos lembram-se de informações ou dados específicos.

A razão primordial para a ênfase em perguntas problematizantes na pedagogia inquisitiva é porque fazer e responder esse tipo de perguntas oferece um foco para a pesquisa e a investigação, e ajuda a pensar criticamente. Esse tipo de questionamento promove a curiosidade, encoraja a criatividade e leva a mais perguntas. Por serem respondidas de forma “aberta”, isto é, por não possuírem respostas “certas”, encorajam compreensões mais profundas e exigem decisões e julgamentos que possam se apoiar em evidências ou critérios específicos.

Como criar perguntas problematizantes?

Mas, reconhecendo seu valor e importância para a pedagogia inquisitiva, como podemos criar tais perguntas? Há modelos que podem ser seguidos, por aqueles que não estão acostumados a utilizar tais tipos de perguntas em sala, para iniciar a utilização de perguntas problematizantes com seus alunos?

Para refletirmos sobre a tipologia proposta aqui das perguntas em problematizantes e não-problematizantes, permita-me exemplificar com uma experiência real. Numa unidade sobre imigração e identidade nacional, em História dos Estados Unidos, numa de nossas aulas, meus alunos se engajaram num seminário socrático no qual discutiram alguns textos extraídos da imprensa, das leis e de pronunciamentos políticos acerca do papel desempenhado pelo inglês e pelo espanhol naquele país – na verdade, haviam levado seleções de textos escritos selecionados por mim para ler em casa, pesquisaram sozinhos outros textos e, em sala, vimos alguns trechos em vídeo de pronunciamentos políticos. Como costumeiro, nos focamos em debater alguns dos aspectos que eles consideravam importantes nos argumentos utilizados por grupos políticos e movimentos sociais que buscam a oficialização da língua inglesa no âmbito federal.

Aqui, não poderia incluir aqueles textos utilizados como base para nossas discussões, já que esse não é o objetivo deste texto. Mas, importa informar que, por exemplo, a Constituição dos Estados Unidos, diferentemente da brasileira, não estabelece uma língua oficial para o país. Assim, ao menos constitucionalmente, o governo federal dos EUA não pode se negar a oferecer seus serviços em outras línguas aos seus cidadãos que não falem inglês. Lembre-se que há muitas regiões nos EUA onde um grande número de cidadãos não falam inglês – por exemplo, o sul da Flórida, regiões metropolitanas como as de Nova York, Boston, Chicago, Los Angeles; áreas do Novo México, Arizona, Texas, etc. Assim, em diferentes momentos da história do país, tem havido um grande investimento no oferecimento de serviços federais em outras línguas (especialmente espanhol). Entretanto, inúmeros estados têm tornado o inglês sua língua oficial em suas constituições, em resposta ao fluxo migratório especialmente de hispanofalantes; e, especialmente nos últimos anos, muitos grupos têm defendido o mesmo para o governo federal. Todo o conflito em torno do papel do inglês e de outras línguas minoritárias no país tem existido desde a independência das colônias britânicas que formariam os Estados Unidos, ou seja, trata-se dum problema de longa data. Foi sobre isso que tratamos em nossas discussões em sala.

Agora, como exercício, imagine-se naquela turma. Imagine haver levado os textos para casa, lido-os, selecionado algumas reportagens da imprensa e ter assistido aos breves vídeos em sala, preparando-se para a discussão que seguiria. Imagine que tivesse de propor uma pergunta para o início de nosso seminário socrático em sala. Agora, das perguntas que sugiro abaixo, quais, em sua opinião, poderiam ser classificadas como problematizantes (i.e., facilitadoras duma discussão à qual a multiplicidade de ideias fossem bem-vindas) e por quê?

  1. Qual é a língua oficial dos Estados Unidos?

  2. Por que, em sua opinião, não há menção a uma língua oficial na Constituição dos EUA?

  3. O inglês é definido em alguma outra lei como língua oficial dos Estados Unidos?

  4. A Constituição dos EUA deveria declarar o inglês como língua oficial? Por que sim, ou por que não?

  5. Em sua opinião, qual a maior vantagem e/ou desvantagem em a língua inglesa não ser declarada como oficial na Constituição dos EUA?

  6. Quantos cidadãos dos Estados Unidos não falam inglês? Que evidências você pode apresentar para confirmar os números que apresenta?

  7. Até que ponto não declarar uma língua como oficial põe em risco as tradições nacionais de um Estado? Você pode apresentar alguma evidência para sua posição?

  8. Todos os cidadãos norte-americanos falam inglês como língua materna?

Você consegue imaginar a pergunta nº 1 servindo como base para o início bem-sucedido duma discussão crítica numa aula de História ou Sociologia, por exemplo? E o que dizer sobre a questão proposta antes da enumeração das perguntas (…das perguntas que sugiro abaixo, quais, em sua opinião, poderiam ser classificadas como problematizantes […] e por quê?)?

Perceba que o tamanho do enunciado não necessariamente indica que a pergunta levará o aluno a uma reflexão sobre o tema proposto, muito menos a uma discussão de ideias. A pergunta de nº 3, e a dupla pergunta de nº 6, por exemplo, são comparativamente extensas, mas apelam apenas à memória do aluno, exigindo como resposta um dado ou informação presente em algum texto ao qual supostamente tenha tido acesso (texto que poderia ser escrito ou audiovisual, no caso do material que utilizamos de base para aquela discussão).

Note, também, a incidência de por que associado a outras expressões, como em “por que sim ou não?”, e de em sua opinião, ou de expressões semelhantes (como em “até que ponto…?”), nas perguntas que levam o aluno a formular uma opinião própria. Nem sempre, contudo, um “por que?” indica uma pergunta problematizante, já que o mesmo poderia apenas estar fazendo referência a uma resposta que não exija a formulação de opiniões e argumentos próprios. Por exemplo, poderíamos perguntar “Por que nem todos os cidadãos americanos falam inglês?”, e, quase certamente, poderíamos esperar respostas como “porque nem todos nasceram nos Estados Unidos”, ou “porque há muitos imigrantes e filhos de imigrantes no país”, ou ainda, “porque muitas pessoas têm deficiência auditiva e, por isso, não falam inglês”. Nenhuma dessas respostas, contudo, evidencia um esforço crítico por parte do aluno, nem facilita o início duma discussão de ideias.

Lembre-se que, na tipologia simplificada que utilizei aqui, perguntas problematizantes são aquelas que, necessariamente, levam a discussões e ao compartilhamento de múltiplas perspectivas. Assim, os enunciados das perguntas levantadas devem deixar claro que o que se espera dos alunos é que expressem suas ideias, suas perspectivas, com base, por exemplo, nos textos (escritos, pictóricos, audiovisuais etc) que serviram de base para a discussão.

Outras considerações

Algo que devemos sempre ter em mente quando nos engajamos com a pedagogia inquisitiva – especialmente se fazemos uso, por exemplo, de seminários socráticos – é o fato de que o que importa não é o número de perguntas feitas, mas sua qualidade para os objetivos que estabelecemos. Quando fazemos perguntas problematizantes – perguntas que estimulam o pensamento e, consequentemente, levam os alunos a produzir respostas mais longas –, a velocidade das aulas diminui. Isso significa que menos “matéria” é coberta em aulas como essas, apesar de, provavelmente, o que for tratado o ser de forma mais ampla. Ademais, os alunos possivelmente discutirão ideias não previstas pelo professor, o que exige não apenas uma preparação cuidadosa, como também um senso de humildade para reconhecer que não sabemos tudo.

Num seminário socrático com turmas da Educação Básica, por exemplo, alguns cuidados devem ser tomados. Se por um lado, o planejamento é indispensável, por outro não pode servir de “camisa de força” para as discussões em sala. Ao mesmo tempo em que devemos ter questões formuladas previamente para guiar a discussão, também não devemos servir de empecilho aos questionamentos levantados pelos alunos – desde que pertinentes ao tema tratado –, já que é justamente para que desenvolvam essa habilidade questionadora que utilizamos seminários socráticos.

Outro ponto importante a considerar é o da compreensão que o próprio professor tem de sua identidade profissional e do componente curricular que ensina. Se o professor se vê como uma autoridade inquestionável em sala, que exerce a função de “transmissor” de conhecimentos e descreve seu trabalho como sendo “dar aulas”, então, provavelmente, nada do que escrevi até agora fará sentido ou funcionará. Ademais, especialmente no caso das ciências humanas, se também enxerga o componente curricular que ensina de forma dogmática, compreendendo suas próprias perspectivas (digamos, uma escola filosófica, uma perspectiva política, uma tradição sociológica específica etc) como sendo inquestionáveis, facilitar a discussão livre de ideias contradirá sua visão de mundo e, possivelmente, será uma experiência não muito fácil.

O tema do papel desempenhado pelas perguntas no ensino-aprendizagem em geral e, especialmente na pedagogia inquisitiva, tem sido muito pesquisado no campo da Educação nos últimos cinquenta anos. Aqui, quis apenas ajudar meus leitores e leitoras a refletirem um pouco sobre o tema de forma simplificada. Ainda voltarei a este tema no futuro.

Perguntas problematizantes e o ensino-aprendizagem inquisitivo

Gibson da Costa

Conte-me, e esquecerei; mostre-me, e lembrar-me-ei; envolva-me, e entenderei.

(Antigo ditado anglófono)

Lembro-me duma conversa que tive com uma jovem professora de literatura há alguns meses. Eu facilitara um minicurso sobre ensino como facilitação e, ao fim de nosso primeiro encontro (o minicurso durou 5 dias), ela me disse que era muito fácil falar em trazer os alunos para o centro do processo de ensino-aprendizagem, mas que fazer isso era mais difícil do que eu imaginava! Como resposta, disse-lhe que ela se esquecera de considerar três fatos: 1) como ela, eu também ensinava a adolescentes e jovens, então partilhávamos de desafios comuns, e eu já testara os princípios que discutíramos; 2) aquele era o primeiro encontro, e ainda não havíamos discutido as práticas listadas em nosso programa; e, 3) ela talvez não percebera o tipo de atividades que realizáramos naquele primeiro encontro, já que algumas daquelas práticas listadas em nosso programa estavam sendo utilizadas, apesar de ainda não as havermos discutido. Posteriormente, fiquei extremamente feliz quando ela me escreveu, descrevendo sua experiência com algumas daquelas práticas em sala e a transformação que trouxera ao seu trabalho!

Aqui, gostaria de começar a tratar, brevemente, daqueles métodos, estratégias, abordagens etc que, em minha experiência, ajudam-me a tornar os estudantes o eixo central no processo de ensino-aprendizagem, e ajudam-me a transformar-me em facilitador nesse processo. Incluirei alguns dos temas abordados naquele minicurso ao qual fiz referência e que, de acordo com aquela jovem professora, ajudaram-na a transformar positivamente sua atuação e a de seus alunos em sala.

Antes de tudo, um aviso: Por mais que isso implique numa aparente contradição ante o fato de eu sugerir esta ou aquela abordagem didático-pedagógica, não tenho nenhum receio em afirmar que bons e experientes professores conhecem mais suas turmas e suas circunstâncias do que qualquer autor, pesquisador ou observador externo. Eles sabem como suas turmas respondem às suas abordagens pedagógicas, conhecem os contextos nos quais exercem suas atividades profissionais e, por isso mesmo, podem planejar, adaptar e utilizar estratégias que melhor funcionem para suas circunstâncias particulares. Assim, quaisquer sugestões ou interpretações que eu faça dizem respeito às minhas próprias experiências em sala de aula. Elas têm funcionado para mim, sendo adaptadas quando necessário, em meus contextos até hoje. Mas exigem preparação, objetivos claros, planejamento, atenção, paciência, visão de longo prazo etc.

Discutirei, hoje, sobre um conjunto de abordagens ao processo de ensino-aprendizagem que traduzo, em português, como ensino-aprendizagem inquisitivo. O mesmo tem sido, há muito, objeto de discussão e uso na Educação Básica nos países anglófonos, especialmente nos Estados Unidos, e é parte integrante de minha herança escolar – tanto como estudante quanto como professor. E, provavelmente, não será completamente estranho à grande parte daqueles que estudaram em universidades brasileiras. Mas, do que se trata?

O ensino-aprendizagem inquisitivo é um conjunto de abordagens didático-pedagógicas que se focam em torno de questões geradas ou propostas coletivamente. Ao longo do processo, são dadas oportunidades para que os alunos ofereçam respostas a essas questões por meio da busca e organização de evidências, dados e informações advindas de diferentes fontes. Eles analisam essas evidências, dados e informações, levando em consideração as diferentes interpretações e perspectivas às quais foram expostos – apresentadas por outros alunos, por outro texto etc. A partir disso, formam opiniões, fazem julgamentos e chegam às suas próprias conclusões com base naquelas evidências, dados e informações. E, ao final, comunicam aos seus colegas suas conclusões etc.

Parece extremamente simples, mas não se engane. Esse tipo de ensino-aprendizagem exige um real deslocamento do foco em sala: do professor para os alunos. Aqui, não é o professor que domina as aulas, com alunos ouvindo suas explicações passivamente. Não! O professor fala menos e ouve mais; e, quando fala, explica menos e questiona/provoca mais. Sua voz não domina os ares da sala. A dos alunos, sim. Isso exige uma mudança tanto por parte do professor, quanto da dos alunos. O professor atua como um facilitador. Os alunos falam mais, mas sua fala deve ser informada e articulada – isto é, suas questões ou afirmações são baseadas nas evidências, dados e informações aos quais tiveram acesso. Trata-se duma verdadeira mudança da cultura escolar. Mas é possível – especialmente nos componentes curriculares da área de Ciências Humanas e Suas Tecnologias (nas quais é possível haver um nível maior de subjetividade nas discussões), mas não apenas nela.

Não há, entretanto, um único molde desse tipo de ensino-aprendizagem. Como escrevi um pouco acima, trata-se de “um conjunto de abordagens”, ou seja, uma variedade de formas para se levar a cabo um molde inquisitivo de ensino-aprendizagem. Spronken-Smith, Walker, Batchelor, O’Steen e Angelo (2012), pesquisadores da área, apresentam diferentes formas para categorizar esse tipo de ensino-aprendizagem. Em uma delas, por exemplo, categorizam-na com base na distinção entre três modos de inquisição (o sentido do termo “inquisição” aqui é averiguação metódica e rigorosa; inquirição; investigação; pesquisa – não o confunda com o termo como usado em “a Santa Inquisição”; há uma razão estética para eu escolher o termo como tradução do inglês “inquiry”):

  • inquisição estruturada → na qual o professor oferece a questão, além de instruções sobre como se deve explorá-la;

  • inquisição guiada → na qual o professor estimula a investigação com questões, mas são os estudantes que decidem como explorá-las;

  • inquisição aberta → na qual os alunos formulam as questões, identificam o que precisa ser conhecido, coletam e analisam as evidências, dados e informações, comunicam suas conclusões e avaliam a pesquisa.

Nesse tipo de classificação, fica claro que poderíamos utilizar atividades apropriadas ao tipo de turma e à experiência do professor. Pessoalmente, tenho utilizado a aqui chamada inquisição aberta com mais frequência, em grande parte porque meus alunos já conhecem a abordagem e estão familiarizados com ela, e a mesma já ser parte de meu imaginário didático-pedagógico e de meu repertório profissional (fazendo com que me sinta mais confortável com a autonomia dos alunos e o desafio que isso pode representar). Para quem tentará pela primeira vez, ou aqueles que não estão tão familiarizados com uma grande autonomia por parte dos alunos, talvez não devessem começar com uma abordagem de inquisição aberta, optando por dar mais experiência a seus alunos (e a si mesmos) antes de dar-lhes tamanha responsabilidade – alunos acostumados ao ensino expositivo tradicional tendem a sentir-se desconfortáveis com o ensino-aprendizagem inquisitivo por algum tempo, até que se acostumem.

Uma preocupação comum que tenho ouvido de vários professores é sobre o que fazer se alguns alunos não participam dos debates, estando sempre calados. É importante ter consciência de que nem todos os alunos participam oralmente. Eles não precisam falar para estarem participando. Muitas vezes, a audição atenta é sua forma de participação. Alguns anotam o que ouvem. Logo, nunca me preocupo simplesmente pelo fato de alguns alunos não se engajarem em discussões orais. Esforço-me para conversar com eles fora da sala de aula, para ouvir suas opiniões (o silêncio de alguns em sala pode indicar que não se sentem confortáveis com a discussão em grupo, mas, se abordados da forma certa, partilham suas opiniões conosco fora de sala). Já tive turmas nas quais alguns alunos nunca disseram nada em sala, mas em seus trabalhos escritos – ou em seu vídeo, por exemplo –, demonstravam que haviam compreendido as discussões e aprendido com as ideias de seus colegas. Da mesma forma, há sempre aqueles dois ou três alunos que dominam todas as discussões – quando esses parecem estar tomando o espaço de outros, intervenho de forma elegante, aproveitando-me de algum comentário para fazer uma pergunta a alguém específico. Respeitar diferenças inclui reconhecer as diferenças de personalidade de nossos alunos – uma preocupação exacerbada com disciplina pode nos fazer esquecer que os adolescentes não são todos iguais.

Apesar de a carga de preparação exigida de professores (e dos alunos) ser grande para este tipo de ensino-aprendizagem, há inúmeras vantagens, especialmente no que concerne às Ciências Humanas e Suas Tecnologia (Filosofia, Geografia, História e Sociologia) na Educação Básica. O processo inquisitivo promove uma diversidade de vozes na sala de aula, criando oportunidades para que os alunos expressem e compartilhem suas opiniões. Ademais, o engajamento neste processo ensina-os a encontrar, reconhecer, avaliar e utilizar evidências; além de ajudá-los na construção ou fortalecimento de sua autoconfiança.

Abaixo, listo, brevemente, algumas sugestões para a utilização da inquisição em sala de aula, resumindo aquilo que discuti com os cursistas que participaram no minicurso que facilitei e ao qual me referi no início deste texto.

Questionando:

  • faça perguntas abertas (sem “certo”/”errado”);

  • convide e seja receptivo a diferentes interpretações;

  • faça uso do questionamento para focar o debate;

  • pergunte aos alunos o que um certo texto ou fonte significa “para eles” individualmente (Ex.: O que, na sua opinião, isso significa? / O que isso significa para você?).


Como encorajar a voz dos alunos:

  • permita que os alunos dirijam a discussão;

  • use seus comentários para formular questões;

  • encoraje respostas que sejam pessoais e analíticas.


Como encorajar múltiplas respostas:

  • esteja atento(a) às diferenças de opinião;

  • repita os pontos de vista para enfatizar as discordâncias;

  • aguce a análise por meio da reformulação do debate;

  • lembre-se que não há conclusões claras, apenas argumentos claros.

Como construir uma cultura de respeito:

  • não permita ataques pessoais;

  • evite respostas como “certo!” ou “errado!”;

  • arbitre as discussões de forma justa e equitativa.


Como apoiar alunos silenciosos/tímidos:

  • lembre-se que nem todos os alunos participam através da fala;

  • mantenha diálogo com os alunos fora da sala de aula;

  • organize discussões em grupos menores para construir sua confiança.

Posteriormente, relatarei uma aula específica para apontar como tudo isso pode ser utilizado numa aula real.

REFERÊNCIAS

SPRONKEN-SMITH, R.; WALKER, R.; BATCHELOR, J.; O’STEEN, B.; ANGELO, T. Evaluating student perceptions of learning processes and intended learning outcomes under inquiry approaches. In: Assessment & Evaluation in Higher Education, 37, vol. 1, 2012, p.57-72.

Autoridade hierarquizada versus autonomia na educação formal

Poucas instituições são tão hierarquizadoras quanto as instituições de ensino oficial – sejam elas da Educação Básica ou da Educação Superior. Independentemente das perspectivas agógicas (isto é, pedagógicas, hebegógicas, adagógicas, gerentogógicas etc) adotadas pela instituição ou pelo professor, a educação formal sempre se baseia na dependência dos estudantes para com um eixo hierárquico de autoridade – autoridade esta que pode se centrar na figura do próprio professor, dos textos escolares/acadêmicos, das tradições que modelam a sociedade, etc. O fato é que, por mais que neguemos isso, a educação institucionalizada, de modo geral, faz muito pouco para ajudar os estudantes a se tornarem realmente autônomos – e isso desde a mais tenra idade.

Lembro-me de quando comecei a ensinar numa determinada escola pública nova iorquina há cerca de duas décadas atrás. Discutíamos um de meus temas favoritos em História dos EUA – o chamado “Movimento pelos Direitos Civis” (o segundo, de meados do século XX) –, e três de meus alunos fizeram uma reclamação formal a meus superiores por eu os estar “forçando” a ler outras coisas e a ouvir testemunhos de visitas que trouxe à sala, enquanto deixava de lado o livro didático de História. Seu argumento era que eu estava tirando deles a oportunidade de estudarem o “currículo oficial” e se prepararem para as provas aplicadas pelo Departamento de Educação do Estado (felizmente, meus superiores discordaram da opinião daqueles alunos!).

Aquele incidente me deixou extremamente perturbado por algum tempo. Perturbei-me porque a reclamação, aparentemente, partira dos próprios alunos, e não de seus pais. Mesmo sendo apenas três deles – os considerados mais brilhantes da turma –, aquilo mostrava a compreensão que tinham do que deveríamos fazer em sala: eles seriam apenas receptores dum conhecimento acabado, e eu não passava dum transmissor. Ficava me perguntando o que tínhamos (a escola) feito com aqueles adolescentes para que rejeitassem a oportunidade de chegarem às suas próprias conclusões por meio do conhecimento de outras opiniões que podiam diferir do que o livro didático lhes oferecia. Aqueles estudantes, no final das contas, só estavam seguindo o que a escola os adestrara a fazer: sigam as regras, repitam o que “aprenderam”, e tudo estará bem!

Aquele incidente, para mim, retrata bem o efeito que a mentalidade autoritária pode ter na percepção que estudantes têm de seu valor e capacidades – e isso ocorre igualmente na Educação Superior. Frequentemente, a escola/universidade parece treinar pessoas para que sejam excelentes repetidores do que já foi dito e feito, mas incapazes de criar algo novo a partir daquilo que supostamente aprenderam. Nas humanidades, por exemplo, professores se esforçam para ensinar o que, para eles, é certo; mas não esperam de seus estudantes a capacidade de apresentarem um alto nível de discordância – isto é, uma discordância que apresente argumentos bem fundamentados, de acordo com a capacidade e experiência do estudante.

Esse problema da autoridade na educação me faz lembrar da questão do 2+2. Como gosto de dizer, 2 + 2 nem sempre é igual a 4. Esse resultado sempre dependerá da escala de medida que utilizamos (se nominal, ordinal, intervalar, ou de razão). E apenas nas escalas intervalar e de razão o resultado será 4. O motivo pelo qual pensamos que 2+2 é sempre igual a 4 é porque, na escola, a maioria de nós apenas utilizou a escala de razão.

Se nem com a matemática podemos atingir um produto que sempre será inquestionavelmente correto, o que dizer das humanidades?… É justamente por isso que prefiro que os estudantes sejam capazes de chegar a conclusões próprias (mesmo que pessoalmente não concorde com elas), construindo seus argumentos por meio da análise das evidências, comparando seus argumentos com aqueles que a instituição escolar lhes impõe, do que ensiná-los a aceitar a “tradição” sem questioná-la. Quem sabe um dia as escolas e as universidades não se tornarão templos da autonomia, espaços onde discordar construtivamente seja mais importante que marcar a opção “correta” em provas padronizadas… Sonho com esse dia!

Gibson

O que significa chamar o professor de “facilitador”?

Gibson da Costa


Nossas escolhas metodológicas são, em minha opinião, uma escolha política. Assim, a forma como ensinamos, e a forma como nos relacionamos com os estudantes em sala (e fora dela), é uma expressão da forma como compreendemos tanto o ser humano quanto a sociedade – um reflexo de nosso imaginário antropológico e político. Isso faz com que eu sempre me preocupe quando vejo uma sala de aula organizada em fileiras direcionadas ao professor, com ele ocupando uma posição magistral diante de seus alunos: o que essa organização diria sobre o imaginário antropológico e político da escola e do professor?

Nossa sociedade, no século XXI, precisa de jovens que possam resolver problemas, tomar decisões, pensar criativamente, comunicar ideias de forma eficaz, e trabalhar eficientemente independentemente e em grupo. O tipo de professor que funciona como “transmissor” de conhecimento por meio de aulas exclusivamente expositivas, falando duma posição de autoridade exclusiva em sala de aula é insuficiente para preparar o tipo de jovens que nossa sociedade precisa.

No mundo cada vez mais complexo e fluido no qual vivemos, os jovens precisam de oportunidades para desenvolverem capacidades e habilidades pessoais, associadas aos conhecimentos e compreensões previstos nos programas curriculares, como parte de sua educação escolar. Para tal, o professor precisa desenvolver a habilidade de engajar seus alunos ativamente no processo de ensino-aprendizagem, tornando-o uma experiência mais relevante, apreciável e motivadora. Pessoalmente, essa é uma escolha metodológica que espelha minhas próprias compreensões sobre o ser humano e sobre a vida em comunidade – meu imaginário antropológico e político.

Esse processo de ensino-aprendizagem no qual os alunos participam mais ativamente tem implicações diretas para o papel desempenhado pelo professor em sala de aula. Há, aí, uma mudança daquele conhecido modelo centrado no professor para uma abordagem centrada no aluno. Há, também, uma mudança do ensino-aprendizagem centrado no produto para um ensino-aprendizagem centrado no processo.

Colocar o aluno na posição central no processo de ensino-aprendizagem não significa, diferentemente do que se poderia pensar, diminuir a importância do professor nesse processo. Como afirma Libâneo,

O professor é aqui um parceiro mais experiente na conquista do conhecimento, interagindo com a experiência do aluno. O papel do ensino – e, portanto, do professor – é mediar a relação de conhecimento que o aluno trava com os objetos de conhecimento e consigo mesmo, para a construção de sua aprendizagem. O papel do ensino é possibilitar que o aluno desenvolva suas próprias capacidades para que ele mesmo realize as tarefas de aprendizagem e chegue a um resultado.1


Poderíamos ilustrar essa mudança de abordagens por meio do uso de uma tabela. Do lado esquerdo, veremos aquilo que poderíamos chamar de abordagem magistral (porque centrada na autoridade exclusiva do professor) do processo de ensino-aprendizagem, e, do lado direito, aquilo que nomearemos abordagem democrática (porque centrada na participação comunitária de todos os envolvidos) do processo de ensino-aprendizagem – como a mudança de papel do professor implica, também, uma mudança de papel do aluno, dividirei a lista em duas partes:

PAPEL DO PROFESSOR

De uma “abordagem magistral”

Para uma “abordagem democrática”

Centrada no professor

Centrada no aluno

Centrada no produto

Centrada no processo

Professor é “transmissor do conhecimento”

Professor é “organizador do conhecimento”

Professor é o que faz, o que tem as respostas

Professor facilita a aprendizagem

Foco na matéria/componente curricular específico

Foco numa aprendizagem holística

PAPEL DO ALUNO

De uma “abordagem magistral”

Para uma “abordagem democrática”

Recipiente passivo do conhecimento

Aprendiz ativo e participativo

Centrada na resposta a perguntas

Centrada no questionamento

Receptor da “transmissão” do professor

Assume responsabilidade por sua própria aprendizagem

Compete com outros alunos

Colabora com outros para sua aprendizagem

Quer dominar a discussão, sempre tendo razão

Ativa e participativamente, ouve às opiniões dos outros

Aprendiz de matéria/componentes individuais

Conecta e inter-relaciona sua aprendizagem


Mas o que significa, afinal de contas, chamar o professor de
facilitador?

Num ambiente escolar onde se opta por uma abordagem democrática do processo de ensino-aprendizagem – isto é, uma abordagem que enfatiza uma participação ativa dos estudantes nesse processo –, o professor apoia seus alunos em seus esforços para aprenderem e desenvolverem habilidades tais como avaliar evidências, negociar, tomar decisões informadas, resolver problemas, trabalhar independentemente ou em grupo, etc. Para isso, a participação dos alunos em seu próprio aprendizado é essencial.

Algumas vezes, o professor-facilitador terá de assumir um papel ou uma função específica para melhorar a aprendizagem na sala de aula, ou para desafiar seus alunos para que pensem de forma diferente. Alguns desses papéis poderiam incluir:

  • facilitador (aparentemente) “neutro”: leva o grupo a explorar diferentes pontos de vista sem explicitar sua própria opinião (tendo-se em mente, obviamente, que absolutamente ninguém encontra-se numa posição de “neutralidade”);

  • advogado do diabo: o professor deliberadamente adota uma posição oposta para confrontar os alunos, independentemente de sua própria visão;

  • posições explícitas: o professor declara sua própria posição, para que o grupo, assim, conheça suas opiniões;

  • aliado: o professor apoia a visão de um subgrupo ou indivíduo (geralmente uma minoria);

  • posição oficial: o professor informa à turma a posição oficial sobre certos temas, por exemplo, a Constituição Federal, as leis, certas organizações etc – um exemplo: “nesta classe não aceitaremos insultos racistas, sexistas, homofóbicos, porque além de serem descorteses, violam a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Constituição Federal e as leis brasileiras”;

  • desafiador: o professor, através de questionamentos, desafia as opiniões sendo expressas pelos alunos e encoraja-os a justificarem suas posições;

  • provocador: o professor apresenta um argumento, ponto de vista ou informação que ele sabe provocará a turma, e nos quais ele não necessariamente acredita, mas por serem crenças autênticas de outros indivíduos ou grupos, ele os apresenta convincentemente;

  • ator: o professor torna-se uma pessoa ou personagem particular (por exemplo, um político, comunicador, ou líder religioso), apresentando à classe seus argumentos ou opiniões.


Os papeis listados acima apresentam suas vantagens e suas desvantagens, e é deveras importante considerá-las quando do planejamento de nossas aulas. Algumas perguntas sobre as quais poderíamos pensar incluem:

  • Como me sentirei se assumir este papel?

  • Posso pensar em áreas de minha prática atual nas quais alguns desses papeis poderiam ser desempenhados?

  • Já assumo alguns desses papeis inconscientemente?

  • Há alguma necessidade específica em minha turma que deva ser considerada?

  • Que estratégias posso usar para lidar com problemas difíceis e desafiadores que possam surgir?

  • Já decidi exatamente quais são os objetivos da aula?

  • Etc, etc, etc…


É importante lembrar-se, contudo, que para que nos tornemos facilitadores em sala de aula, devemos nos engajar num cuidadoso trabalho de planejamento. Em minha própria experiência, assumindo diferentes papeis em sala – de acordo com meus objetivos –, isso é ainda mais importante. É só por meio dum cuidadoso planejamento que podemos saber o que poderia ou não funcionar com nossas turmas, nossos objetivos, o tema que trataremos em sala etc; ajudando, assim, nossos alunos a assumirem eles mesmos um papel mais ativo em sua aprendizagem.

 

Referências

1LIBÂNEO, José Carlos. Didática: velhos e novos temas. [S/l]: Edição do Autor, 2002., p.5.