Gerações de pesquisadores ampliam a narrativa da Independência

Júlia Cherem Rodrigues

Os acontecimentos determinantes da Independência ainda transcorriam quando suas primeiras interpretações começaram a ser publicadas. Nos dois séculos que se passaram desde então, assim como a maneira de ler os episódios de 1822, também o perfil de seus intérpretes se transformou gradativamente. Essa história é contada no Dicionário da Independência: História, memória e historiografia, editado pelos historiadores da Universidade de São Paulo (USP) João Paulo Pimenta e Cecilia Helena de Salles Oliveira. Entre seus 765 verbetes, o dicionário contém quatro dedicados à tradição historiográfica, além de 39 sobre autores, vivos e mortos (ver reportagem “A Independência do Brasil de A a Z”).

Entre os intérpretes da Independência constam escritores e ensaístas célebres, como Euclides da Cunha (1866-1909), Joaquim Nabuco (1849-1910) e Florestan Fernandes (1920-1995); dois homens agraciados com títulos de nobreza durante o Império; oito integrantes da Academia Brasileira de Letras, alguns dos quais fundadores da instituição. São 37 homens, nove deles estrangeiros. As duas mulheres incluídas pesquisaram e escreveram na segunda metade do século XX: as historiadoras Emília Viotti da Costa (1928-2017) e Maria Odila Dias.

Nas primeiras décadas do século XIX, escrever sobre a Independência tinha um objetivo concreto: legitimar o surgimento do novo país, segundo Rafael Fanni, autor do verbete “Historiografia da Independência na Independência”. Três nomes se destacam nesse primeiro momento. Hipólito José da Costa (1774-1823), proprietário daquele que é considerado o primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense (1808-1822), defendia a atuação dos jornais na produção de uma “história contemporânea”, diz Fanni. Para fugir da censura, Costa editou seu jornal em Londres. Morto em 1823, não chegou a receber o convite do governo brasileiro para ser cônsul do novo país na capital britânica. Hoje, é considerado o patrono da imprensa brasileira.

José da Silva Lisboa (1756-1835), considerado o primeiro grande economista brasileiro, foi também pioneiro nos escritos sobre a formação do país. Em 1818, publicou Memória dos benefícios políticos do governo de D. João VI (Impressão Régia), em que interpretava a vinda da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, como marco de avanço civilizatório na colônia. Seu principal objetivo era defender a monarquia e sua presença no país. Nessa toada, em 1825 Lisboa lançou o livro Introdução à história dos principais sucessos do Império do Brasil (Typographia Imperial e Nacional). Lisboa, que teve participação importante na abertura dos portos brasileiros após 1808, recebeu de dom Pedro I (1789-1834) o título de Visconde de Cairu (ver pesquisa FAPESP n° 313 ).

O terceiro nome a se destacar é estrangeiro. Ainda antes da Independência, entre 1810 e 1819, o inglês Robert Southey (1774-1843) publicou em Londres, em três volumes, sua History of Brazil (Longman, Hurst, Rees, Orme, and Brown), que teve grande influência sobre o modo como os brasileiros entendiam o nascimento de seu Estado nacional. Filho de comerciantes, Southey era poeta e funcionário público. Sua obra sobre o Brasil fazia parte de um projeto mais amplo, que trataria de todo o Império português, mas a empreitada jamais foi realizada. O britânico via a colonização “como empreendimento civilizador”, conforme o historiador André da Silva Ramos, da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), no verbete sobre Southey.

No século XIX, prevaleceram as análises que têm os eventos do Rio de Janeiro e de Lisboa como foco. Os autores do período eram sobretudo homens ligados à aristocracia ou ao Estado. O mais relevante foi Francisco Adolfo de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro (1816-1878), filho de um engenheiro alemão contratado para construir os altos-fornos da Real Fábrica de Ferro Ipanema, em Sorocaba (SP). Varnhagen passou a juventude em Portugal e chegou a lutar na Guerra Civil Portuguesa (1832-1834) ao lado de dom Pedro I. Sua História geral do Brasil (Laemmert) foi publicada entre 1854 e 1857, mas sua História da Independência do Brasil (RIHGB) só foi impressa postumamente, ao longo de 1916 e 1917. Como diplomata, Varnhagen consultou arquivos em Portugal, Espanha e outros países europeus. Costumava deixar uma marca pessoal nas obras que consultava: um “V”, a lápis, na margem da página.

A instituição mais importante para os estudos da formação do Brasil era o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838 (ver reportagem “Guardando a memória e escrevendo a história do Brasil”). A historiadora Lucia Maria Paschoal Guimarães, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), autora do verbete “História da Independência no século XIX”, informa que “na cerimônia de inauguração do instituto, um dos seus fundadores, o cônego Januário da Cunha Barbosa, lamentou que os estudos de história pátria estivessem entregues à pena de autores estrangeiros”. No entanto, a comissão prevista para recolher depoimentos sobre o período da Independência jamais foi instalada.

Século XX
Ao longo do último século, as leituras da Independência ganharam em diversidade e se descolaram da abordagem meramente política. A carreira de historiador se profissionalizou paulatinamente, sobretudo nas universidades. O perfil dos autores continuou predominantemente masculino e o foco de suas leituras seguiu voltado principalmente para os eventos políticos que ocorriam no Rio e em estados adjacentes, sobretudo São Paulo e Minas Gerais. Só na segunda metade do século a relevância de episódios como as guerras ao norte e ao sul ganharam destaque. Ao mesmo tempo, a separação do Brasil de Portugal passou a ser analisada por ângulos variados, com trabalhos de economistas, diplomatas e cientistas sociais.

Um momento decisivo ocorreu em torno do centenário da Independência, em 1922, cujas celebrações incluíram a reedição da História geral de Varnhagen, revisada por historiadores sob a coordenação de Capistrano de Abreu (1853-1927), além da publicação de documentos do período. Diferentemente de muitos de seus predecessores, o historiador cearense não vinha da aristocracia ou da classe alta – Abreu defendeu ideias liberais, abolicionistas e republicanas nas últimas duas décadas do Império, o que não o impediu de lecionar no Colégio Pedro II. Como funcionário da Biblioteca Nacional, publicou artigos argumentando contra a excessiva importância que a historiografia dedicava ao papel de dom Pedro I e seu pai, dom João VI (1767-1826), defendendo que as raízes da nacionalidade estavam nas bandeiras paulistas (século XVI), na guerra contra os holandeses em Pernambuco (século XVII) e na Inconfidência Mineira (1789).

A etapa seguinte da historiografia tem início na década de 1930, período de industrialização e urbanização, em que floresceram os “intérpretes do Brasil”, teóricos de formação diversa que buscaram explicar o país e sua história com visada ampla e ênfase em temas socioeconômicos. Entre eles destacam-se os sociólogos paulistas Caio Prado Junior (1907-1990) e Sergio Buarque de Holanda (1902-1982), além do jurista gaúcho Raymundo Faoro (1925-2003).

Prado Junior era militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e foi o primeiro grande intérprete da formação do Brasil a aplicar o método do materialismo histórico. Em sua obra, sobretudo no livro Evolução política do Brasil (Brasiliense, 1933), a Independência aparece como “aprendizado da revolução social, profunda, e não o de uma revolução considerada superficial, estritamente política”, escreve o historiador Paulo Henrique Martinez, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), autor do verbete sobre o sociólogo.

Conhecido pelo ensaio que deu origem ao livro Raízes do Brasil (José Olympio, 1936), Buarque de Holanda também se dedicou à Independência, como diretor da coleção História Geral da Civilização Brasileira (Difel), na década de 1960. No volume O processo de emancipação, que tratava do Brasil monárquico, o autor que foi bastante influenciado por um dos fundadores da sociologia moderna, o alemão Max Weber (1864-1920), analisa o movimento de libertação política do país.

Faoro, eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL) em 2000 e presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entre 1977 e 1979, durante a ditadura militar (1964-1985), também teve grande influência de Weber e dedica parte de Os donos do poder (Globo, 1958) à Independência. O período que vai de 1808 a 1824 é analisado pelo prisma do conflito entre a burocracia do Estado português e os produtores rurais do Brasil. A separação, porém, é vista não como revolução, mas como “transação”. Em sua concepção, em torno do imperador, proprietários de terra, comerciantes pouco vinculados a Portugal e alguns funcionários públicos teriam entrado em acordo para constituir o novo país.

No século XX, a Independência esteve, ainda, sob a lupa de pesquisadores estrangeiros. A partir da década de 1930, o americano Alan Manchester (1897-1983) escreveu uma série de obras importantes sobre o Brasil, como os artigos “The rise of the Brazilian aristocracy” (1931), “The paradoxal Pedro, first emperor of Brazil” (1932), “The recognition of Brazilian Independence” (1951) e “A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro” (1967). Seu principal livro é Preeminência inglesa no Brasil (Brasiliense, 1933), que enfatiza as relações internacionais do país nascente. Além da carreira de professor na Universidade Duke, nos Estados Unidos, Manchester foi adido cultural da embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro.

Outro importante autor estrangeiro é Richard Graham, norte-americano, filho de missionários nascido em Planaltina (GO), que começou a publicar sobre o tema na década de 1960. Para Henrik Kraay, autor do verbete a respeito de Graham, seu livro Escravidão, reforma e imperialismo (Perspectiva, 1979) “moldou a história social da escravidão que surgia nas décadas de 1970 e 1980”. Graham foi professor de diversas universidades nos Estados Unidos e se aposentou em 1999.

Na década de 1960, a historiadora Emilia Viotti da Costa (1928-2017) foi uma das primeiras autoras a se destacar nesse universo predominantemente masculino. Segundo o historiador Rafael de Bivar Marquese, da USP, autor do verbete dedicado a ela, sua principal contribuição foi integrar a história econômica e social com a história política, em ensaios como “Introdução ao estudo da emancipação política” (1966) e “A consciência liberal nos primórdios do Império” (1967). Viotti da Costa “procurou examinar as mediações entre o tempo longo das estruturas e o tempo curto dos eventos”, escreve Marquese, referindo-se aos processos econômicos e sociais, por um lado, e às plataformas políticas de grupos sociais, por outro.

A década de 1970 constitui um momento relevante para a historiografia da Independência. Em 1972, a celebração do sesquicentenário foi capitaneada pela ditadura militar e, contrastando com o caráter ufanista da comemoração oficial, nas universidades adotou-se um tom crítico, olhando para os eventos do passado com vistas a entender o presente, conforme a historiadora Wilma Peres Costa, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), autora do verbete “Historiografia da Independência no século XX”.

Esse foi o contexto da publicação da coletânea 1822: Dimensões (Perspectiva, 1972), coordenada pelo historiador Carlos Guilherme Mota, mais tarde fundador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. O livro forneceu um amplo panorama de visões sobre os eventos do período, com participação de Viotti da Costa, Fernando Novais (USP) e Ilmar Matos, então na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), e estrangeiros, como os franceses Frédéric Mauro (1921-2001) e Jacques Godechot (1907-1989) e o português Joel Serrão (1919-2008). A segunda parte da coletânea, denominada “Das Independências”, dedica cada capítulo a uma região do país, dando impulso à diversificação das perspectivas de análise, para além do tradicional olhar centrado no Sudeste do Brasil.

O capítulo “A interiorização da metrópole”, da historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias, que foi professora da USP e da PUC de São Paulo, obteve destaque particular. Nele, Dias argumenta que a historiografia da Independência dava pouca importância ao comportamento das elites brasileiras e apresenta essas elites como herdeiras de interesses da Coroa portuguesa. No início da carreira, Dias foi professora assistente na cadeira de Sergio Buarque de Holanda na USP. Mais tarde, desenvolveu influentes trabalhos de história social, como o livro Quotidiano e poder (Brasilense, 2001), em que explorou o papel de pessoas, sobretudo mulheres, que os estudos tradicionais deixavam de lado, incluindo “vendedoras de tabuleiros, lavadeiras em rios e chafarizes, aguadeiras”, escreve o historiador Elias Thomé Saliba, da USP, no verbete a ela dedicado.

Desde então, conforme escreve Peres Costa, a ideia da revolução perdeu espaço parcialmente para a de construção do país, e os estudos sobre a Independência passaram a tratar de temas variados: da condição social de mulheres, escravizados e indígenas à situação econômica das províncias. A digitalização de importantes acervos, como o da Torre do Tombo, em Portugal, e, no Brasil, o da Biblioteca Nacional, o do Arquivo Nacional e outros, tem facilitado o acesso a documentos e à pesquisa com dados, atraindo o interesse de economistas e cientistas sociais para a investigação das diferentes dimensões da dissolução do império português. Os verbetes do Dicionário da Independência, por exemplo, não foram escritos apenas por historiadores. Entre seus autores há cientistas políticos, economistas, museólogos, historiadores da arte e antropólogos.

Pimenta e Salles Oliveira, no verbete “Historiografia da Independência: temas atuais”, destacam dois grupos de estudos atuantes neste século. Um é o Centro de Estudo dos Oitocentos, fundado em 2002 pelos historiadores José Murilo de Carvalho, Gladys Ribeiro, entre outros, sediado na Universidade Federal Fluminense (UFF).  O outro é temático “Brasil: fundação do Estado e da nação”, criado em 2001 pelo historiador István Jancsó (1938-2010) e apoiado pela FAPESP entre 2004 e 2009. Segundo Peres Costa, que foi subcoordenadora do grupo, seu objetivo era reinterpretar temas como revolução, crise, Estado e nação, centrais no livro 1822: Dimensões. A principal inspiração foi a história dos conceitos, corrente de origem alemã que estuda a transformação histórica dos termos.

Nesse período, também se consolidou a tendência a uma historiografia mais diversa, que não olha apenas para os eventos políticos e econômicos na corte dos Bragança e nas elites agrárias. Os jovens pesquisadores demonstram grande interesse pelo papel de minorias, como as mulheres, os povos indígenas e a população negra, além dos episódios ocorridos nas antigas províncias de norte a sul do país.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.



Os alicerces de uma nação

Fotografia depois da assinatura, em 1903, do Tratado de Petrópolis, quando a anexação do Acre foi oficializada

Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural da Fundação Elias Mansour

Tema de debates acadêmicos desde o século XIX, a coesão do território brasileiro depois da Independência foi, durante décadas, analisada em contraposição aos processos da América hispânica, que derivaram na formação de 18 países. Nessa ampla trajetória de pesquisas, a escravização de africanos, os sistemas administrativos coloniais, o processo de formação das respectivas identidades nacionais e a definição dos territórios serviram de base para evidenciar as diferenças entre os destinos das colônias. Tal enfoque começou a mudar em meados do século XX. A tônica dos estudos atuais tem sido matizar essas comparações, evidenciando as divergências que marcaram a constituição do Brasil e as tentativas de ruptura com o governo de dom Pedro I (1798-1834).

Veja também:
• O suplemento especial Outras faces da Independência

• Tudo que já publicamos sobre o bicentenário da Independência do Brasil

“No início do século XIX, a região que atualmente chamamos de Brasil era composta por várias partes mais ou menos conectadas e a administração colonial não controlava todas elas. Até pelo menos 1825, o território nacional não estava assegurado, por causa dos movimentos contrários à emancipação de Portugal”, argumenta a historiadora Andréa Slemian, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Segundo ela, a historiografia tem se dedicado a demonstrar que a imagem da existência de um território coeso foi uma narrativa construída no período imperial, atravessou a República e chegou até os dias atuais. “Políticos, historiadores e literatos valorizaram a perspectiva da grandeza e união do território nacional e opunham essa característica à fragmentação da América espanhola”, comenta a historiadora Maria Ligia Coelho Prado, da Universidade de São Paulo (USP).

Arquivo NacionalMapa indica o atual território do Acre, então designado como “região litigiosa”Arquivo Nacional

Na mesma toada, o historiador Marcelo Cheche Galves, da Universidade Estadual do Maranhão (Uema), observa que, especialmente no século XIX, a narrativa histórica valorizava a unidade territorial do país. Como exemplo dessa tendência, ele aponta os textos do historiador, militar e diplomata brasileiro Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), enfatizando a visão do Brasil como “herdeiro de Portugal” e a Independência como resultante de uma “cisão no seio da família portuguesa”. O diplomata, historiador e bibliófilo Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) chegou a utilizar a expressão “desquite amigável” ao se referir à Independência. “Essas ideias formaram a base de nossa historiografia, causando reflexos no desenvolvimento desse campo do conhecimento”, sustenta Galves.

Na década de 1970, por intermédio de estudos como os do historiador Carlos Guilherme Mota, da USP, essa perspectiva começou a mudar. Mota passou a analisar a Independência a partir de elementos como as apropriações do ideário iluminista em projetos emancipacionistas de colonos locais, afirmando que o Brasil, ainda na década de 1970, era dependente de metrópoles europeias. A reflexão aprofundou-se a partir das pesquisas dos historiadores Maria Odila da Silva Leite, nos anos 1970, e István Jancsó (1938-2010), também da USP, no início do século XXI. Ambos defenderam que é preciso pensar “as independências” do Brasil, no plural. “Em 1972, ano em que foram celebrados os 150 anos da emancipação, o governo militar [1964-1985] se apropriou da efeméride para afirmar que dom Pedro I tinha dado a Independência política para o Brasil, e os militares a econômica”, pontua Galves.

Wikimedia CommonsEstátuas equestres de líderes da independência da América hispânica: Simón Bolívar em Caracas, na Venezuela…Wikimedia Commons

O historiador do Maranhão é um dos pesquisadores que têm olhado para a pluralidade do processo de Independência. De acordo com ele, o projeto de autonomia desenhado por dom Pedro I atendia aos interesses de províncias como Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, deixando em segundo plano as demandas das outras províncias. Por causa disso, guerras regionais estouraram, fazendo oposição ao projeto do então governo imperial, entre elas a Revolução Farroupilha (1835-1845), na província de São Pedro do Rio Grande do Sul; a Cabanagem (1835-1840), no Grão-Pará; e a Sabinada (1837-1838), na Bahia. “No Maranhão, a população se identificava mais com Portugal do que com a Corte do Rio de Janeiro”, detalha. “Apesar de o projeto da Corte ter sido vencedor, ele não foi o único.”

O geógrafo Manoel Fernandes de Sousa Neto, da USP, recorda que o Grão-Pará e o Maranhão existiram como um estado apartado do Brasil até o início da década de 1820, quando cada região assinou tratado para integrar o projeto desenhado pelo governo de dom Pedro I. Já o Acre, região que pertencia à Bolívia e ao Peru, vivenciou conflitos armados durante anos e foi anexado ao país somente em 1903, depois da assinatura do Tratado de Petrópolis. “Até princípios do século XX, o Brasil conquistou territórios, enquanto a América hispânica foi marcada por um processo de desagregação territorial dos antigos domínios espanhóis”, compara Galves.

Partindo de reflexões desenvolvidas pelo geógrafo e cientista social Antonio Carlos Robert de Moraes (1954-2015), Sousa Neto sustenta que, desde a Independência, o país tem investido na formação das chamadas “poupanças territoriais”. “Os governantes lutaram para incorporar regiões ao Norte como forma de dispor de fundos territoriais que pudessem ser economicamente explorados, conforme a nação se formava e demandava recursos naturais para se modernizar”, argumenta, defendendo que a lógica está na base dos desafios atuais envolvendo a devastação da floresta amazônica para atividades de garimpo ilegal e plantio de soja.

Wikimedia Commons…e José de San Martín em Buenos Aires, na ArgentinaWikimedia Commons

Considerando as pluralidades de interesses e os conflitos entre províncias durante o processo de Independência, outra pergunta central tem mobilizado a investigação científica sobre o tema: afinal, por que o Brasil não se fragmentou? Não há consenso nas respostas, resultantes da análise de diferentes objetos de estudos, sendo um deles a escravidão.

Com contextos históricos e motivações específicas, algumas rebeliões registradas em território nacional durante o processo de Independência abrangiam demandas comuns, entre elas a busca por autonomia por parte das províncias para o pagamento de impostos, a insatisfação com problemas econômicos e com a presença de portugueses em cargos administrativos. Além disso, a maioria delas não trazia programas antiescravistas e, portanto, não incorporou os escravizados, inviabilizando qualquer possibilidade de radicalização. “Com isso, depois da derrota dos movimentos insurgentes, elites dirigentes de províncias como São Pedro do Rio Grande do Sul e Bahia, por exemplo, repactuaram as relações com o governo imperial para que suas demandas fossem parcialmente atendidas sem afetar a ordem escravista, naquele momento central para as atividades econômicas do país”, propõe o historiador Rafael Marquese, da USP. Marquese construiu o argumento a partir de reflexões dos cientistas políticos e historiadores José Murilo de Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Luiz Felipe de Alencastro, da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eesp-FGV). Ele explica que, no século XVIII, a América portuguesa contava com 18 capitanias, com seus mercados integrados a partir de atividades de mineração. “A escravidão existia em todas as regiões com domínio branco e colonial e estruturava as relações da sociedade. Mesmo sendo um mundo cravejado de tensões, o regime escravocrata criou a solda para formar o Estado brasileiro, porque uniformizava a paisagem social e unia as elites em torno do mesmo interesse, que era a manutenção da escravidão”, sustenta.

Wikimedia CommonsRetrato do general mexicano Agustín de Iturbide, que combateu levantes pela independência e, mais tarde, mobilizou um acordo para que o México se tornasse independenteWikimedia Commons

Já na América hispânica havia várias situações diferentes, esclarece Prado. Eram menos numerosos os africanos escravizados que viviam no México, Argentina e Uruguai, enquanto na Colômbia, Venezuela, Haiti e Cuba a população de subjugados era maior. “No caso excepcional das colônias francesas de Saint Domingue, futuro Haiti, depois da abolição da escravidão pela Revolução Francesa [1789- 1799], os escravizados foram os líderes e agentes da conquista da Independência, expulsando, inclusive, os brancos de seu território”, detalha a historiadora. “Cuba, por sua vez, permaneceu como colônia espanhola por mais tempo, tornando-se independente apenas em 1898, porque as elites temiam uma rebelião como a ocorrida no Haiti, unindo esforços com o poder colonial para garantir a manutenção da ordem escravocrata”, afirma.

Em que pese a busca por nuançar o antagonismo em análises sobre os processos de autonomia de nações latino-americanas e do Brasil, depois da invasão das tropas do imperador francês Napoleão Bonaparte (1769-1821) na península Ibérica, em 1807, os reinados da Espanha e de Portugal tomaram caminhos diferentes. O rei dom João VI (1767-1826) decidiu deixar Portugal e se instalar no Brasil; Fernando VII (1784-1833), rei da Espanha, foi feito prisioneiro na França e viu o irmão do imperador francês, José I (1768-1844), ser colocado no trono. “Com a prisão do rei espanhol, houve resistência interna contra o monarca francês. Na América espanhola, iniciou-se uma forte agitação política que questionava a lealdade ao novo governo metropolitano”, informa Prado.

Library of the CongressRebeldes haitianos enforcam proprietário de terra durante a Revolução Haitiana (1791-1804)Library of the Congress

No caso brasileiro, a historiadora considera que a transferência da Corte para o Rio de Janeiro colaborou com a manutenção da ideia de coesão territorial. “Essa tônica foi reforçada quando, mais tarde, o próprio filho de dom João liderou o processo de Independência”, reforça. Em pesquisa realizada em atas das câmaras municipais e em jornais de diferentes províncias como parte de estudo financiado pela FAPESP, o historiador Jean Marcel Carvalho França, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Franca, constatou que dom Pedro I era reconhecido como líder, recebendo apoio popular inclusive em pequenas comunidades interioranas. Um dos resultados do estudo, concluído em 2021, foi a criação de um banco de dados aberto a pesquisadores. “Apesar dos movimentos rebeldes, de maneira geral havia um clima de euforia com a figura do príncipe, que colaborou com o processo de consolidação do território nacional”, considera França, ao mencionar, por exemplo, textos publicados no jornal O Espelho, que circulou no Rio de Janeiro entre 1821 e 1823.

Conforme Prado, da USP, outro aspecto que define o destino da América hispânica diz respeito ao fato de a Espanha contar, durante a colonização, com um sistema administrativo diferente do modelo português. A região estava organizada em quatro vice-reinados: o do Peru, cuja sede era em Lima; Nova Espanha, na Cidade do México; Nova Granada, em Bogotá; e Rio da Prata, em Buenos Aires. Além disso, existiam quatro capitanias gerais: da Venezuela, Chile, Cuba e Guatemala. “Esses elementos da divisão administrativa reportavam a um poder maior, a Coroa espanhola”, afirma.

Por sua vez, a historiadora Gabriela Pellegrino Soares, da USP, esclarece que inicialmente os vice-reinos eram leais ao rei da Espanha, que estava preso, mas aos poucos essa postura cedeu lugar a projetos de autonomia e ruptura com o poder colonial. “Assim, as regiões começaram a organizar Exércitos revolucionários para romper com a Espanha. Em 1814, Napoleão sofria derrotas e o rei Fernando VII foi restaurado como monarca do Império. Então, a Espanha enviou um grande Exército para conter os movimentos dissidentes em curso”, detalha a historiadora. Como os grupos rebeldes eram numerosos e o Exército do país dispunha de um contingente limitado de soldados, a Espanha mobilizou primeiro suas tropas para combater os movimentos de insurreição no vice-reino de Nova Granada, onde o grupo insurgente era comandado pelo general e líder revolucionário Simon Bolívar (1783-1830). “A América hispânica foi marcada por conflitos armados que varreram o continente entre 1810 e 1825”, reforça Prado.

New York Public LibraryRetrato de François-Dominique Toussaint L’Ouverture (1743-1803), líder da Revolução HaitianaNew York Public Library

A historiadora destaca que o último bastião da Coroa espanhola foi o vice-reino do Peru, que corresponde ao atual território de Peru e Bolívia, onde o vice-rei conseguiu resistir ao assédio dos revolucionários até a chegada do general José de San Martín (1778-1850) e sua tropa. San Martín participou do processo de independência da Argentina, consolidado em 1816, e atravessou os Andes com 5 mil soldados até alcançar a região. O Peru se tornou independente em 1821; a Bolívia, em 1825. “Enquanto Bolívar é reconhecido como herói da independência na Venezuela, Colômbia e Equador e Bolívia, San Martín desempenha o mesmo papel na Argentina e no Peru, tendo apoiado a libertação do Chile”, pontua.

As populações indígenas, segundo Soares, reagiram de formas distintas às campanhas por independência. Na região dos Andes, da Colômbia até o Chile, os indígenas eram camponeses cristianizados e mantinham relações estreitas com o poder colonial. “No começo do século XIX, os Mapuche que viviam na região que hoje é o centro-sul do Chile foram contrários aos projetos de emancipação, porque assinaram tratados de paz com a Espanha que poderiam ser ameaçados com a mudança de governo”, relata. Por outro lado, quando a Argentina se emancipou, o novo governo traduziu e anunciou a novidade em diferentes línguas indígenas. “Foi comunicado oficialmente a essas populações que havia um novo regime”, comenta, lembrando que integrantes de exércitos revolucionários conheciam os idiomas dos povos originários e utilizavam esses idiomas como forma de engajá-los nas lutas por emancipação.

No México, coube a um representante da Igreja Católica, o pároco Miguel Hidalgo y Costilla (1753-1811) liderar, a partir de 1810, o primeiro movimento revolucionário defendendo o fim das relações coloniais e conclamando os indígenas a se levantarem contra os espanhóis. “O padre carregava estandartes com imagens da virgem de Guadalupe, de feições indígenas”, detalha Soares. O movimento de insurreição sofreu uma repressão violenta e Hidalgo, mesmo com o apoio de um grande exército popular, não escapou do fuzilamento. “Os movimentos rebeldes prosseguiram no país até 1821, quando o general Agustín de Iturbide [1783-1824], que antes tinha combatido os levantes pela Independência, mobilizou um acordo entre as elites para que o México se tornasse independente da Coroa espanhola”, diz Prado.

Theubet de Beauchamp / Wikimedia CommonsIturbide recebe as chaves da Cidade do México, depois da independênciaTheubet de Beauchamp / Wikimedia Commons

Já no caso do Brasil, Sousa Neto, da USP, avalia que a garantia do Estado de que as elites podiam se apropriar de terras, ter latifúndios e contar com trabalho de escravizados viabilizou a coesão do país. “Hoje, formamos um estado territorial, mas será que formamos uma nação?”, indaga o geógrafo. Sousa Neto reforça que o Brasil não apenas foi inventado simbolicamente, mas também materialmente, por intermédio de processos militares, políticos e econômicos. “O Estado brasileiro, construído durante os oitocentos, valeu-se do mito geográfico da intocabilidade territorial para manter, em torno da figura do imperador, uma forte centralização política, expressa de modo exemplar nas ações militares que debelaram as revoltas regionais ocorridas durante o século XIX”, afirma o geógrafo.  De acordo com sua interpretação, somos uma sociedade que tem a coesão do território como elemento central da identidade, narrativa que foi construída em oposição à América espanhola, vista como lugar de caudilhos, guerras civis, regressão econômica e anarquia, enquanto o Brasil seria o país da unidade, ordem e civilização. “A bandeira brasileira, inclusive, traz o azul como símbolo da nobreza, e o amarelo representando o ouro, enquanto o verde remete à família real de Bragança, em uma iconografia distinta da do conjunto de bandeiras de países hispânicos, que aludem a movimentos de libertação e processos revolucionários”, compara o geógrafo.

Prado recorda que, na Venezuela, por exemplo, a identidade nacional se formou em torno da figura de Bolívar. De acordo com ela, na Colômbia, apesar de a sociedade reconhecer o papel importante desempenhado por Bolívar em sua história, o jurista, militar e político Francisco José de Paula Santander (1792-1840) tornou-se figura de referência para futuros políticos liberais. “A denominação América Latina foi inventada no século XIX e, a partir do final do século, foi-se construindo uma identidade latino-americana, em oposição aos anglo-americanos dos Estados Unidos”, finaliza a pesquisadora.

Projeto
Escritos sobre os novos mundos: Uma história da construção de valores morais em língua portuguesa (nº 13/14786-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Jean Marcel Carvalho França (Unesp); Investimento R$ 958.320,68.

Livros
Vários autores. Coleção memória atlântica. Grupo de pesquisa escritos sobre os novos mundos. São Paulo: FAPESP, Fundação Editora da Unesp e Academia Portuguesa da História.
NETO, M. F. S. Um geógrafo do poder no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.

Capítulo de livro
PRADO, M. L. C. Identidades latinoamericanas (1870-1930). In: MORA, E. A.  e CARBÓ, E. P. (orgs.). Historia general de América Latina: Los proyectos nacionales latinoamericanos: Sus instrumentos y articulación, 1870-1930. Ied. Paris: Ediciones Unesco / Editorial Trotta, 2009.

Artigos científicos
NETO, M. F. S. A ciência geográfica e a construção do Brasil. Terra Livre. n. 15. p. 9-20. 2000.
MARQUESE, R. The other side of the antislavery republics: The empire of Brazil and the making of the second slavery. 7th Annual International Conference Antislavery Republics: The Politics of Abolition in the Spanish Atlantic. Gilder Lehrman Center for the Study of Slavery, Resistance, and Abolition. Yale University. 2015.

Dossiê
As independências latino-americanas. Revista USP. v. 1, n. 130. 2021.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

Intérpretes do debate político

Carta do Arquivo da
Câmara dos Deputados
escrita por indígenas
em 1822 com reivindicações ao
governo de dom Pedro I

Arquivo da Câmara dos Deputados

Em 1814, um grupo de indígenas de diferentes etnias que viviam na Vila Viçosa, no sertão do Ceará, viajou a pé até o Rio de Janeiro para solicitar a dom João VI (1767-1826), monarca do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, que extinguisse o trabalho compulsório indígena na província cearense. Em um sistema no qual as pessoas recebiam privilégios em troca dos serviços prestados à Coroa, na bagagem eles carregavam cartas-patente emitidas décadas antes para comprovar vínculo e fidelidade ao rei português. A partir de 1829, representantes de etnias como a dos Guarani, Kaiowá e Munduruku visitavam propriedades em São Paulo e na Amazônia para presentear os colonizadores. Sem serem notados, e com o objetivo de fomentar uma relação mais amistosa, deixavam mantas, mel e carnes de caça na porta de casas e em dependências de seringais.

O relato das ações das etnias acima é uma das descobertas resultantes de uma abordagem consolidada nos últimos 10 anos, quando pesquisadores passaram a utilizar novos enfoques para explorar arquivos que reúnem a documentação de aldeamentos e ofícios encaminhados por governos provinciais, com o objetivo de compreender como os indígenas viam o contexto da nova ordem política. Os estudos têm demonstrado que os povos originários não eram alheios ao debate político, interpretado a seu próprio modo e utilizado para reivindicar direitos, e ao atendimento de demandas de melhores condições de vida.

Até os anos 1980, a historiografia tradicional sobre a Independência prestou pouca atenção à questão indígena, avalia a historiadora Vania Maria Losada Moreira, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E, apesar de ela ser central à antropologia e etnografia, até os anos 1980 as análises dessas áreas do conhecimento consideravam cada povo em seu contexto cultural específico. O cenário começou a mudar a partir dos debates da Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, com o envolvimento do movimento indígena e de intelectuais como a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, hoje professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP) e emérita da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, propiciando o desenvolvimento do que hoje se conhece como “nova história indígena”. “Carneiro da Cunha analisou a documentação histórica e identificou duas tendências de longa duração na relação do Estado e dos colonos com os indígenas: força bruta e brandura. São tendências que operam entre a oposição e a complementaridade, sendo a brandura mais associada aos jesuítas e a força bruta aos militares”, relata o antropólogo Leandro Mahalem de Lima, do Centro de Microeconomia Aplicada da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eesp-FGV).

Veja também:
• O suplemento especial Outras faces da Independência

• Tudo que já publicamos sobre o bicentenário da Independência do Brasil

Na década de 1980, para além de análises sobre cada povo em sua especificidade, os pesquisadores passaram a se preocupar em entender o papel dos indígenas em processos históricos relacionados com a colonização e a Independência. Estudiosa das grandes missões de catequização no Espírito Santo no século XVI, Moreira, da UFRRJ, explica que parte delas foi elevada à condição de vila no período em que Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), o marquês de Pombal, foi secretário de Estado de Portugal, entre 1756 e 1777. “Às vésperas da Independência, parte da população indígena vivia há séculos nesses povoados. Essas pessoas participavam de lutas sociais e eram disputadas pelas elites locais. Ainda temos uma história a ser escrita sobre elas”, diz Moreira.

“No Brasil, a associação entre a Independência e a participação indígena ainda é muito rara, quando não categoricamente negada”, observa o historiador André Machado, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Em artigo no prelo para uma coletânea editada pelo Sesc (Serviço Social do Comércio), Machado menciona uma crítica que o historiador Alexandre José de Mello Moraes (1816-1882) escreveu na década de 1860, sobre a estátua equestre de dom Pedro I instalada na praça Tiradentes, no Rio de Janeiro. O monumento representa o monarca no ato da Independência, rodeado por jacarés e indígenas. No texto, elaborado no auge do indianismo – período em que a literatura nacional retratava os indígenas de forma idealizada –, Mello Moraes questiona: “Que parte tiveram esses índios e aqueles jacarés na Independência do Brasil?”. Machado retoma essa passagem em seu artigo para argumentar que a visão sobre a suposta pouca relevância da participação indígena no processo de ruptura com Portugal perdurou até recentemente, posicionamento compartilhado por Daniel Munduruku, escritor da mesma etnia que carrega no nome, autor de mais de 50 livros. “A participação das populações indígenas foi omitida da produção historiográfica e, mesmo no século XIX, o olhar romântico sobre elas colaborou com sua invisibilização”, pondera Munduruku.

Na mesma toada, a historiadora Camila Loureiro Dias, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), cita o historiador John Manuel Monteiro (1956-2013), observando que estudos anteriores à década de 1980 que olharam para a história dos povos indígenas funcionaram como “crônicas de sua extinção”, ao sublinhar que eles seriam exterminados ou assimilados à população em geral. Por outro lado, a Constituição de 1988 passou a assegurar a esses povos o direito à terra e o de manter suas tradições e culturas. “Foi a primeira vez que o Estado brasileiro se reconheceu como multiétnico, aceitando o direito das populações originárias à diferença”, diz, lembrando que a mudança contribuiu para a ampliação do escopo de pesquisas historiográficas.

Apesar do avanço, Dias observa que os atuais estudos sobre a questão indígena precisam estreitar o diálogo com outras historiografias. “Em eventos históricos, cada pesquisador procura enxergar o protagonismo de seu próprio objeto de estudo. No caso da Independência, isso inclui os indígenas, os africanos e os afrodescendentes, além de diferentes governantes e colonizadores. No entanto, é preciso melhorar a articulação entre essas historiografias, aprofundando o entendimento sobre como esses grupos interagiam.”

A compreensão dos motivos que geraram a oposição de certos povos à Independência, mesmo considerando o contexto de violência e trabalho forçado a que historicamente foram submetidos, é uma das perguntas que conduzem pesquisas recentes, como a desenvolvida por Machado, da Unifesp. “Não teria sido mais provável todos os grupos se alinharem a movimentos independentistas, pela possibilidade de ruptura que eles ofereciam com o regime anterior?”, indaga o historiador. Outra perspectiva de suas análises inclui o entendimento de como o “cenário de convulsões” experimentado em processos de independência nas Américas impactou as perspectivas indígenas.

Biblioteca NacionalEstátua equestre de dom Pedro I, inaugurada em 1862, no Rio de Janeiro, é considerada a primeira escultura pública do BrasilBiblioteca Nacional

Algumas respostas a essas indagações foram obtidas durante pesquisa realizada com apoio da FAPESP e concluída em 2020. Ao observar a exploração do trabalho indígena durante os períodos colonial e imperial, Machado recorda das guerras justas, política instituída no século XVI que previa o extermínio de indígenas que se recusassem a ceder suas terras e trabalhar para os colonizadores. Em 1808, quando dom João VI chegou ao Brasil, estabeleceu guerras justas contra os indígenas Kaingang que viviam no Campo de Guarapuava, no Paraná, e os Botocudo, do vale do Rio Doce, em Minas Gerais.

O pesquisador da Unifesp recorda que nos territórios das Américas portuguesa e hispânica existiam leis que proibiam a escravização indígena, mas o dever do trabalho compulsório, com suas jornadas extenuantes e atrasos frequentes no pagamento, foi perene. Diferentemente da escravidão na qual se considerava que os sujeitos escravizados não detinham a posse de si mesmos e, portanto, trabalhavam sem remuneração, no trabalho compulsório os indivíduos recebiam remuneração pelas atividades que eram obrigados a desempenhar. “Isso não mudou com a Independência. Pelo contrário, os Estados nacionais nas Américas recriaram formas compulsórias de trabalho dos indígenas, inclusive onde os parlamentos tinham extinguido”, sustenta Machado, ao citar que metade dos ganhos do Estado boliviano no século XIX, por exemplo, envolvia a venda de mercadorias que eram produzidas a partir de mão de obra indígena. A historiadora Fernanda Sposito, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), recorda que a mão de obra indígena era estratégica para abrir caminhos de navegação, defender fronteiras e possibilitar contatos com outros povos. O conhecimento que populações originárias tinham dos oceanos, acrescenta ela, em outro exemplo, foi o que propiciou a exploração de pérolas no Caribe no início da colonização da América. “As pérolas mais valiosas eram encontradas nas regiões mais profundas e os indígenas eram obrigados a mergulhar durante horas, mesmo exaustos. Muitos morriam afogados”, informa Sposito.

Para resistir ao trabalho compulsório nessas condições, no caso do Brasil, os indígenas costumavam habitar territórios mais isolados, no interior das matas. Perseguidos, quando localizados eram amarrados em troncos ou presos, até que o recrutador capturasse a quantidade de indivíduos necessária para a formação de um grupo de trabalhadores. Segundo Machado, no Pará, boa parte da economia dependia do trabalho indígena, fundamental para a extração de bens da floresta e para o transporte fluvial de produtos. Muitas dessas mercadorias, inclusive, eram destinadas ao mercado externo, conforme o pesquisador verificou em acervos como o Arquivo Nacional, em Washington, e a biblioteca John Carter Brown, ambos nos Estados Unidos. Ao analisar outros documentos do século XIX, Machado encontrou requerimentos redigidos em português por lideranças indígenas questionando as condições de trabalho a que estavam submetidas. Dirigiam-se à Coroa e faziam diferentes tipos de solicitação. Em um deles, elaborado em 1822, os indígenas reivindicavam a deposição do intendente do Arsenal da Marinha, um dos lugares onde o trabalho compulsório era mais pesado. “Nessa solicitação, as lideranças indígenas utilizaram o discurso liberal corrente nas Cortes de Lisboa para legitimar a demanda, afirmando que o intendente era um ‘déspota’ e tinha chegado ao cargo por meio de ‘vícios do Antigo Regime’”, diz Machado.

Cortes de Lisboa era a designação do parlamento que passou a governar o Império português a partir de janeiro de 1821, como desdobramento da Revolução Liberal do Porto, movimento militar conhecido como vintismo, desencadeado em 1820 para exigir o fim do absolutismo e o estabelecimento de uma monarquia constitucional em Portugal. Além disso, o grupo também reivindicava o retorno de dom João VI, que estava no Rio de Janeiro desde 1808. “No documento, a liberdade dos trabalhadores indígenas era diretamente relacionada à ideia de liberdade promovida pelo movimento liberal do Porto, segundo a qual a sociedade deveria acabar com o poder absolutista da monarquia”, relata Machado. Ao tomar conhecimento de que as Cortes de Lisboa proibiram o recrutamento de cidadãos do Império português para o trabalho compulsório, os indígenas se aproximaram da causa dos liberais, incorporando e ressignificando a interpretação desses direitos para argumentar que não podiam mais ser convocados para essas atividades.

De acordo com Machado, as ideias da Revolução Liberal do Porto começaram a circular no Pará a partir da criação do jornal O Paraense, em 1820, que também noticiou o veto das Cortes à prisão de cidadãos sem culpa formada. Uma correspondência de 1823, identificada pelo pesquisador, mostra que um juiz de Vila Nova Del Rey, no Pará, acolheu os argumentos dos indígenas, de que não podiam ser capturados e presos para atuar no trabalho forçado, uma vez que não tinham culpa demonstrada, alinhando seu discurso à causa dos vintistas. “Povos indígenas interpretaram as novidades políticas nos seus próprios termos e fizeram cálculos de quais ações resultariam em ganhos ou perdas para as suas comunidades. As motivações, na maior parte das vezes, iam além de um simples alinhamento com os que queriam manter os laços com Portugal ou aqueles que pretendiam a ruptura”, analisa Machado.

New York Public LibraryPintura de Jean-Baptiste Debret mostra indígenas da etnia Guarani servindo ao Exército Imperial BrasileiroNew York Public Library

Em pesquisa financiada pela FAPESP e premiada pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da Universidade de São Paulo (BBM-USP), o historiador João Paulo Peixoto Costa, do Instituto Federal do Piauí (IFPI), campus de Uruçuí, investigou as políticas indígenas e indigenistas no Ceará, a partir da análise de documentos do Arquivo Público do estado e do Arquivo da Câmara dos Deputados. No estudo, ele encontrou textos em português produzidos por indígenas evidenciando que habitantes de vilas e povoados percebiam o rei como máxima entidade protetora contra proprietários desejosos de dominar suas terras e abusar de sua força de trabalho. “O constitucionalismo português era visto como uma mudança desvantajosa para certos grupos, porque representava o fortalecimento do poder político de elites provinciais, que eram seus grandes inimigos. Por isso, os indígenas do Ceará tenderam a apoiar o príncipe regente quando as Cortes de Lisboa impuseram o retorno de dom João VI a Portugal”, esclarece o pesquisador.

Costa lembra que a Constituição de 1824 não cita diretamente os indígenas, mas estabelece que todos os cidadãos nascidos no Brasil eram livres e iguais. A partir daí, os governos provinciais passaram a considerar desnecessárias leis para proteger os direitos indígenas, abolindo, por exemplo, o Diretório dos Índios, que determinava que as câmaras de vilas de indígenas deviam ser compostas, também, por representantes dos povos originários. Em pesquisa em andamento sobre a presença indígena em câmaras municipais de vilas do Ceará, Costa identificou que eles passaram a ser citados como ingênuos e incapazes depois da Lei das Câmaras de 1828, que impôs um limite censitário aos cargos de vereador. “Em menos de 10 anos depois da Independência, os indígenas perderam prerrogativas do período colonial”, comenta, mencionando que o Ceará aboliu o Diretório em 1831.

Mahalem de Lima, da Eesp-FGV, diz que o fato de a Constituição de 1824 sequer utilizar o termo “índio” deu margem a um vazio legislativo. É no marco desse vácuo legal, explica a historiadora Íris Kantor, da USP, que em 1935 foram instaladas assembleias provinciais, e a gestão dos aldeamentos indígenas e o controle da mão de obra passaram para a esfera de competência das elites. De acordo com ela, essas mesmas elites escravistas disputaram entre si os chamados fundos territoriais, expressão cunhada pelo geógrafo Antonio Carlos Robert Moraes (1954-2015) para designar áreas de terras não apropriadas ou colonizadas, que as elites latifundiárias reservavam para seus próprios interesses expansionistas e extrativistas, impedindo a demarcação oficial.

No Grão-Pará, barcos com canhões bombardeavam aldeias ribeirinhas para ocupar seus territórios, prender seus moradores e submetê-los a trabalhos forçados. Além disso, movimentos rebeldes queriam tornar a província independente do governo de dom Pedro I, que contratou o lorde inglês Thomas Cochrane (1775-1860) para liderar as esquadras para impor ordem e reprimir movimentos de oposição. “Em 1823, para obrigar o Grão-Pará a aderir à Independência, o cônego Batista Campos [1782-1834], líder da oposição na província e que era contra o trabalho compulsório, foi torturado em praça pública, enquanto 256 aliados foram asfixiados no porão de um navio, sob as ordens de um mercenário inglês, John Grenfell [1800-1869]”, relata Mahalem de Lima. Anos depois da Independência, essas tensões culminaram na eclosão da Cabanagem, revolta que aconteceu entre 1835 e 1840 e contou com intensa participação indígena. Com pesquisas sobre populações ribeirinhas, indígenas e não indígenas, na região de Santarém, no Pará, especialmente na confluência entre os rios Tapajós, Arapiuns e Amazonas, o antropólogo mapeou uma rede de parentesco que envolve mais de 2 mil pessoas e que permite recuar no tempo até a época da Cabanagem. “Mapeamentos de redes, auxiliados por ferramentas computacionais, abrem novas possibilidades de diálogo com fontes documentais escritas”, considera. Ele complementa que um dos achados desse trabalho é que, na tradição oral, o termo “cabano” é comumente associado aos brancos que, segundo os ribeirinhos, chegavam em barcos “acabano com tudo”.

Baseado em documentação histórica sobre os indígenas presentes na região do rio Madeira, que atravessa os estados de Rondônia e do Amazonas, Davi Avelino Leal, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), constatou que no século XIX o avanço da fronteira extrativista da borracha na região ocupada pelos Munduruku e os Parintintin mobilizou diferentes respostas por parte de cada grupo étnico. Enquanto os Parintintin travaram guerras, os Munduruku, com um século de intercâmbio comercial com os portugueses, passaram a trabalhar nos seringais. “Fontes históricas de vilas e povoados armazenadas em arquivos públicos revelam que alguns povos indígenas deixavam presentes, como frutas e caça, nas comunidades dos seringais. Assim, o processo de pacificação das relações, muitas vezes, partia dos próprios indígenas, e não do Estado”, relata.

Já em pesquisa com manuscritos do século XIX, redigidos por autoridades de vilas de diferentes regiões do estado e dirigidos a governantes de províncias, e localizados no Arquivo Público do Estado de São Paulo, Sposito, da UFPR, identificou a existência de dois momentos nas relações entre os colonizadores e a população indígena. De acordo com ela, até a década de 1830, os brasileiros adotavam um discurso beligerante contra os indígenas, reagindo de forma violenta à sua presença nas bordas de seus territórios. Depois dessa década, documentos evidenciam que povos como os Kaiowá e os Guarani, por exemplo, buscaram estratégias para tentar mudar essa relação, adotando uma postura mais amistosa e deixando mantas e mel como presentes nessas propriedades. “Foram justamente as iniciativas indígenas no sertão paulista que pautaram esse segundo momento de relações menos conflituosas e pressionaram políticos de São Paulo a extinguir as guerras justas”, finaliza, recordando que as guerras justas foram revogadas em 1831, sob a justificativa de que um Estado civilizado não poderia promover o extermínio indígena.

Projetos
1. Entre a herança e a reinvenção: Os conflitos em torno da mão de obra indígena na província do Pará no contexto americano – 1832-35 (nº 18/20661-5); Modalidade Bolsa no exterior; Pesquisador responsável André Roberto de Arruda Machado (Unifesp); Investimento R$ 196.083,66.
2. Das políticas ameríndias às políticas coloniais: A construção da colonização da América entre os séculos XVI e XVII (nº 16/06245-3); Modalidade Bolsa de pós-doutorado; Pesquisador responsável Jaime Rodrigues (Unifesp); Bolsista Fernanda Sposito; Investimento R$ 572.024,75.
3. O capítulo “Dos índios”: Direitos, história e historiografia – 1988-2018 (nº 18/12386-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Camila Loureiro Dias (Unicamp); Investimento R$ 45.856,76.
4. Sobre a rede noite e dia? Políticas indígenas e política indigenista no Ceará – 1798-1845 (nº 13/12700-7); Modalidade Bolsa de doutorado; Pesquisadora responsável Silvia Hunold Lara (Unicamp); Bolsista João Paulo Peixoto Costa; Investimento R$ 80.600,57.

Artigos científicos
MACHADO, A. R. A. Interpretações e alinhamentos dos povos indígenas na era das revoluções atlânticas. No prelo.
SPOSITO, F. Ameridian leaders in the construction of indigenous policies in Portugal and Spanish (16-18th centuries). Revista Etnográfica. No prelo.

Dossiê
AMORORO, M. et al. (orgs.). História dos índios no Brasil. History of Anthropology Review. dez. 2018.

Livros
SPOSITO, F. Os povos indígenas na Independência. PIMENTA, J. P. (org.). In: E deixou de ser colônia. Uma história da independência do Brasil. São Paulo: Almedina, 2022.
SPOSITO, F. Nem cidadãos, nem brasileiros. Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012.
LIMA, L. M. Kinship networks, endogamous circuits and sociocultural identities among emergent ethnic groups and traditional riverine peasants in the Amazon river adjacencies (Brazil). In: POPOV, V. (ed.). Kinship Algebra – Алгебра родства. Выпуск. São Petesburgo: Institute of Oriental Manuscripts of the Russian Academy of Sciences.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

Notas sobre o apartheid na África do Sul

 

Gibson Da Costa

 

Apartheid” é uma palavra da língua africâner que significa “separação” e se refere a um sistema de segregação racial praticado pela minoria de origem europeia (branca) contra uma maioria nativa (negra) na África do Sul, de 1948 a 1991.

As noções de supremacia branca e segregação racial chegaram à África do Sul com os primeiros colonos europeus. A Companhia Holandesa das Índias Orientais importou escravos da África Oriental e da Malásia assim que estabeleceu uma pequena colônia no Cabo da Boa Esperança, em 1652. Apesar de os britânicos terem abolido a escravidão logo após terem anexado a Colônia do Cabo, em 1806, mantiveram várias instituições e práticas que garantiam o controle político e econômico dos brancos sobre a maioria negra. No início do século XX, os britânicos controlavam toda a atual África do Sul, com o poder político quase que inteiramente nas mãos de pessoas de ascendência europeia. Com a Lei da União, de 1910, a África do Sul ganhou o status de “Domínio” dentro do Império Britânico e autogoverno limitado.

Entre 1910 e 1948, o governo da União estabeleceu muitas leis que restringiram severamente os direitos das populações negras. Aos negros foi negada a cidadania plena por meio de medidas como a Lei do Passe (lei que exigia que os negros carregassem livretos de identidades, parecidos com passaportes, nos quais eram registrados os locais aonde podiam ir), reservas de trabalho, restrições ao voto, negação ao direito de organização de sindicatos etc. As Leis das Terras Nativas de 1913 e 1936 relegaram a maioria africana a reservas nativas, forçando entre 85% a 90% da população, em teoria – apesar de nunca, de fato –, a viver em menos de 14% da terra. Os 86% restantes da terra foram reservados apenas para brancos.

Assim, quando Daniel F. Malan (1874-1959) e o seu Partido Nacionalista Africâner venceram as eleições gerais de 1948, com um plano que oficialmente endorsava o apartheid, o conceito não era desconhecido nem às populações brancas nem negras. Ironicamente, numa época na qual a Europa e a América do Norte estavam tomando ações para acabar com a discriminação legalizada contra minorias étnicas, os sul-africanos brancos começaram a implantar um dos mais duros sistemas de discriminação racial total na história mundial.

A filosofia política do apartheid baseava-se em quatro pontos principais:

  1. o “desenvolvimento separado” dos quatro grupos raciais oficiais no país;

  2. o controle pelos brancos de todos os aspectos do governo e da sociedade;

  3. os interesses dos brancos como sendo superiores aos interesses dos negros, sem nenhuma exigência para a provisão de direitos iguais a todos os grupos;

  4. a categorização de “brancos” (pessoas de ascendência europeia) como uma única nação e de “africanos” como membros de muitas nações distintas.

 

Os quatro grupos raciais oficialmente reconhecidos pelo apartheid foram:

  • Africanos, também chamados de Bantus → formavam cerca de 78% da população total e, apesar de possuírem uma ancestralidade comum, foram divididos em nove nações distintas: Zulu, Xhosa, Venda, Tsonga, Pedi, Tswana, Swazi, Ndebele e Sotho.

  • Coloureds (em inglês) ou Kleurlinge (em africâner) → nome dado às pessoas de origens mestiças com ancestrais africanos, europeus e malaios, e que podiam traçar suas origens ao início da colonização europeia.

  • Asiáticos → termo utilizado para se referir às pessoas de origem indiana.

  • Europeus → termo utilizado para fazer referência aos sul-africanos brancos de origem europeia.

“Coloureds” e “asiáticos” representavam entre 9% e 10% da população. Os demais 12% ou 13% eram formados pelos “europeus” – com cerca de 60% desses tendo origem holandesa e 40% com origem inglesa (apesar de imigrantes de todas as nações europeias estarem representados nessa única “nação”).

O sistema do apartheid foi descrito, às vezes, como tendo dois aspectos, chamados de grande e pequeno apartheid. O “grande apartheid” se refere àquelas leis racialmente discriminatórias que se relacionavam com a terra e a política. O “pequeno apartheid” se refere aos exemplos cotidianos de discriminação racial, como restrições de casamento, segregação de serviços públicos, zoneamento de residências, segregação de empregos, transporte e educação.

 

O Período Baaskap

Durante a primeira década seguinte às eleições de 1948, as políticas do apartheid foram desenvolvidas de forma crua sob o nome de baaskap. Esse termo africâner pode ser traduzido como “superioridade” ou “controle”, e faz referência à ideia de “supremacia branca”, com sua explícita noção da relação entre mestre e servo que deveria haver entre europeus e africanos.

É importante lembrarmo-nos de que o apartheid está intrinsecamente ligado ao nacionalismo africâner. Assim, não podemos desassociar as leis de segregação estrita e supremacia branca da aparente obsessão dos líderes africâneres com sobrevivência cultural e seu temor do chamado “swart gevaar” (“perigo negro”). Algumas dessas leis foram as seguintes:

 

  • Lei de Proibição de Casamentos Mestiços (1949) – proibia o casamento entre pessoas de grupos raciais diferentes;

  • Lei Contra a Imoralidade (1950) – tornou crime a relação sexual entre pessoas de grupos raciais diferentes;

  • Lei de Registro da População (1950) – exigia que todos fossem registrados como membros de um dos grupos raciais oficiais;

  • Lei das Áreas de Grupo (1950) – estabelecia os limites raciais da geografia urbana, prescrevendo a cada grupo diferentes bairros residenciais/comerciais nas áreas urbanas. Com base nessa lei, não brancos eram retirados das áreas que o governo considerava mais nobres, tendo sido empurrados para cada vez mais longe de onde podiam conseguir trabalho;

  • Lei de Supressão do Comunismo (1950) – além de banir o Partido Comunista da África do Sul, definia qualquer opositor do apartheid como comunista e terrorista – a pena incluía perda de direitos políticos, prisão e o banimento a alguma outra região do país (os brancos que se opunham publicamente ao apartheid foram punidos com base nessa lei) [NOTA: no discurso “Estou preparado para morrer” (“I am prepared to die”, em inglês), Nelson Mandela faz referência a essa tática de identificar todos os inimigos do apartheid como comunistas e explica por que esses dois grupos se aproximaram, apesar de suas diferenças];

  • Lei de Reserva de Espaços, Veículos e Serviços Públicos Separados (1953) – lei que legalizava a segregação racial em todos os espaços, veículos e serviços públicos; apenas as ruas e rodovias estavam excluídas desta lei.

  • Lei da Educação Bantu (1953) – desautorizava as escolas privadas e religiosas e colocava todo o sistema educacional nacional sob a direção do governo, resultando num significativo declínio na qualidade da educação dos negros.

 

A imagem acima pode ajudar a perceber como o apartheid funcionava na organização do espaço urbano. No centro, vemos a cidade “europeia” de Graaf-Reinat, na Província do Cabo Oriental. Ao seu redor, vemos outras povoações, onde moravam “africanos” e “coloureds”. Essa separação cumpria às exigências da Lei das Áreas de Grupo. Para que esses “africanos” e “coloureds” saíssem de suas casas e fossem trabalhar para os “europeus”, tinham de carregar seus livretos de passe (passaportes), em obediência à Lei do Passe. Esses “africanos” e “coloureds” não podiam ir a uma loja, a um parque, a uma biblioteca ou a um hospital naquela cidade “europeia”: tinham de fazê-lo, cada grupo, em sua respectiva área – em obediência à Lei de Reserva de Espaços, Veículos e Serviços Públicos Separados. Qualquer um deles – inclusive brancos – que protestasse contra isso seria punido com base na Lei de Supressão do Comunismo.

 

 
 

O Período do Desenvolvimento Separado

Em 1958, Hendrik Verwoerd (1901-1966), conhecido como o “arquiteto chefe do apartheid”, tornou-se primeiro ministro. Sob seu governo, o apartheid tornou-se uma política racista mais sofisticada chamada de “desenvolvimento separado”. Sob o desenvolvimento separado, cada um dos nove grupos “africanos” (ou “bantu”) passou a ter sua própria nação – chamada de “Bantustão” –, localizadas naqueles 14% de terras reservados pelas Leis das Terras Nativas de 1913 e 1936. Os 86% restantes do país estavam reservados apenas para os brancos: essas incluíam as melhores terras agrícolas, as principais áreas urbanas, os depósitos minerais conhecidos e as minas.

A compreensão que sustentava a filosofia política do “desenvolvimento separado” era a de que os “africanos” deveriam retornar às suas pátrias independentes, e, lá, se desenvolver social, econômica, cultural e politicamente de acordo com seus próprios desejos. O argumento era de que, dessa forma, todas as nações da África do Sul – a “nação” branca e as nove “nações” negras – teriam autodeterminação e não seriam forçadas a viver sob um governo estrangeiro.

A autodeterminação, contudo, só se iniciaria quando os “africanos” entrassem em sua pátria. Eles não tinham a escolha de se mudar ou não, apesar de muitos terem vivido há gerações em cidades e de nunca terem estado sequer próximo à sua pátria designada. Ademais, muitos “africanos” tinham ancestrais de diferentes origens, com, por exemplo, um avô xhosa e uma avó sotho, ou uma outra combinação dos nove diferentes grupos. Agora, eles teriam um documento que oficialmente os classificaria como pertencendo a apenas um desses grupos e como cidadãos duma pátria artificial criada pelo governo. Eles eram, agora, estrangeiros na África do Sul – um país que, teoricamente, não mais possuía cidadãos negros, e havia se tornado um país majoritariamente branco.

Em 1963, o regime do apartheid concedeu uma autonomia limitada ao primeiro dos bantustões, Transkei (uma pátria xhosa). Entre 1976 e 1981, Transkei, Bophuthatswana (uma pátria tswana), Venda (pátria venda) e Ciskei (uma pátria xhosa) receberam sua “independência” do governo da República da África do Sul – apesar de nenhum outro governo do mundo haver reconhecido essas “nações”. KwaZulu, KwaNdebele, Lebowa, KaNgwane, Gazankulu e Qwa Qwa foram declarados como “autônomos” ao longo da década de 1970. Nenhuma dessas pátrias, contudo, jamais foi economicamente viável. Elas consistiam basicamente de terras incultiváveis. As famílias dependiam dos familiares que trabalhavam nas áreas brancas e enviavam seus salários para casa. Todas essas pátrias foram abolidas em 1994, e suas terras foram reincorporadas ao território da República da África do Sul.

Oposição

A oposição ao apartheid se iniciou imediatamente após as eleições de 1948. Armado com a Lei de Supressão do Comunismo – que, apesar de suas políticas racistas, fez com que a África do Sul ganhasse apoio dos EUA e da Grã-Bretanha durante a Guerra Fria –, o regime do apartheid conseguiu esmagar a maioria da resistência interna. O mais importante grupo negro de oposição foi o Congresso Nacional Africano (CNA), cujos membros incluíam Albert Luthuli (1898-1967; ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1961), Walter Sisulu (1912-2003), Oliver Tambo (1917-1993) e Nelson Mandela (1918-2013). Em 1955, o Congresso do Povo adotou a chamada “Carta da Liberdade” que exigia uma África do Sul multirracial e democrática; esta carta foi adotada pelo CNA.

Já no início da década de 1960, enquanto dezenas de nações africanas conseguiram sua independência, a África do Sul enfrentava uma crescente condenação internacional – especialmente advinda dos países do chamado bloco socialista. Em 1961, o país deixou a Comunidade Britânica de Nações, em vez de ser forçado a abandonar o apartheid. No mesmo ano, as Igrejas Reformadas Holandesas da África do Sul abandonaram o Conselho Mundial de Igrejas. O país também perdeu seu direito a voto na Assembleia Geral das Nações Unidas, e foi banido dos jogos olímpicos e de muitas organizações internacionais.

Sob a liderança de Nelson Mandela, o CNA formou uma ala militar em 1961, chamada de “Umkonto we Sizwe” (Lança da Nação), que recorria à violência em sua resistência ao apartheid. Em 1963, Mandela e sete outros foram julgados e condenados à prisão perpétua.

O governo, a essa altura, já havia banido todas as organizações que se opunham ao sistema, e colocado na prisão ou em detenção residencial muitos dos opositores – lideranças políticas e religiosas, escritores, artistas, professores, jornalistas, estudantes.

Hendrik Verwoerd foi assassinado em 1966, e sob seu sucessor, Balthazar Johannes Vorster (1915-1983), alguns aspectos do “pequeno apartheid” foram relaxados. A decisão do governo, em 1976, de exigir instrução obrigatória em africâner nas escolas “africanas” deu início a uma série de revoltas – que se iniciaram em Soweto e depois se espalharam pelo país.

É importante perceber que, para os sul-africanos que não possuíam origem holandesa, a língua africâner sempre esteve associada à ideia do nacionalismo bôer e intrinsecamente ligado ao apartheid. A língua utilizada pelos sistemas de educação dos grupos “africanos” ou “asiáticos” era o inglês. Por isso a revolta como reação à nova decisão: agora, o regime do apartheid, além de tirar a cidadania, as terras, a dignidade humana dos negros, imporia sua língua às crianças e jovens africanos.

Em 1978, Pieter Willem Botha (1916-2006) tornou-se primeiro ministro e começou a conceder aos “coloureds” e aos “asiáticos” alguns direitos políticos limitados, tentando, assim, melhorar a imagem do país no cenário internacional e conseguir desses dois grupos o apoio necessário para a permanência do regime.

Após a independência do Zimbábue, em 1981, a África do Sul e a Namíbia (uma antiga colônia alemã que fora tomada pela África do Sul, desde 1915) continuaram como os únicos países africanos governados por grupos de origem europeia, e enfrentavam uma forte pressão interna e externa por mudanças. A África do Sul passou a sofrer sanções econômicas cada vez mais duras, que incluíam a alienação de filiais de grandes corporações americanas no país.

O fim do apartheid

Em 1989, Frederik Willem de Klerk (1936-…) tornou-se primeiro ministro e imediatamente anunciou a soltura de muitos presos políticos negros. Em fevereiro de 1990, ele declarou, no Parlamento, que o apartheid havia falhado, que o banimento de todos os partidos políticos seria anulado e que Nelson Mandela seria libertado – depois de 27 anos de prisão. Em 1991, todas as leis do apartheid foram abolidas. Após três anos de intensas negociações, todos os lados concordaram, em 1993, com os passos para a formação dum governo transitório multirracial e multipartidário.

As eleições aconteceram em abril de 1994, e Nelson Mandela se tornou o primeiro presidente eleito pela maioria, de forma livre e direta, na história da África do Sul. Em 1995, ele formou a Comissão da Verdade e Reconciliação, com o arcebispo anglicano Desmond Tutu (1931-…) como seu diretor, para investigar os abusos sofridos por todos os sul-africanos durante o regime do apartheid. A comissão anunciava como sua missão não a punição, mas o conhecimento do passado e a reconciliação entre os vários grupos divididos durante o apartheid.

FONTES

BENSON, M. Nelson Mandela, the man and the movement. Harmondsworth, Inglaterra: Penguin, 1994.

DEGRUCHNY, J.W.; VILLA-VICENCIO, C. (eds.). Apartheid is a heresy. Grand Rapids, EUA: W. B. Eerdmans, 1983.

LAPPING, B. Apartheid: a history. Nova York, EUA: G. Braziller, 1989.

THOMPSON, L. M. A history of South Africa. 3.ed. New Haven, EUA: Yale University Press, 2000.

WELSH, David. The rise and fall of apartheid. Charlottesville, EUA: University of Virginia Press, 2009.

WORDEN, Nigel. The making of modern South Africa. 5.ed. Malden, EUA: Wiley-Blackwell, 2012.

 

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FILMES DE INTERESSE:

 

EM NOME DA HONRA. Phillip Noyce (dir.). França / Reino Unido / África do Sul / EUA: Working Title Films, 2006. 1 filme (101 min.), son., col. [Título original: Catch a fire]. Leg. português.

 

 

 
 


INVICTUS. Clint Eastwood (dir.). EUA/África do Sul: Liberty Pictures, 2009. 1 filme (133 min.), son., col. [Título original: Invictus]. Leg. português.

 

 
 
 


MANDELA – A LUTA PELA LIBERDADE. Bille August (dir.). África do Sul / Itália / Reino Unido / Luxemburgo / Alemanha / França: Film Afrika Worldwide, 2007. 1 filme (118 min.), son., col. [Título original: Goodbye Bafana]. Leg. português.

 

 
 


REPÓRTERES DE GUERRA. Steven Silver (dir.). Canadá/África do Sul: Paramount Pictures, 2010. 1 filme (106 min.), son., col. [Título original: The Bang Bang Club]. Leg. português.

 

 
 


SOMBRAS DO PASSADO. Tom Hooper (dir.). Reino Unido/África do Sul: BBC Films, 2004. 1 filme (110 min.), son., col. [Título original: Red Dust]. Leg. português.

 

 
 

Mais poderosa do que duas Cleópatras

Uma das trilhas do álbum “The Miseducation of Lauryn Hill“, de 1998, o primeiro álbum solo de Lauryn Hill. Pessoalmente, o considero um dos mais marcantes álbuns da história do hip hop. Todas as canções são poeticamente belas, mas “Everything Is Everything” faz um apelo político marcante para qualquer jovem – para quem entende as referências feitas na letra, é impossível não se emocionar/energizar.

Everything is Everything (Lauryn Hill, 1998)

Everything is everything
What is meant to be, will be
After winter, must come spring
Change, it comes eventually

Everything is everything
What is meant to be, will be
After winter, must come spring
Change, it comes eventually

I wrote these words for everyone who struggles in their youth
Who won’t accept deception, instead of what is truth
It seems we lose the game
Before we even start to play
Who made these rules? (Who made these rules?)
We’re so confused (We’re so confused)
Easily led astray
Let me tell ya that

Everything is everything
Everything is everything
After winter, must come spring
Everything is everything

I philosophy
Possibly speak tongues
Beat drum, Abyssinian, street Baptist
Rap this in fine linen, from the beginning
My practice extending across the atlas
I begat this
Flipping in the ghetto on a dirty mattress
You can’t match this rapper slash actress
More powerful than two Cleopatras
Bomb graffiti on the tomb of Nefertiti
MCs ain’t ready to take it to the Serengeti
My rhymes is heavy like the mind of sister Betty (Betty Shabazz)
L-Boogie spars with stars and constellations
Then came down for a little conversation
Adjacent to the king, fear no human being
Roll with cherubims to Nassau Coliseum
Now hear this mixture, where Hip Hop meets scripture
Develop a negative into a positive picture

Now everything is everything
What is meant to be, will be
After winter, must come spring
Change, it comes eventually

Sometimes it seems
We’ll touch that dream
But things come slow or not at all
And the ones on top, won’t make it stop
So convinced that they might fall
Let’s love ourselves and we can’t fail
To make a better situation
Tomorrow, our seeds will grow
All we need is dedication
Let me tell ya that

Everything is everything
Everything is everything
After winter, must come spring
Everything is everything

Everything is everything
What is meant to be, will be
After winter, must come spring
Change, it comes eventually

Uma tradução livre:

É O QUE É

É o que é
O que tiver de ser, será
Depois do temporal, vem a calmaria
A mudança eventualmente chega

É o que é
O que tiver de ser, será
Depois do temporal, vem a calmaria
A mudança eventualmente chega

Escrevi estas palavras para todos os que lutam na juventude
Que não aceitarão a mentira, em vez da verdade
Parece que perdemos o jogo
Antes mesmo de começarmos a jogar
Quem criou essas regras? (Quem criou essas regras?)
Estamos tão confusos (Estamos tão confusos)
Facilmente desencaminhados
Me deixe dizer que

É o que é
É o que é
Depois do temporal, vem a calmaria
É o que é

Eu filosofo
Possivelmente falo em línguas
Bato tambores como um membro da Igreja Batista Abyssinian
Teço este rap sobre bom linho, desde o começo
Minha prática se estendendo ao redor do mundo
O fiz
Pulando sobre um colchão sujo no gueto
Você não chega aos pés desta rapper/atriz
Mais poderosa do que duas Cleópatras
Excelente graffiti no túmulo de Nefertiti
Os Mcs não estão prontos para levá-lo ao Serengeti
Minhas rimas são pesadas como a mente da Irmã Betty (Betty Shabazz)
L-Boogie luta com estrelas e constelações
Então desceu para uma pequena conversa
Próxima ao rei, sem medo de nenhum ser humano
Seguindo com os querubins para o Nassau Coliseum
Agora ouça essa mistura, onde o hip hop se encontra com a escritura
Transforme um negativo numa foto positiva

Agora é o que é
O que tiver de ser, será
Depois da tormenta, vem a calmaria
A mudança eventualmente chega

Às vezes parece
Que alcançaremos nossos sonhos
Mas as coisas vêm devagar ou não chegam
E os que estão lá em cima não fazem nada
Tão convencidos de que cairão
Nos amemos e não falharemos
Em criar uma situação melhor
Amanhã, nossas sementes crescerão
Tudo o que precisamos é dedicação
Me deixe dizer que

É o que é
É o que é
Depois da tormenta, vem a calmaria
É o que é

É o que é
O que tiver de ser, será
Depois da tormenta, vem a calmaria
A mudança eventualmente chega

 

Algumas referências do texto

Abyssinian, street Baptist = Referência a Abyssinian Baptist Church, uma igreja batista afroamericana no Harlem, cidade de Nova York; importante centro de ativismo sociopolítico da comunidade afroamericana.

Cleopatra = Reinou sobre o Antigo Egito entre 51 e 30 a.C.

Nefertiti = Esposa do Faraó Amenhotep IV e considerada a mulher mais poderosa de sua época.

MCs
= Originalmente, é uma abreviação inglesa para “Mestre de Cerimônias”; na cultura do Hip Hop, geralmente se refere a um artista ou artistas do rap.

Serengeti = Uma região de planícies e pastagens da África que abrange a Tanzânia e o Quênia.

Sister Betty = Uma referência a Betty Shabbaz (1934-1997), ativista de direitos civis, e viúva de Malcolm X.

L-Boogie = Apelido de Lauryn Hill.

Nassau Coliseum = Um grande estádio e local de shows em Long Island, Nova York.

 

A jihad contra a jahiliyyah: Sayyid Qutb e Osama bin Laden na reinvenção do Islã Político

[Artigo apresentado no Encontro de Estudos Teológicos Avançados do IRWEC, em 17 de março de 2014.]

Gibson da Costa

RESUMO: Neste artigo, consideramos a contribuição de algumas ideias do pensamento de Sayyid Qutb para a formação do pensamento islamita contemporâneo, especialmente em sua forma mais radical, como externada pelos textos atribuídos a Osama bin Laden, quando líder da al-Qa’ida. Apontamos a obra de Qutb como fonte para uma reinvenção de tradicionais conceitos islâmicos, a saber, jahiliyyah e jihad; e como introdutória do conceito de vanguarda no Islã político, conceito este que motivara o envolvimento de Osama bin Laden com o Afeganistão, durante o período da ocupação soviética, e seu posterior levante contra o regime saudita e os Estados Unidos da América.

PALAVRAS-CHAVE: Islã Político. Jihadismo. Pensamento Islamita. Sayyid Qutb. Osama bin Laden.

 

1. Introdução

            A história do início do século XXI já parece estar marcada, apropriada ou inapropriadamente, pela combinação de nomes e conceitos como Osama bin Laden, al-Qa’ida, Islã, e fundamentalismo. A aparente frequência com que se tem feito referência à combinação de tais nomes e conceitos em noticiários, publicações jornalísticas e acadêmicas, filmes, seriados de televisão, e discursos políticos, pelo menos desde 1996, já é suficiente para indicar a importância do Islã político para a consciência cultural de nossa era. Neste artigo, aproveitando-nos dessa celebridade, intentamos discutir aspectos da história intelectual da forma mais radical desse conjunto de movimentos que se esforçam pela politização do Islã ou, antes, pela islamização da política, especificamente no que concerne ao jihadismo preconizado pela al-Qa’ida, liderada por Osama Bin Laden até sua execução, em 2 de maio de 2011.

            Julgamos ser indispensável, antes que prossigamos, esclarecer as escolhas semânticas que fizemos para discutir nosso tema ao longo deste texto. Como, em língua portuguesa, os termos Islamismo e Islã são sinônimos, fazendo referência à fé professada por muçulmanos e muçulmanas – que não partilham, necessariamente, da mesma compreensão teocrática e essencialista daqueles que se engajam na politização do Islã ou na islamização da política em sociedades do, equivocadamente, chamado “mundo islâmico” –, decidimos fazer uso duma expressão que evitasse a confusão entre a religião em si e a política supostamente inspirada por crenças religiosas, e, por isso, utilizamos aqui a expressão Islã político para nos referirmos à segunda (uso que, desde já, reconhecemos não estar livre de certas limitações conceituais). Para nos referirmos à fé professada por muçulmanos e muçulmanas, utilizamos o termo Islã.

            Frequentemente, trata-se o Islã como uma civilização plena, como um sistema social e político, e não apenas como uma religião. O Islã é visto como uma revelação que explica a totalidade do pensamento, das ações e do modus vivendi dos muçulmanos. O Islã, assim, constituiria a essência da identidade muçulmana, tornando possível a definição de como os muçulmanos pensariam ou agiriam. Infelizmente, essa compreensão não é abraçada apenas por ocidentais olhando para o equivocadamente chamado “mundo islâmico”. É uma espécie de simbiose ideológica da visão que ocidentais orientalistas e islamitas orientais têm do Islã. Aqui, rejeitamos essa visão essencialista do Islã, por considerarmos que a mesma não seja empiricamente sustentável, analiticamente útil ou normativamente defensável. Essa é a razão, também, pela qual consideramos o uso da expressão “mundo islâmico” como equivocado e inadequado, já que tal uso subentenderia uma visão monoliticamente essencialista do Islã e das sociedades onde esse se desenvolve – da mesma maneira como o seria a utilização da expressão “mundo cristão” como referência ao chamado Ocidente.

            Para que tenhamos uma definição mais clara daquilo que aqui chamamos de Islã político, faremos uso daquela descrição oferecida por Guilain Denoeux do mesmo como sendo

uma forma de instrumentalização do Islã por indivíduos, grupos e organizações que buscam objetivos políticos. Oferece respostas políticas aos desafios sociais de hoje, imaginando um futuro cujas bases repousam sobre conceitos reapropriados e reinventados, tomados da tradição islâmica.[1]

           

            Essa reinvenção conceitual da tradição islâmica – i.e., sua compreensão em termos duma noção romantizada duma era dourada mítica – constitui o cerne dessa instrumentalização do Islã. Essa reinvenção provê os instrumentos para a descontextualização histórica do Islã no discurso teórico dos líderes intelectuais do Islã político (que não deve ser compreendido como um movimento monolítico), em seu esforço de reavivamento islâmico de suas sociedades. Esse esforço de reavivamento, de acordo com Berger, é um fenômeno social tão vasto geograficamente, que atinge países desde o norte da África até o sudeste asiático[2]. Não identificamos aqui essa empreitada, entretanto, com o tão abusado termo “fundamentalismo” – abusado tanto por jornalistas quanto por autores acadêmicos não especializados em teologia ou pensamento islâmico –, que indica, em seu uso original no meio cristão protestante, um retorno a supostos “fundamentos” da fé por meio duma leitura literal e estática do texto sagrado.

            Transferir o sentido do termo “fundamentalismo” para fazer referência aos variados movimentos radicais do Islã político não corresponde ao que pode ser analiticamente observado, já que as concepções hermenêuticas e práticas exegéticas dos mesmos são abertamente multiformes, não professando um mesmo tipo de leitura do texto sagrado ou da tradição teológica do Islã como a requerida pelo fundamentalismo cristão[3]. Ademais, no que concerne a crenças religiosas ou conceituações teológicas, “fundamentalismo” não é sinônimo de violência nem, necessariamente, de teocracia. Assim, utilizar a recorrente nomeclatura/adjetivação “fundamentalismo”/“fundamentalista” seria, no mínimo, inapropriado; o que nos força a fazer outras escolhas semânticas. Escolhemos, assim, utilizar os termos Islã político, e o adjetivo correspondente islamita(s), para nos referirmos ao sentido dado aos movimentos políticos definidos por Denoeux; e jihadismo, e o adjetivo correspondente jihadista(s), para nos referirmos distintamente àquela expressão do Islã político que comumente recorre a uma compreensão específica do conceito muçulmano de jihad, especialmente associado à herança intelectual do pensador egípcio Sayyid Qutb.

2. A jahiliyyah de Sayyid Qutb

            A história intelectual das empreitadas islamitas – i.e., relacionadas ao Islã político –, especialmente das jihadistas, é complexa e emerge de muitas fontes, mas o nome mais influente para sua gênese contemporânea é o do intelectual egípcio Sayyid Qutb. De 1948 a 1950, Qutb permaneceu nos Estados Unidos – para onde foi enviado pelo Ministério da Educação egípcio para pesquisar métodos de educação –, onde completou um mestrado em educação, na Universidade do Norte do Colorado. Foi, supostamente, essa sua experiência nos Estados Unidos que convenceu-o sobre o estado de decadência espiritual e moral do “Ocidente”. No livro que escreveu sobre seu tempo nos Estados Unidos, A América Que Vi, Qutb expressa sua admiração pelas grandes conquistas econômicas e científicas norte-americanas, ao mesmo tempo em que demonstra sua surpresa de que tais conquistas tenham sido alcançadas por uma sociedade que continuava, em sua opinião, “abissalmente primitiva no mundo dos sentidos, sentimentos e comportamentos”[4].

            Após seu retorno ao Egito, em 1950, Qutb tornou-se membro da Irmandade Muçulmana, que, por sua vez, defendia uma visão similar à sua quanto à necessidade dum retorno ao Islã. Sayyid Qutb compartilhava a visão do fundador da Irmandade, Hassan al-Banna – que estudara na mesma universidade egípcia onde Qutb se graduara, tendo sido assassinado em 1949 –, de que a modernidade (leia-se: o capitalismo, o individualismo, a democracia, o secularismo, o ateísmo etc) fosse a maior ameaça ao Islã. Havia sido essa modernidade, trazida pelos imperialistas ocidentais, que trouxera o infortúnio aos muçulmanos. Os Estados Unidos, na visão de Qutb, seria a representação maior de tudo o que essa modernidade significava. Em sua visão, para que os muçulmanos fossem livres, deveriam rejeitar essa modernidade e seguir o caminho do Islã – que, para ele, seria a essência da identidade muçulmana.

            Qutb se destacou como uma voz para a causa islamita quando se tornou o editor do jornal semanário da Irmandade, logo após juntar-se à organização. Essa foi a época na qual ele começou a escrever aquele que posteriormente se tornou um dos mais populares comentários ao Corão até hoje, À sombra do Corão, dividido em 18 volumes, que só concluiria durante a década que permaneceu na prisão, entre 1954 e 1964 (ele fora detido, juntamente com outros membros da Irmandade, acusado de haver conspirado contra a vida de Gamal Nasser). A obra, entretanto, que o tornaria o mentor intelectual das expressões mais radicais do Islã político (i.e., os movimentos jihadistas) seria um manifesto chamado de Marcos à beira do caminho – mais comumente conhecido como Marcos, maneira pela qual nos referiremos ao mesmo aqui. Apesar de já circular clandestinamente há alguns anos, o livro foi formalmente publicado apenas em 1964, um pouco antes de ele deixar a prisão. Marcos consistia numa série de cartas escritas da cadeia para seus correligionários da Irmandade Muçulmana e em algumas partes extraídas de À sombra do Corão, baseadas numa argumentação revolucionária que, metaforicamente, estremeceu o Egito de sua época.

            A filosofia política desenvolvida em Marcos foi vista como uma ameaça à legitimidade do governo de Nasser e, por isso, Qutb foi novamente preso em agosto de 1965, e sentenciado à morte – tendo sido enforcado em 29 de agosto de 1966. Em Marcos, Qutb divulga uma nova compreensão do antigo conceito de jahiliyyah – o suposto estado de ignorância que existia na Arábia anterior ao advento do Islã – que se mostraria indispensável à argumentação dos pensadores e ativistas islamitas. Ele afirma:

O Islã não pode cumprir seu papel a não ser que tome uma forma concreta numa sociedade, ou melhor, numa nação. Pois o homem não dá ouvidos, especialmente nesta era, a teorias abstratas que não veja materializadas numa sociedade viva. A partir deste ponto de vista, podemos dizer que a comunidade muçulmana se extinguiu há muitos séculos, pois essa comunidade muçulmana não se refere ao nome duma terra onde o Islã resida, nem a um povo cujos ancestrais viveram sob o sistema islâmico no passado. É, antes, o nome dum grupo de pessoas cujos modos, ideias e conceitos, regras e regulamentos, valores e critérios derivem, todos, da fonte islâmica. A comunidade muçulmana com essas características desapareceu no momento em que o direito islâmico foi suspenso na terra.[5]

            Assim, em sua reinvenção conceitual da tradição islâmica, e discordando da interpretação majoritária entre os teólogos sunitas, Qutb declarou que mesmo as sociedades ditas muçulmanas estariam num estado de jahiliyyah, que ele definiu – diferentemente do conceito tradicional – como um estado contemporâneo de  “rebelião contra a soberania de Deus na terra” no qual o homem reivindica o “direito de criar valores, legislar regras de comportamento coletivo e escolher qualquer forma de vida, sem qualquer consideração pelo que foi prescrito por Deus”. Com “o resultado dessa rebelião contra a autoridade de Deus” sendo “a opressão de suas criaturas”. Para sobrepujar essa jahiliyyah, seria necessário, segundo Qutb, “iniciar o movimento de reavivamento islâmico em algum país muçulmano”, já que apenas um tal movimento alcançaria “o status de liderança mundial”[6]. E ele prossegue:

Como será possível começar a tarefa de reavivar o Islã? É necessário que haja uma vanguarda que se erga com essa determinação e continue a percorrer o caminho, marchando através do vasto oceano de jahiliyyah que domina todo o mundo. No decorrer de sua jornada, deve manter-se à distância dessa jahiliyyah tanto quanto possível e deve também manter alguma ligação com ela.[7]

            A (re)definição, aparentemente tão inocente aos olhos de leitores ocidentais não-muçulmanos, dada por Qutb à noção de jahiliyyah e sua ideia de uma vanguarda se responsabilizar pelo estabelecimento dum Estado islâmico, regido pelo direito islâmico, serviriam como uma motivação ao ativismo revolucionário de diferentes formas de movimentos islamitas e jihadistas que encontram nos Marcos sua direção teórica. Dentre tais movimentos, encontra-se aquele que originou a al-Qa’ida. A obra de Sayyid Qutb, supostamente, teve um grande impacto no pensamento de Osama bin Laden, por meio da influência das palestras públicas de Muhammad Qutb – irmão de Sayyid Qutb, considerado o principal intérprete do todo da obra de Sayyid após sua execução, uma espécie de guardião de sua herança[8] –, às quais Osama costumava assistir quando na universidade[9]. Nela, ele e seus companheiros encontraram as justificativas para uma empreitada de jihad ofensiva contra aqueles que julgavam ser os inimigos do Islã, e a base para sua participação na guerra do Afeganistão, entre 1979 e 1989.

3. Osama bin Laden e a vanguarda islamita

            O público anglófono começou a se inteirar acerca de Osama bin Laden a partir duma entrevista dada por ele ao jornalista Robert Fisk, no Sudão, e que foi publicada pelo jornal britânico The Independent, em 6 de dezembro de 1993. No quarto parágrafo de seu artigo, Fisk escreve:

Ele é um homem tímido. Mantendo um lar em Cartum e apenas um pequeno apartamento em sua cidade natal de Jidá; ele é casado – com quatro esposas – e muito cuidadoso com a imprensa. Sua entrevista com o Independent foi a primeira que já deu a um jornalista ocidental, e inicialmente se recusou a falar sobre o Afeganistão […]. Mas no fim das contas falou sobre uma guerra que ajudou os mujahedin afegãos a vencerem: “O que vivi em dois anos lá, não poderia ter vivido nem mesmo em cem anos em outro lugar”, disse ele.[10]

            O retrato pintado pelo autor, em 1993, parece referir-se a uma pessoa completamente diferente daquela que se passou a retratar nos meios de comunicação especialmente a partir de 2001. Bin Laden já era visto então como uma espécie de herói islamita e, para muitos muçulmanos que não tinham nenhuma simpatia nem pelo jihadismo nem pelo terrorismo, como um exemplo de bom muçulmano. Sua reputação como um homem corajoso, generoso, austero, digno e devoto acompanhavam sua fama ao redor do mundo. O milionário que abandonara tudo para cuidar das necessidades dos mujahidin e para lutar ao seu lado no Afeganistão. Esse era o mito sobre o homem visitado por Robert Fisk.

            A reportagem continua com uma descrição do suposto papel desempenhado por Osama bin Laden no que o autor chama de “movimento de resistência afegã” – uma referência aos variados grupos jihadistas que lutavam contra a presença soviética no país a partir de 1979[11] –, reforçando, mesmo que indiretamente, o mito que já se construíra em torno do islamita saudita. Mais adiante, no oitavo parágrafo do texto, o autor inclui a narrativa do próprio bin Laden sobre a guerra no Afeganistão:

Certa vez, estava a apenas 30 metros dos russos e eles tentavam capturar-me. Estava sob bombardeio, mas tinha tanta paz em meu coração que adormeci. […] Vi um projétil de morteiro de 120mm cair diante de mim, mas não explodiu. Outras quatro bombas foram atiradas dum avião russo sobre nosso quartel-general, mas não explodiram. Derrotamos a União Soviética. Os russos fugiram.[12]

            A estratégia retórica utilizada para construir uma versão da história útil a seus intentos torna-se clara neste pequeno trecho, e a mesma repete-se em oportunidades posteriores, especialmente em suas cartas e discursos. As duas últimas frases tornaram-se elementos frequentes na propaganda da al-Qa’ida. Tornaram-se, ademais, elementos deveras importantes no mito acerca dos mujahidin que lutaram no Afeganistão, e a mais importante evidência da força do movimento liderado por bin Laden – apesar de, ao que tudo indica, a importância dos mujahidin não-afegãos na derrota dos soviéticos não ter sido tão decisiva quanto afirmava bin Laden.

            O que torna representativa a “vitória” dos mujahidin afegãos – e, consequentemente, a participação dos mujahidin não-afegãos associados a Osama bin Laden – na guerra no Afeganistão, entre 1979 e 1989, é o sentido simbólico atribuído a essa “vitória” por islamitas no chamado “mundo islâmico”. Para muitos, aquela representava a primeira vitória militar para o Islã em vários séculos, e parecia sabotar o espírito derrotista que abatera a comunidade muçulmana ao longo do século XX. Os eventos no Afeganistão serviram como apoio aos argumentos de Sayyid Qutb de que uma vanguarda muçulmana deveria armar-se para derrotar os supostos inimigos do Islã e fundar um Estado islâmico regido pelo direito islâmico. E havia sido aqueles argumentos o que motivara ideologicamente muitos dos voluntários muçulmanos de todo o mundo a se juntarem aos mujahidin afegãos, mesmo que sua participação não tenha sido o que decidira a guerra contra as tropas soviéticas.

            A guerra no Afeganistão, de acordo com o historiador Robert D. Kaplan, deixou um saldo de mais de um milhão de mortos, e levou um terço da população afegã, cerca de 5 milhões de pessoas, ao exílio. Apesar de toda a brutalidade daquela guerra, sua divulgação nos meios de comunicação ocidentais, em comparação com outros conflitos de menores proporções, foi mínimo[13]. Provavelmente, como sugerem os relatos do jornalista Rob Schultheis (um dos poucos a cobrir a guerra como correspondente), a deficiência na cobertura jornalística do conflito poderia ser atribuída às dificuldades para sobreviver às condições que o ambiente impunha, com doenças, falta de alimentos e água, falta de hospedagens e meios de comunicação, entre tantos outros empecilhos[14]. Para o imaginário dos islamitas que se juntaram aos afegãos, vencer aquela guerra equivaleria a derrotar a jahiliyyah, ajudando assim a estabelecer um Estado islâmico que serviria de base para a libertação das terras do Islã.

            Anos mais tarde, esse mesmo discurso de jihad em nome da libertação das terras do Islã seria mais uma vez vociferado por Osama bin Laden e seus associados. Em um pronunciamento radical, sua primeira declaração pública de jihad aos Estados Unidos, em 1996, lê-se:

[…] Não é segredo para nenhum de vós, meus irmãos, que o povo do Islã tem sofrido agressão, iniquidade e injustiça a ele impostas pela aliança de sionistas e cruzados, e seus colaboradores; a ponto de o sangue muçulmano ter tornado-se o mais barato, e sua riqueza ter tornado-se pilhagem nas mãos dos inimigos. Seu sangue foi derramado na Palestina e no Iraque. As horríveis imagens do massacre em Qana, no Líbano, ainda estão vívidas em nossa memória. Massacres ocorreram no Tajiquistão, em Burma, na Caxemira, em Assam, nas Filipinas, em Fatani, em Ogadin, na Somália, na Eritreia, na Chechênia e na Bósnia-Herzegovina, massacres que arrepiam o corpo e tremem a consciência. Tudo isso ocorreu diante dos olhos e ouvidos do mundo, e não apenas não responderam a essas atrocidades, mas também numa clara conspiração entre os EUA e seus aliados, sob a cobertura da imoral Nações Unidas, impediram que o povo desapropriado obtivesse armas para se defender. O povo do Islã despertou e deu-se conta de que é o principal alvo da agressão da aliança entre sionistas e cruzados. […] A última e a maior dessas agressões, impostas aos muçulmanos desde a morte do profeta […] é a ocupação da Terra das Duas Mesquitas Sagradas […] pelos exércitos dos cruzados americanos e seus aliados […].[15]

            Nesta sua “mensagem aos muçulmanos em todo o mundo, e especialmente na Península Arábica”, também conhecida como “Epístola Ladenesa”, a mais longa das primeiras mensagens escritas por Osama bin Laden, seus argumentos são apresentados na forma duma fatwa (um edito jurídico) autorizando a jihad contra os norte-americanos. Isso pode fazer-nos questionar sua autoridade para tal: Osama bin Laden não possuía os requisitos tradicionais para emitir uma fatwa aos muçulmanos do mundo, já que não possuía a formação exigida para ser um mujtahid (erudito no direito islâmico) numa das madhhabs (escolas/tradições de interpretação jurídica) islâmicas. Vale ressaltar aqui que o Islã sunita, o corpo de tradições e seitas seguido pela maioria dos muçulmanos e pelo próprio bin Laden, divide-se em pelo menos quatro grandes madhhabs (escolas jurídicas, que não correspondem a seitas, mas a uma forma de interpretar a lei islâmica): a hanifita, a malikita, a shafi’ita e a hanbalita – esta última sendo a escola dominante na Arábia Saudita, e a escola seguida por Ahmad ibn Taymiyya (c.1263-1328) – o jurista mais citado por bin Laden em sua mensagem –, e Sayyid Qutb, além de outros líderes islamitas.

            Este pronunciamento de bin Laden indicava uma mudança de foco em sua atuação pública, já que anteriormente, suas mensagens centravam-se no ataque à Casa Real saudita. Desde 1994, quando fundara o ARC (Advice and Reform Committee [Comitê de Conselho e Reforma]) – cujo escritório estava sediado em Londres, mas cujos comunicados eram preparados por bin Laden, no Sudão, onde vivia exilado –, os textos assinados por bin Laden pressionavam pela reforma na própria Arábia Saudita, e apontavam para a Casa Real como principal responsável pelas mazelas no reino. A partir da “Epístola Ladenesa”, seu principal alvo passa a ser os Estados Unidos.

            A separação do mundo entre “eles” e “nós”, o que reflete a visão de Sayyid Qutb da separação do mundo entre jahiliyyah e Islã, é essencial para a vitimização do “povo do Islã” na retórica utilizada por Osama bin Laden nesse pronunciamento. Essa vitimização é discursivamente construída por meio da listagem dos supostos massacres impostos ao “povo do Islã” pela “aliança de sionistas e cruzados” – que, neste pronunciamento, refere-se especificamente aos Estados Unidos e Israel, mas também aos seus “colaboradores” (o regime saudita, governos pseudo-islâmicos corruptos e as Nações Unidas). E se, mesmo depois da listagem de todas as agressões ao “povo do Islã” citadas por bin Laden, restasse alguma dúvida de que um muçulmano devesse juntar-se à jihad contra a “aliança de sionistas e cruzados”, ele cita a maior de todas as agressões sofridas “desde a morte do profeta”: a “ocupação da Terra das Duas Mesquitas Sagradas” pelos americanos e seus aliados – a expressão “Terra das Duas Mesquitas Sagradas” (bilad al-haramayn, em árabe) é uma referência clássica à Península Arábica, terra onde estão as mesquitas de Meca e Medina. Por “ocupação”, ele refere-se à presença das tropas norte-americanas e aliadas na Arábia Saudita a partir da 2ª Guerra do Golfo, 1990-1991. Assim, bin Laden se esforça para convencer seus leitores de que o Islã está sob ataque e que, por isso, é hora de o “povo do Islã” reagir.

            Ao longo de sua mensagem, Osama bin Laden aponta, pelo menos, seis razões para a jihad contra os Estados Unidos: 1) a presença norte-americana na “Terra das Duas Mesquitas Sagradas”; 2) a proteção dada pelos Estados Unidos a governos tiranos em terras muçulmanas; 3) o apoio norte-americano a Israel; 4) o apoio norte-americano a países que oprimem aos muçulmanos, especialmente Rússia, China e Índia; 5) a exploração perpetrada pelos norte-americanos das fontes de energia nas terras muçulmanas a preços abaixo do valor de mercado; e 6) a presença militar norte-americana em terras muçulmanas fora da Península Árabe.

            E, antes de encerrar sua mensagem com uma prece de súplica a Deus por socorro, ele dirige seu clamor aos muçulmanos que leem sua mensagem:

[…] Meus irmãos muçulmanos ao redor do mundo: Vossos irmãos na Palestina e na Terra das Duas Mesquitas Sagradas clamam por vossa ajuda e vos pedem que tomeis parte na luta contra vosso inimigo comum, os norte-americanos e os israelenses. Eles pedem que façais o que puderdes, com vossos próprios meios e habilidades, para que, juntos, expulseis os inimigos, vencidos e humilhados, das terras santas do Islã. […][16]

            Como essa primeira mensagem ladenesa recebeu críticas, por Osama bin Laden não possuir as qualificações necessárias para interpretar o Corão e emitir fatwas, sua segunda mensagem, de 1998, contou com a assinatura de apoio de líderes de quatro outras organizações jihadistas: Ayman al-Zawahiri (do Grupo Jihad, no Egito – e que substituiria bin Laden, após sua execução, como líder da al-Qa’ida); Abu-Yassir Rifa’i Ahmad Taha (Grupo Islâmico, no Egito); Mir Hamzah (Jamiat-ul-Ulema-e-Pakistan, no Paquistão); e Fazlul Rahman (Movimento Jihad, em Bangladesh). Uma vez mais, o texto enumera acusações contra a “aliança de sionistas e cruzados” e contra os Estados Unidos, e prossegue:

[…] Todos esses crimes e pecados cometidos pelos norte-americanos são uma clara declaração de guerra a Deus, a seu mensageiro e aos muçulmanos. E os sábios têm, no decorrer de toda a história islâmica, unanimemente concordado que a jihad é um dever individual compulsório se um inimigo ataca países muçulmanos. […] Com base nisso, e de acordo com a vontade de Deus, emitimos a todos os muçulmanos o seguinte julgamento:

Matar os norte-americanos e seus aliados, civis e militares, é um dever individual compulsório de todo muçulmano, em todo país onde se possa fazê-lo, para que a Mesquita de al-Aqsa e a Santa Mesquita sejam libertas de seu domínio, para que seus exércitos saiam de todas as terras do Islã, vencidos, derrotados e incapazes de ameaçarem qualquer muçulmano. […][17]

            Esse é um texto bem mais radical em suas conclusões, mas possui um termo jurídico interessante na frase “[…] emitimos a todos os muçulmanos o seguinte hukm”, que aqui traduzimos como “julgamento”. Esse termo possui uma força menor que o termo fatwa, em se referindo a uma obrigação legal, de acordo com o direito islâmico, e seu uso pode indicar uma consciência da discordância que se ergueria contra seu “julgamento”. De qualquer maneira, há uma diferença gradativa entre a jihad pensada na primeira declaração de bin Laden e esta. Se no texto de 1996, a conclamação era que se expulsasse os norte-americanos e israelenses das terras do Islã, aqui, o dever é matar civis e militares dentre os norte-americanos e seus aliados – uma conclusão que exigiu, ao longo do texto, uma série de reconstruções e mutilações das citações corânicas para que seu argumento soasse convincente aos leitores.

4. Considerações Finais

            Os escritos divulgados por Osama bin Laden demonstram uma crescente em seu radicalismo retórico, apesar do refinamento de seu uso linguístico e seu esforço para criar uma justificativa para seu apelo à jihad. O que pode-se perceber, contudo, é sua clara referenciação ao pensamento jihadista enraizado na tradição codificada por Sayyid Qutb. Sua preocupação, nos escritos, em apresentar razões específicas para suas empreitadas, e sempre alertando aqueles que considera como inimigos, segue o modelo de seu suposto mentor intelectual. Ousamos, assim, afirmar que a versão de Islã político de bin Laden pertencesse a uma tradição intelectual que tem se desenvolvido há, pelo menos, um século em países do Oriente Médio e de lá tem se expandido para outras partes do mundo, como resposta às necessidades dessas sociedades em lidarem com sua experiência ou percepção de aspectos da modernidade.

            A importância da compreensão das origens de tais perspectivas políticas está no fato de as mesmas terem se tornado mais visíveis em nossos dias, e nem sempre se perceber aquilo que muitas vezes é visto apenas como uma questão religiosa ou o que é lido, em nossa sociedade, como uma busca da “democracia” ou “liberdade”. Em muitos dos conflitos políticos em países com uma população majoritariamente identificada como muçulmana – a chamada “Primavera Árabe” é um exemplo – o pensamento subjacente ao mover popular está enraizado em tradições islamitas, e olhar para o fenômeno social sem lentes cobertas por esteriótipos pode ajudar a desenvolver-se um entendimento de tais realidades.

5. Referências Bibliográficas

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[1]     DENOEUX, Guilain. The forgotten swamp: navigating political Islam. Middle East Policy, 9, 2 jun 2002, p. 61. [Tradução nossa do inglês.]

[2]     BERGER, P. L. The desecularization of the world: a global overview. In: _______(ed.). The Desecularization of the World: Resurgent Religion and World Politics. Washington: Ethics and Public Policy Center, 1999. p. 7.

[3]     Uma das muitas evidências dessa aberta multiformidade – que contradiria a compreensão tradicional do termo “fundamentalismo”, como qualificativo teológico – encontra-se num texto escrito pelo intelectual que discutiremos a seguir: “Frequentemente descobrimos que em questões de fé ou de crença abstrata, o Islã faz pronunciamentos específicos e definitivos, mas quando se trata de questões referentes à tradição ou a práticas sociais complexas, ele toma uma abordagem mais pragmática e medida […].” QUTB, Sayyid. In the Shade of the Qur’an [À sombra do Corão], vol. 1. Nova York: The Islamic Foundation, 2003. p. 281. [Tradução nossa do inglês.]

[4]     QUTB, Sayyid. The America I Have Seen. Nova York: Islamic Publications International, 2000. p. 10.

[5]     QUTB, Sayyid. Ma’alim fi’l-Tariq [Marcos à beira do caminho]. Amã, Jordânia: Maktabat al-Aqsa, 1981. p. 15. [Tradução nossa do árabe.]

[6]     Ibid., p. 16-17.

[7]     Ibid., p. 17-18.

[8]     KEPEL, Gilles. Muslim Extremism in Egypt. Berkeley: University of California Press, 1993. p. 61-66.

[9]     WRIGHT, Lawrence. The Looming Tower: Al-Qaeda and the Road to 9/11. Nova York: Alfred A. Knopf, 2006. p. 98.

[10]   FISK, Robert. Anti-Soviet warrior puts his army on the road to peace: The Saudi businessman who recruited mujahedin now uses them for large-scale building projects in Sudan. The Independent, Londres, p. 10, 06 dez. 1993. [Tradução nossa do inglês.]

[11]   DORRONSORO, G. Revolution Unending: Afghanistan, 1979 to the Present. Londres: C. Hurst & Co. Publishers, 2005.

[12]   FISK, Robert. Ibid., p.10. [Tradução nossa do inglês.]

[13]   KAPLAN, Robert D. Soldiers of God: With the Mujahidin in Afghanistan. Boston: Houghton Mifflin, 1990. p. 227. 

[14]   SCHULTHEIS, Rob. Night Letters: Inside Wartime Afghanistan. Nova York: Crown, 1992.

[15]   BIN LADEN, Osama. Declaração de jihad contra os americanos ocupando a Terra das Duas Mesquitas Sagradas; Expulsai os hereges da Península Arábica. Al-Quds al-Arabi, Londres, p. 1, 23 ago 1996. [Tradução nossa do árabe.]

[16]  Ibid., p. 12. [Tradução nossa do árabe.]

[17]  BIN LADEN, Osama, et al. Nass Bayan al-Jabhah al-Islamiyah al-Alamiyah li Jihad al-Yahud wa-al-Salibiyin [Declaração de Jihad da Frente Islâmica Mundial Contra os Judeus e os Cruzados]. Al-Quds al-Arabi, Londres, p.3, 23 fev 1998. [Tradução nossa do árabe.]

 

“O Renascimento Islamita” ou “A Primavera Que Conseguiu Florescer”: Uma Breve Reflexão Sobre o Clamor do “sha’ab” na Primavera Árabe

Manifestação na praça Tahrir, Cairo. Egito, 08/07/2011.

Foto: Mohamed Abd El-Ghany/Reuters

[Originalmente publicado em 12 de julho de 2014.]

Gibson da Costa

Parece que ainda podemos ouvir os gritos dos manifestantes egípcios vociferarem as palavras que se tornaram o slogan da prévia duma nova era: ash-sha’b yurid isqat an-nizam (o povo quer derrubar o regime). Esse grito do sha’ab1, o povo – uma entidade até então impotente, se não inexistente, na política egípcia –, pareceu sinalizar, a partir de janeiro de 2011 (anteriorizado pelo levante na Tunísia, iniciado em dezembro de 2010, e pelos da Argélia, Jordânia e Omã, respectivamente), um novo momento na conturbada história egípcia e de alguns outros países do mundo árabe. Aquele grito, associado à brilhante construção semântica de Marc Lynch, que foi, supostamente, o primeiro a utilizar a expressão Primavera Árabe para se referir àqueles eventos em seu blog no sítio da revista Foreign Policy, em 6 de janeiro de 20112; mas também associado à suposta estratégia do governo de Barack Obama de apoderar-se dessa adjetivação para poder controlar a imagem do movimento e o caminho que o mesmo seguiria3, fez com que se pensasse que aquele movimento fosse uma revolução democrática à la americana/francesa. A pressão ocidental e o romantismo retórico de sua imprensa, e do mundo digital globalizado, entretanto, foram insuficientes para encapsular a experiência e as expectativas do sha’ab egípcio e do resto do mundo árabe.


O que é mais relevante sobre o slogan dos manifestantes egípcios é a diferença quando comparado aos costumeiros gritos revolucionários. Para os manifestantes, era insuficiente gritar “Abaixo o regime!”. Aqueles súditos de autocratas, ditadores, e imãs supostamente teocratas resolveram tomar em suas mãos a soberania popular, e em seu slogan adicionaram o singular coletivo “o povo quer”. O sha’ab agora afirmava sua existência. O sha’ab queria agora que sua voz fosse ouvida. O sha’ab queria escrever sua história coletiva sem amarras ditatoriais. E, se acreditássemos no que a imprensa e as autoridades políticas ocidentais queriam que acreditássemos, o sha’ab queria a democracia e a liberdade ocidentais. A emergência do próprio sha’ab, entretanto, representa, para nós, um sentido mais significativo daqueles movimentos que se alastraram pelo mundo árabe. Sua busca por uma alternativa política, entretanto, encontraria respostas numa tradição incompatível com a noção que a “opinião ocidental” tinha duma revolução democrática. A Primavera Árabe tornar-se-ia o Renascimento Islamita.


Faz-se importante, aqui, traçar uma clara distinção entre o Islã, uma religião, e aquilo que aqui chamamos de Islã político, uma ideologia sociopolítica baseada numa leitura específica do Islã. Enquanto, aqui, a religião islâmica/muçulmana é uma questão de identidade pessoal em diálogo com uma tradição religiosa, a ideologia sociopolítica islamita serve a uma agenda política específica. Esse é o sentido básico, mesmo que reconhecidamente limitado, que atribuímos a esses termos neste ensaio. Ademais, utilizamos o adjetivo “islamita” para referir-nos exclusivamente ao Islã político; enquanto utilizamos “muçulmano” e/ou “islâmico” como adjetivo relativo à religião do Islã.


Não surpreende a emergência política de partidos islamitas após os levantes iniciados em 2010, especialmente no que tange à Gamma’at al-ikhwan al-muslimun (a Irmandade Muçulmana do Egito). Por décadas, a Irmandade Muçulmana usou a repressão do regime para organizar suas redes sociais alternativas e construir uma imagem semi-heroica. A Irmandade transformou sua perseguição pelo regime em capital sociopolítico, permitindo-lhe recrutar novos membros e aumentar sua influência sobre diferentes grupos sociais. Ademais, com o passar do tempo, se ajustou às regras do jogo político, participando de eleições, construindo alianças com diferentes grupos políticos, e, em alguns momentos, estimulando a repressão do regime para aumentar seu apelo público. A eficiente rede social construída e mantida por ela provia de serviços de saúde e educação a abrigo para os mais pobres, o que tornou-se uma garantia de ganhos políticos entre uma grande parcela dos eleitores egípcios4.

A ideologia islamita, como aquela defendida pela Irmandade Muçulmana, difundiu-se como uma promessa messiânica entre jovens egípcios que haviam sido marginalizados pela modernização e, em sua visão, pelo status de haram (iniquidade) atribuído ao antigo regime. Essa ideologia político-religiosa constituía, para muitos jovens urbanos conservadores, a única alternativa ao mundo “ocidentalizado” e divorciado do Islã (apesar de não necessariamente laicizado) que se lhes impunha. Os líderes islamitas, assim, não tiveram problemas para ecoar entre esses jovens sua “sagrada missão” de estabelecer um “Estado Islâmico”. Décadas de tradição na defesa duma transformação tanto das estruturas políticas quanto das normas e valores sociais, para ajustá-los à sua visão, preparou o caminho para que os eleitores egípcios conhecessem a alternativa que se lhes apresentava. Portanto, mesmo considerando a direção pragmática tomada pela Irmandade após a “Primavera”, e mesmo antes, julgamos precipitadas as perspectivas que viam os levantes como uma “revolução pós-islâmica”5.


Pode ser verdade que os jovens que iniciaram as manifestações nas ruas egípcias não fossem, em sua maioria, islamitas, ou, mais especificamente, integrassem a Irmandade Muçulmana, como afirmava-se repetidamente em noticiários televisivos da Al Jazeera, da BBC, da CNN, da MSNBC, da TF1, da TVE e da Deutsche Welle que acompanhamos. Contudo, a julgar pelo que se seguiu no palco político daquele país, não é difícil imaginar que a Irmandade tenha se contido durante os levantes para evitar a repressão e para diminuir o temor ocidental de sua presença. Também, é importante recordar que a Irmandade Muçulmana não foi o único grupo islamita a participar do movimento, já que outros grupos menores e independentes – e mais radicias – se envolveram no levante. Assim, considerando o envolvimento de tais grupos com agendas políticas supostamente baseadas na religião, assim como a utilização de sermões religiosos em mesquitas ao redor do país para a mobilização das massas durante o período, não poderíamos aceitar a esperançosa visão de que aquela fosse uma “revolução pós-islâmica” – como se o Islã e, mais especificamente, a tradição islamita estivessem ausentes das alternativas mais imediatamente disponíveis ao sha’ab.


Diferentemente da visão esperançosa que Oliver Roy, por exemplo, articulou num artigo para o blog do The European Institute ainda em fevereiro de 2011, onde enfatizava o caráter pós-islâmico daquilo que chamou de “revolução”, em grande parte as demandas com as quais o sha’ab egípcio se engajou se revestiam dum ethos próprio ao mito muçulmano, e, assim, podiam manter uma comunicação com tradições islamitas mais moderadas. Logo, se é verdade que essas demandas se focavam em “valores humanos universais”6, a interpretação que faziam desses valores se revestiria duma roupagem mais próxima à sua própria experiência sociocultural – enormemente moldada pelo imaginário muçulmano. O autor, entretanto, não vira ainda, em fevereiro de 2011, como se dariam os acontecimentos políticos no Egito e nos demais países árabes atingidos por aqueles movimentos. Seu julgamento hoje, à luz do que resultaria daqueles levantes populares, só reforça a visão de que todo o otimismo que se criou foi deveras antecipado. Ao que nos parece, não havia, no Egito ou nos outros países da “Primavera Árabe”, uma alternativa política capaz de realizar uma tal “revolução pós-islâmica”.


Os resultados das eleições de fins de 2011 mostraram que, mesmo em disputas eleitorais relativamente livres, o sha’ab egípcio optaria pelos políticos islamitas, como já ocorrera nas eleições de 2005. Para as eleições de 2011, novos partidos islamitas de orientação salafista foram organizados. A soma dos deputados do Hizb al-Hurriya wal-‘Adala (Partido Liberdade e Justiça) – o partido da Irmandade Muçulmana7 – com os desses partidos salafistas somava cerca de dois terços da Assembleia Legislativa egípcia. Desses novos partidos, o mais numeroso e influente era o Hizb al-Nur8 [Partido da Luz], partido criado pela al-Da’wa al-Salafiyya [O Chamado Salafista], um movimento islamita radical. Além deles, reorganizou-se o Hizb al-Wasat [Partido do Centro], originalmente fundado em 1996, mas tornado ilegal subsequentemente, de orientação islamita moderada e defendendo uma visão bem tolerante e diversa do papel do Islã na sociedade9; e fundou-se o Hizb al-Benaa wa al-Tanmia10 [Partido da Construção e do Desenvolvimento], um partido islamita associado ao al-Jama’a al-Islamiyya [Grupo Islâmico].

Dos 498 deputados eleitos de forma direta – 10 outros eram indicados pelos militares no poder –, 235 eram do al-Hurriya wal-‘Adala, 121 do al-Nur, 10 do al-Wasat, 9 do al-Benaa, e os demais ficaram com partidos menores11. Em outras palavras, a grande maioria das vagas ficaram com partidos islamitas, partidos defensores, duma forma ou de outra, de ideologias baseadas numa visão particular da religião islâmica. Isso, em termos estatísticos, é mais do que suficiente para convencer-nos que o qualificativo de “revolução pós-islâmica” é equivocado no que concerne especificamente ao Egito.

Com isso, não queremos insinuar que o simples fato de o país possuir uma população majoritariamente muçulmana faria com que os eleitores automaticamente rejeitassem opções secularistas e empossassem um regime islamita. O que os eleitores buscaram após a “Primavera”, contudo, parece ter sido opções que representassem uma forte oposição ao regime deposto. Os variados grupos islamitas conseguiam representar bem isso por terem décadas de história na oposição, tendo sido perseguidos pelo regime deposto. Sua história dava-lhes credibilidade e legitimidade aos olhos da maioria dos eleitores egípcios. O mesmo, entretanto, não poderia ser dito dos partidos secularistas, fossem de orientação liberal ou socialista, por não terem uma história na oposição ao regime deposto.


Enquanto o regime deposto havia tentado controlar o establishment religioso, influenciando as lideranças religiosas da Universidade al-Azhar, e se esforçando para silenciar as oposições islamitas por décadas (e não apenas o regime deposto, como também os anteriores, desde pelo menos a emergência da Irmandade Muçulmana como força política), essas oposições continuaram – mesmo que ilegalmente – suas atividades sociais, políticas e religiosas na oposição ao regime. Pode-se supor que, na imaginação do sha’ab, a religião tornara-se o sinalizador dos grupos que tiveram a coragem de desafiar um regime ditatorial. A atitude desafiadora desses grupos, associada a suas obras sociais, deu-lhes um carisma que nenhum partido secularista conseguiu alcançar nas eleições que se seguiram aos levantes de 2011. Isso foi, contudo, o que ocorreu apenas no início da transição.


Como em todo drama político, não demorou muito para que os antigos heróis fossem, também, acusados de ineficiência, corrupção etc. Veio o golpe de 3 de julho de 2013, e a deposição do presidente Mohammed Morsy, membro da al-Hurriya wal-‘Adala, da Presidência do país. A Irmandade Muçulmana foi, mais uma vez, posta na ilegalidade. O próprio sha’ab demostrava-se, aparentemente, insatisfeito com a forma como o Egito estava, especialmente em termos econômicos e sociais. Os militares, insatisfeitos com seus inimigos no poder, aproveitaram-se da situação. Mais violência, mais caos12. Era o fim da “revolução pós-islâmica”?


O complexo contexto histórico, não apenas do Egito como também de toda a região, pode tornar toda a dinâmica sociopolítica e, consequentemente, eleitoral difícil de compreender. Como compreender a conciliação entre os anseios do sha’ab e suas escolhas eleitorais “livres” (talvez devêssemos, na verdade, tentar compreender o sentido de “liberdade” no contexto egípcio)?


Se um dia haverá uma “revolução pós-islâmica” no Egito, é muito cedo para saber – apesar de os especialistas não terem tido nenhum pudor em se apressar para identificar assim os eventos políticos no país e na região em 2011. Assim como se poderia dizer que também era cedo demais para qualificar como “revolução” as transformações políticas que se tentavam fazer – a depender de como se define “revolução”, claro. A verdadeira “revolução”, entretanto, e talvez a única que tenha realmente ocorrido tanto no Egito como em outros países atingidos pelo clima da “Primavera”, foi a revolução do sha’ab. Essa revolução pode ter sido trazida à tona pelo renascimento islamita, mas, se um dia haverá alguma mudança democrática permanente naquela sociedade, essa só poderá ocorrer por seu real senhor: o sha’ab.


Referências

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MASSAD, Joseph. The ‘Arab Spring’ and other American Seasons [A ‘Primavera Árabe’ e outras estações norte-americanas]. Al Jazeera, 29 ago 2012. Disponível em:<http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2012/08/201282972539153865.html>. Acesso em: 15 fev 2014.

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WEDEMAN, Ben; SAYAH, Reza; SMITH, Matt. Coup topples Egypt’s Morsy; deposed president under ‘house arrest’. CNN, 4 jul 2013. Disponível em: <http://edition.cnn.com/2013/07/03/world/meast/egypt-protests/>. Acesso em: 15 fev 2014.

 NOTAS:

1 Utilizaremos o termo árabe ao longo deste texto para nos referirmos ao “povo” por ele possuir um sentido retórico importantíssimo aqui, que não seria alcançado por uma tradução apenas aproximada.

2 LYNCH, Marc. Obama’s Arab Spring [A Primavera Árabe de Obama]. Foreign Policy, 6 jan 2011. Disponível em: <http://mideastafrica.foreignpolicy.com/posts/2011/01/06/obamas_arab_spring>. Acesso em: 15 fev 2014.

3 MASSAD, Joseph. The ‘Arab Spring’ and other American Seasons [A ‘Primavera Árabe’ e outras estações norte-americanas]. Al Jazeera, 29 ago 2012. Disponível em:<http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2012/08/201282972539153865.html>. Acesso em: 15 fev 2014.

4 SOCIAL programmes bolster appeal of Muslim Brotherhood [Programas sociais reforçam o apelo da Irmandade Muçulmana]. IRIN News, 22 fev 2006. Disponível em: <http://www.irinnews.org/report/26150/egypt-social-programmes-bolster-appeal-of-muslim-brotherhood>. Acesso em: 15 fev 2014.

5 REVOLUÇÃO “pós-islâmica” afectará todo o sistema global. Diário de Notícias, 11 março 2011. Disponível em:

6 ROY, Oliver. Post-Islamic Revolution [Revolução pós-islâmica]. The European Institute, 17 fev 2011. Disponível em: <http://www.europeaninstitute.org/February-2011/qpost-islamic-revolutionq-events-in-egypt-analyzed-by-french-expert-on-political-islam.html >. Acesso em: 15 fev 2014.

7 Sítio oficial da Gamma’at al-ikhwan al-muslimun [Irmandade Muçulmana egípcia]: <http://www.ikhwanonline.com/>. Acesso em: 15 fev 2014.

8 Sítio oficial do Hizb al-Nur [Partido da Luz]: <http://www.alnourparty.org/>. Acesso em: 15 fev 2014.

9 Sítio oficial do Hizb al-Wasat [Partido do Centro]: <http://www.alwasatparty.com/>. Acesso em: 15 fev 2014.

10 Sítio oficial do Hizb al-Benaa wa al-Tanmia [Partido da Construção e do Desenvolvimento]: <http://benaaparty.com/>. Acesso em: 15 fev 2014.

11 EGYPT’S Islamist Parties win elections to Parliament. BBC, 21 jan 2012. Disponível em: <http://www.bbc.com/news/world-middle-east-16665748>. Acesso em: 15 fev 2014.

12 WEDEMAN, Ben; SAYAH, Reza; SMITH, Matt. Coup topples Egypt’s Morsy; deposed president under ‘house arrest’. CNN, 4 jul 2013. disponível em: <http://edition.cnn.com/2013/07/03/world/meast/egypt-protests/>. Acesso em: 15 fev 2014.